sábado, 16 de janeiro de 2021

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 13 e 14

NOVO DICIONÁRIO


Qual não foi o pasmo de Matias ao abrir em casa o dicionário de português que comprara para o filho colegial, e verificar que ele era todo feito de palavras cruzadas.

— O garoto não vai estudar palavras cruzadas, vai estudar português — explicou ao balconista da livraria, pedindo a troca do volume.

— O dicionário está certo — respondeu-lhe o rapaz.

— Como está certo, se não começa pela letra A e termina pela letra Z, a exemplo de todos os dicionários de português desde que a língua existe?

— Estou vendo que o senhor não acompanhou a evolução do português. Com as últimas aquisições da ciência linguística e as recentes pesquisas lexiológicas, e mais o uso literário da língua, o português é hoje considerado jogo de palavras cruzadas. Cruzadíssimas.

— Hem? Não estou entendendo.

— Não precisa entender, desde que o senhor tenha habilidade para decifrar palavras cruzadas. Mestres universitários da maior categoria assim resolveram, e os editores lançaram dicionários de acordo com os novos moldes. Procure ler os tratados e revistas de lexiologia, os estudos sobre linguagem, os ensaios de crítica literária, as dissertações universitárias. Tudo palavras cruzadas. Seu filho ainda não tem a nova gramática cruzacional? É indispensável. E muito cuidado no cruzamento das ruas. As placas também vão cruzar.
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O AMOR DAS FORMIGAS

— O amor das formigas, você já observou o amor das formigas? — perguntou Otávio a Isadora.

– Não, Isadora nunca observara o amor das formigas.

— Nem eu — confessou Otávio. — Aliás, nunca ninguém observou o amor das formigas — sentenciou.

— Mas os entomologistas… — ponderou Isadora.

— Os entomologistas pensam que observaram — retrucou Otávio —, mas as formigas são muito discretas. Não são como os homens e as mulheres, que amam em público.

A conversa continuava nessa trilha de formiga, em zigue-zague, quando a formiga apareceu na ponta da toalha de mesa e foi subindo.

Outra formiga veio em seguida. As duas caminharam às tontas, depois juntaram as cabecinhas num movimento elétrico, e se afastaram, cada uma para o seu lado.

— Você acha que elas se amaram? — perguntou Isadora. — De modo algum — respondeu Otávio. — Trocaram sinais de serviço, apenas. E daí, querida, ninguém ama com a cabeça, é exatamente o contrário: cabeça atrapalha.

— Pois eu acho o contrário do contrário — disse Isadora. — As formigas podem ser mais evoluídas do que nós, e amar acima do coração, de um modo perfeito.

Mas a conversa não conduziu a nada, e os dois tomaram chá.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981

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