quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Mario Quintana em Prosa e Verso 13


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Não existe no mundo tanta gente como o número de ordem que me deram no cartão de identidade, que não vou te mostrar porque não poderias lê-lo antes de o ter dividido da direita para a esquerda em grupos de três, para depois o pronunciares cuidadosamente da esquerda para a direita. Sei que o mesmo acontece contigo, mas que te importa, que nos importa isso — antes que um dia nos identifiquem a ferro em brasa, como fazem os estancieiros com o seu gado amado?

Esse número, de quintilhões ou quatrilhões, não me lembro mais, me faz recordar que venho desde o princípio do mundo, lá do fundo das cavernas, depois de pintar nas suas paredes, com uma habilidade hoje perdida, aqueles animais que vejo nos álbuns, milagre de movimento e síntese. Agora sou analítico, expresso-me em símbolos abstratos e preciso da colaboração do leitor para que ele “veja” as minhas imagens escritas.

Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas. Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha, nem desconfia que se acha conosco desde o início das eras. Pensa que está somente afogando os problemas dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar inquietação do mundo!
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AH! ESSAS PRECAUÇÕES...

Para desespero de seus parentes, o velho rei Mitridates, como todo mundo sabe, conseguiu tornar-se imune a todos os venenos... até que um bom tijolaço na cabeça liquidou o assunto.
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HISTÓRIA URBANA

Dona Glorinha lê o convite de enterro de João, cujo sobrenome não declaro aqui, para evitar essas divertidas e constrangedoras explicações e declarações de nome igual, mera coincidência etc. Dona Glorinha conhecera João “no seu tempo” de ambos e depois nunca mais o tinha visto — pois constitui um dos mistérios labirínticos das cidades grandes isso de conhecidos e namorados se perderem definitivamente de vista. Dona Glorinha, pensando isto mesmo com outras palavras, vai ao velório de João, encaminha-se direto a ele, ergue-lhe o lenço da face, exclama: “Mas como ele está bem conservado!”

Fonte:
Mário Quintana. A Vaca e o Hipogrifo. Publicado em 1977, pela editora Garatuja (Porto Alegre).

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