sábado, 23 de janeiro de 2021

Carina Bratt (O violento silêncio de um novo recomeço)


Depois que a nossa vida foi completamente destruída, seja por desfazimento de um casamento, pela perda do emprego onde ganhávamos razoavelmente bem, pelo falecimento de algum ente querido, ou qualquer outro item que eu não tenha citado neste pequeno rol, como recomeçar? Muitas e muitas vezes nos quedamos diante dos escombros com esta indagação entalada na goela: como recomeçar?

Existe alguma cartilha, ou um truque para se tirar de dentro de uma cartola (como os ilusionistas, nos palcos da vida circense, um buquê de flores, ou uma pombinha branca, ou via igual, da manga da blusa, um pacote de dinheiro, para saldarmos todas as nossas dívidas e começarmos do nada, ou seja, do zero?). A resposta é NÃO.

Na verdade, não colocaram, ao nosso dispor, para consultas rápidas e rasteiras, nenhum dispositivo prático —, um modelo livre de trapaças —, um livreto padrão, correto e sem erros, bonitinho e bem elaborado, bem escrito, explicando, com todos os passos corretos para serem seguidos, à risca, e vencermos as dificuldades e intempéries.

Quando nos pegamos acabadas, literalmente no fundo do poço, estraçalhadas, nada vem em nosso socorro, a não ser os destroços de nós mesmas. Grudados neles, o estupor de um silêncio pesado e denso, que nos fere, que nos machuca, que nos leva às raias da neurastenia. Nestas horas, diante do espelho do nosso destino, contamos somente com a nossa coragem, ou com o que dela sobrou intacta.

Tentamos nos reerguer, nos levantarmos do tombo dos fracassos e dissabores (sejam eles, quais forem). Enfim, arriscamos, aventuramos, ousamos sair ilesas da vida abrupta, despedaçada, juntando os caquinhos, um por um, aqui e ali, depois e acolá, colando de volta, num trabalho de pacienciosidade (tipo as formiguinhas), até completarmos todo o mosaico dos nossos sonhos destruídos.

A reconstrução é difícil, penosa, cansativa, por vezes temerária. Às vezes, levamos anos e anos para nos aprumarmos, até vermos de novo, diante de nossa estupefação, os horizontes brilharem à frente de nossos percalços e estorvos, incômodos e entojos, irritações e achaques.

Cair é fácil. Basta estarmos em pé. Tropeçar, idem. Um simples descuido, um cochilo, um desvario e pimba, damos com tudo no rés do chão. Difícil é levantarmos, notadamente se não tivermos um alicerce, um suporte à altura de nosso tombo. Geralmente (dependendo do baque, as feridas, as contusões e as lesões produzidas por este declínio), arranjamos feridas profundas, mágoas difíceis de serem cicatrizadas.

Apesar dos pesares que surgirem, ou que nos vierem molestar, não importam as avarias produzidas. Temos, nestas horas, a obrigação, o dever, a tarefa imperativa de sermos fortes o bastante, robustas o suficiente para nos colocarmos em posição de luta e de peleja. Encararmos o porvir e, partirmos com tudo, para a guerra.

Quando falamos em guerra, devemos esclarecer que a vida é um eterno conflito de interesses, onde concebemos matar um inimigo oculto a cada dia. Os antagonistas encobertos e clandestinos são muitos e os mais diversificados. Apesar destas pedras no meio do caminho, jamais pensamos ou imaginamos em desistir das refregas, das contendas e das repressões.

Em mente, sempre, a ideia auspiciosa de sacudirmos a poeira das roupas. O anfêmero* nos ensina, a duras penas, que nunca deveremos desistir do combate. Vencer e vencer se tornou, não só uma saída à nossa volta mas, sobretudo, uma trilha aberta no meio do nada, nos impondo mecanismos de defesa para o enfrentamento diante da vida madrasta.

Neste tom, ainda que aos trancos e barrancos, seja rastejando, capengando, pulando numa perna só, temos que ter a iniciativa, a dignidade, o senso prático de nos aprumarmos. Mantermos a cabeça erguida, os sentidos a todo vapor e partirmos em busca dos objetivos almejados.

Em tempo algum jogarmos a tolha, ou darmos meia volta, fugindo das agruras e ensombramentos que vierem nos fazer frente, grosso modo, nos peitar. Ainda que tudo esteja a nosso desfavor ou que o dia a dia se apresente esquisito e tenebroso, nada de desânimos. Bola pra frente. Chutar pra gol é a meta, o propósito, a ambição, acima de qualquer outra coisa.

As vias pelas quais teremos que nos embrenhar estão diante de nossos narizes, aguardando a nossa coragem, a nossa valentia, a nossa ousadia e, claro, estas rotas contam com o nosso apetite voraz de engolirmos cada adversidade revestida de um espectro mal acabado que, porventura, venha pintar no pedaço, intencionando a se meter a besta com a nossa obstinação de vencermos e sermos novamente felizes. Temos, todas nós, o direito líquido e certo de sermos felizes.

O avejão* que nos rodeia está por aí, à solta. Belo e folgado. É uma aparição sem voz, sem rosto, sem braços e pernas. Apesar de uma completa manquitola, fará de tudo para nos impedir de seguirmos adiante, em busca do nosso sucesso. Todo recomeço não deixa de ser um afronte, um agravo à nossa sensibilidade feminina.

E nós, como Mulheres com ‘M’ Maiúsculo, o Belo Sexo, o Encanto da melhor parte da maçã, não poderemos jamais ser capachos desta ou de qualquer outra infâmia que se nos apresente com agressividade, imposições, brutalidades ou descomedimentos imoderados. Nascemos para os reveses, renascemos das cinzas, viemos de um Universo Divino prontas e aptas para sermos completas e felizes. Surja, pois, o que surgir, haja o que houver, ainda que chova canivetes, TEREMOS O MUNDO INTEIRO AOS NOSSOS PÉS.
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Vocabulário:
Anfêmero – cotidiano.
Avejão – espectro, assombração, fantasma.


Fonte:
Texto enviado pela autora.

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