quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) 6. Conto – Tarzan e Beijinho

TARZAN E BEIJINHO


Ambiente:
Rio de Janeiro, Malibu, a vida de exilados.

Foco narrativo:
Primeira pessoa.

Personagens:

Tarzan e Beijinho: homem e mulher brasileiros que tentam desvendar o seu país.
 
Narrador: 
Espectador da vida de Tarzan e Beijinho.

Beijinho e Tarzan, irmãos que são sobrinhos de Tia Gênia, uma exímia contadora de histórias. Juntos com seus amigos (inclusive o "descrente" Baguinho), eles criam as mais diversas fantasias: até um barco!

Conheci Tarzan e Beíjinho em Malibu, antes de se transferirem para o Leblon, uma praia que havia tragado o coração de almirantes batavos e sereias, litorâneas. Viviam em Malibu como se ainda pisassem as araras de Cabo Frio. Para tanto recorrendo a símbolos nacionais, desde o azeite de dendê, até à flâmula rubro-negra. E quando uma pergunta lhes soava particularmente delicada, respondiam em português, teimando em apelidar de João a Mr. Blackmur. A nostalgia do exílio, longe de debilitá-los, poupava-os de qualquer desgosto. Assim, sempre que lhes falavam de Copacabana, como um sonho distante no horizonte. - Beijinho dizia, para eu traduzir:

— Ah, a invernada de Olaria.

Eu não sabia explicar a frase a Mr. Blackmur. Havia um país a preservar. E nós éramos o país deixado atrás à altura do Rio de Janeiro. Tratava-se sim de uma festa móvel, celebrada em qualquer estação do ano, e para a qual a população era convocada. Todo o morro descia para o espetáculo. Cabia ao destino indicar os protagonistas de um festejo a que jamais faltavam bebidas, sangue e alegria.

—E quem separa a alegria da tristeza! - disse Tarzan, para que o aplaudíssemos. Beijinho prontamente condenou-lhe a antinomia em desuso, criada com intenção de ferir a uma das raças mais nobres do hemisfério.

— E a que raça ofende sem querer?

— Os ciganos. Eles choram privados de qualquer critério. Nunca sabem se é de alegria ou de tristeza. Por favor, Tarzan, não me venha mais com metáforas. Como pode ser um homem do mundo se ainda recorre às heranças deixadas no chão e pisoteadas por todos.

Induzido por Beijinho, que recém tingira o cabelo de louro, Tarzan compreendeu que deviam regressar à pátria. Mais econômico seria fingir no Rio que estavam em Malibu. O cargueiro holandês cuidou em trazê-los junto à coleção de conchas, búzios, cavalos-marinhos, o pinguim empalhado, toda a imensa concentração de salitre e mineral que Tarzan e Beijinho haviam recolhido do fundo do mar. Certa vez, eles me confessaram, no fundo do mar encontram-se nossos corações, é preciso ir ( bem fundo para ouvir-lhes as pulsações. Teria sido: um convite para eu fugir deles, me .censurariam o modo de olhá-los? Ou simplesmente suplicavam que fosse visitá-los com o aqualung até o fundo mar. Sobretudo Beijinho retraía-se sempre que tocada. Mesmo diante do gesto que tivesse como desfecho abrir-lhe o zíper do collant vermelho. O seu pudor, obrigavam e a pedir-lhe desculpas pelas uvas roubadas do seu prato em nome da minha fome. Sua vingança nestes casos era corrigir- me, dizia meu nome duas vezes: sabendo que a força dele estava em pronunciá-lo de um só fôlego. Sempre me esvaí quando o repetiam com ociosidade.

COMENTÁRIO:

Tarzan fala de força, de intrepidez, de masculinidade: refere-se ao homem. Beijinho fala de doçura, de carinho, de feminilidade: refere-se à mulher. Tarzan fora exilado da selva onde vivia. Foi acompanhado pela mulher: Beijinho. A selva é o Brasil. Malibu é o lugar do exílio. “A nostalgia do exílio, longe de debilitá-los, poupava-os de qualquer desgosto”. “Quando retornam ao Brasil, tentam descobri-lo, disfarçados de turistas, isto é, não querendo ser reconhecidos”. Na verdade, eles não se reconhecem no próprio país de origem o qual tentam decifrar e compreender. O narrador é o espectador que acompanha a trajetória de Tarzan e Beijinho.

Fonte:
– Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

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