As núpcias do arquiduque Filipe e da duquesa Isabel ensejaram dias e dias de festa no castelo. Instituiu-se até uma nova ordem – a do Velocino Dourado. Afinal, o senhor tornava-se mais poderoso. A moça trouxera algumas cidades como dote.
Passada a lua-de-mel, Dom Filipe anunciou a primeira separação. Devia participar de uma cruzada. Nas longínquas terras dos infiéis.
Perdida no imenso castelo, cercada de condes, duques, marqueses, viscondes, barões – Isabel estaria por demais exposta ao pecado. E, na ausência de Filipe, quem a velaria? Quem a defenderia? Quem a vigiaria? Ora, um guarda. Sim, um bom e robusto vigia. Um eunuco.
E Platão se instalou no castelo, para defender, velar e vigiar a duquesa.
Longe do marido, Isabel sofria. Para onde ia, também ia o eunuco.
A beleza da senhora aturdia Platão. Dias e noites a mirá-la. No entanto, ela mal olhava para ele. Além de plebeu, eunuco. A solidão, porém, aproximou um do outro. Conversavam e até riam. Ela fazia perguntas, ele contava episódios de sua vida. Não gostava do próprio nome. Muito menos de filosofia. Se pudesse, se chamava Plutão. Adorava mitologia.
Cada vez mais aturdido, o eunuco não continha palavras para satisfazer a curiosidade de Isabel. Servira no serralho do palácio do sultão Abu Talib, em Constantinopla. Guardava as esposas e concubinas do grão-senhor. Beldades fascinantes. Nenhuma, porém, mais formosa que ela, Isabel.
E descrevia cada centímetro do harém.
De Dom Filipe nem notícias. As batalhas se sucediam nas terras dos mouros e os mensageiros falavam apenas de morte e destruição.
Insensível às dores do mundo, Platão só vivia para adorar Isabel. E morria de paixão. Amor impossível. Verdadeiramente platônico. Ora, ela casada e nobre, e ele um pobre eunuco. Não, jamais poderia possuí-la.
Cada vez mais triste, Platão descuidava-se de vigiar Isabel. Refugiava-se em seu quarto. Chorava, imaginava fugir, esquecer aquele amor absurdo. Matar-se, talvez.
Desesperado, decidiu revelar seus sentimentos à duquesa. Qual, porém, não foi sua surpresa! Ela também o amava.
Longe, muito longe do castelo, os cruzados do arquiduque enfrentavam as cimitarras sarracenas. E matavam e morriam com fé, mas sem amor.
Apaixonados, Platão e Isabel ora riam, ora choravam. Riam porque amavam. Choravam ante a deformidade dele.
Noites e noites se passaram. E mais o amor dos dois se exacerbou. Porém, como consumá-lo?
Platão se rendeu de novo à tristeza. Passava horas e horas trancado em seu quarto, longe de Isabel. Um desgraçado! Melhor morrer.
Teve então um sonho. O Dr. Hipócrates, após complicada cirurgia, tornava-o um homem como outro qualquer.
Embora médico competente, o tal Hipócrates tinha suas fraquezas humanas. Assim, só aceitava um tipo de pagamento pelo seu trabalho: Platão se encarregaria da morte imediata de Filipe. Se a cruzada durasse muito tempo, o eunuco partiria para o oriente. E ele, Hipócrates, desposaria a viúva.
Ora, o cirurgião guardava o segredo de sua técnica. Nenhum outro médico no mundo conseguira ainda realizar, com êxito, aquele tipo de implante.
Platão não aceitou de pronto a proposta. Teria de cometer um homicídio. Além disso, D. Filipe era um nobre. A vingança viria sem detença e cruel. Talvez mesmo antes do crime. Pois guerreiro, cruzado, emérito espadachim.
No entanto, para que viver, se não passava de um eunuco? Melhor selar o acordo com Hipócrates.
E partiu para as terras mouriscas.
Ao regressar, já a notícia da morte de Filipe parecia uma antiguidade. E os guardas não o deixaram transpor o portão. O arquiduque Hipócrates não gostava de cruzadas e nunca se ausentava do castelo. Isabel não carecia de eunucos.
D. Filipe, no entanto, deixara um testamento. O arquiducado passaria às mãos de quem contraísse novas núpcias com a duquesa e mantivesse Platão como “eunuco de Isabel, por toda sua vida”.
Embora caviloso, o médico acatava leis e cumpria contratos. E aceitou conversar com seu comparsa. Se o testamento garantisse a este o direito de vigiar Isabel, só restava a ele, Hipócrates, partir em defesa do cristianismo ameaçado.
E leu e releu as últimas vontades do falecido Filipe XX, o Aspado. Não havia dúvida: Platão não poderia mais exercer vigilância sobre a duquesa. Ora, deixara de ser eunuco.
Assim, porém, não pensava Platão. O testamento dizia claramente que ele seria eunuco (guardião) de Isabel “por toda sua vida”.
Por toda a vida de quem? De Platão ou de Isabel?
No calor da discussão, os dois acabaram sem razão. Enfureceram-se. De ofensas verbais passaram a agressões físicas.
Finda a luta, os corpos jaziam em poças de sangue.
Fonte:
Nilto Maciel. Itinerário: contos. Fortaleza, CE: Ed. do Autor, 1974.
Livro enviado pelo autor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário