análise pela Profa. Sônia Targa.
A Falecida, 1ª tragédia carioca, foi considerada um marco na obra de Nelson Rodrigues. Pela primeira vez o autor aproveitou sua experiência na coluna de contos A vida como ela é… para retratar o típico subúrbio carioca, com suas gírias e discussões existenciais. Os cenários passaram do “qualquer lugar, qualquer tempo” das peças míticas, para a Zona Norte carioca dos anos 50. Os personagens não representam mais arquétipos nem revelam alguma parte escusa da alma dos brasileiros. O que Nelson Rodrigues mostra agora é o cotidiano vulgar dos brasileiros. A falta de dinheiro, as doenças, o dedo no nariz das crianças, as pernas cabeludas de uma mulher, as cartomantes picaretas e o lado mais grosseiro da vida serão presenças constantes em suas peças daqui para frente.
A linguagem coloquial e repleta de gírias assustou a plateia do Teatro Municipal, afinal ninguém imaginaria colocar longos vestidos de veludo para assistir a uma peça onde o protagonista fala sobre futebol. Passado o estranhamento inicial da plateia com o “carioca way of life”, Nelson Rodrigues faz as pazes com o seu sucesso comercial. Talvez porque suas tragédias, quando viradas do avesso, comportem-se como comédias, preferência brasileira nos anos dourados.
Escrita em 26 dias, A Falecida foi encenada pela Companhia Dramática Nacional e recebeu direção do quase estreante José Maria Monteiro. Nos bastidores, Nelson Rodrigues apaixonou-se perdidamente por Sônia Oiticica, intérprete da protagonista feminina Zulmira. Apesar de se sentir lisonjeada com os galanteios do famoso dramaturgo, Sônia não lhe deu bola e, educadamente, deu a entender que era muito bem casada. A delicadeza, entretanto, não conseguiu evitar que o coração do dramaturgo se partisse pela primeira vez depois do fim do casamento com Elsa.
A Falecida conta a história de uma mulher frustrada do subúrbio carioca, a tuberculosa Zulmira, que não vê mais expectativas na vida. Pobre e doente, sua única ambição é um enterro luxuoso. Quer se vingar da sociedade abastada e, principalmente de Glorinha, sua prima e vizinha que não lhe cumprimenta mais. Zulmira tem uma relação de competição com a prima, chegando até mesmo a ficar feliz quando sabe que a seriedade da prima provém de um seio arrancado pelo câncer.
O marido, Tuninho, está desempregado e gasta as sobras da indenização jogando sinuca e discutindo futebol. Um pouco antes da hemoptise fatal, Zulmira manda Tuninho procurar o milionário Pimentel para que pague o enterro de 35 mil contos (o sepultamente normal, na época, não chegava a um conto!). Zulmira não dá maiores explicações nem diz como conhece o empresário milionário. Pede apenas para que o marido se apresente como seu primo.
Tuninho vai até a mansão de Pimentel e acaba descobrindo que ele e Zulmira foram amantes. Toma-lhe o dinheiro e, depois de ameaçar contar tudo a um jornal inimigo de Pimentel, consegue lhe arrancar mais ainda, supostamente para a missa de sétimo dia. Tuninho dá um enterro “de cachorro” à Zulmira e aposta o dinheiro todo num jogo do Vasco no Maracanã.
“Como definir A Falecida? Tragédia, drama, farsa, comédia? Valeria a pena criar o gênero arbitrário de ‘tragédia carioca’? É, convenhamos, uma peça que se individualiza, acima de tudo, pela tristeza irredutível. Pode até fazer rir. Mas se transmite uma mensagem triste, que ninguém pode ignorar. Os personagens, os incidentes, a história, tudo parece exprimir um pessimismo surdo e vital. Dir-se-ia que o autor faz questão de uma tristeza intransigente, como se a alegria fosse uma leviandade atroz”.
A Falecida revolucionou o teatro brasileiro da época ao abordar uma temática extremamente carioca. Foi a primeira de muitas peças onde Nelson Rodrigues colocou suburbanos frustrados e fracassados como protagonistas. Suas tragédias cariocas são mais simples que suas peças míticas, não há tantos símbolos e poesia. Em contrapartida, foi graças a elas que o brasileiro pôde se reconhecer no palco. O sucesso comercial foi muito grande e essas foram as peças mais assistidas de Nelson Rodrigues.
Para retratar fielmente o suburbano e sofrido carioca, Nelson Rodrigues trocou a poesia e as metáforas pela linguagem coloquial. As personagens conversam sobre temas triviais, comentam assuntos populares e usam muitas gírias. O autor foi muito feliz na escolha delas, já que a grande maioria transfere o leitor contemporâneo diretamente para a década de 50. Com faro para descartar modismos, Nelson Rodrigues usou em A Falecida expressões como “a polícia não é sopa”, “pintar o sete”, “pernas de pau”, “cabeça inchada”, “é batata!”, etc. Tem espaço até mesmo para as abreviações da linguagem falada, como “té logo!”, e estrangeirismos, como “all right” e “bye, bye”.
A ironia e o deboche são as características mais marcantes em A Falecida. A visão do autor é extremamente pessimista, como se no final tudo sempre estivesse predestinado a dar errado. A cartomante consultada por Zulmira numa das primeiras cenas perde o sotaque afrancesado assim que recebe o dinheiro. O filho da cartomante passa toda a consulta com o dedo no nariz, plantado ao lado da mãe. O médico, cujo nome é Borborema, diz que Zulmira não tem tuberculose, é apenas uma gripe.
Aliás, nenhum médico consultado pela protagonista lhe deu o diagnóstico certo. Determinada hora, Tuninho é mandado embora do jogo de sinuca por uma dor de barriga violenta. Assim que chega em casa, corre para o banheiro, mas está ocupado por Zulmira. Uma cena antológica acontece quando Tuninho consegue sentar no vaso e, com a mão no queixo, simula a atitude de O Pensador, escultura de Rodin.
Para conseguir mostrar com mais profundidade a realidade dura do subúrbio, Nelson Rodrigues apela para o vulgar e o grotesco.
Belos cavalos de enterros chiques são odiados porque soltam fezes pelo caminho. A mãe de Zulmira fica sabendo da morte da filha enquanto “coça as pernas cabeludas”. A prima da protagonista, Glorinha, é loira, mas oxigenada. Foge da praia não por timidez do maiô, como acreditava Zulmira, mas sim porque o câncer lhe extirpou um dos seios. Zulmira, por sua vez, tinha um cheirinho de suor que agradava o amante. O ódio que Zulmira sente do marido vem desde a lua de mel, quando ele lavou as mãos depois do ato sexual.
A falta de ilusão e o pessimismo feroz do autor mostram à plateia uma Zulmira enganada até mesmo na hora da morte, quando ela é enterrada no caixão mais barato da funerária – contrariando a regra da cultura ocidental de que o último pedido de um moribundo é lei. As personagens são mostradas em situação nada glamourosas, como espremendo cravos nas costas, fazendo necessidades no banheiro, etc.
Às avessas, A falecida é uma comédia das mais rasgadas. O dramático aparece em muitas cenas como digno de risadas. Determinada momento do 2° ato, o autor coloca na rubrica da cena em que Tuninho está viajando de táxi: “Luz sobre o táxi, em que viaja Tuninho. Táxi, evidentemente, imaginário. O único dado real do automóvel é uma buzina, gênero ‘fon-fon’, que o chofer usa, de vez em quanto. A ideia física do táxi está sugerida da seguinte forma: uma cadeira, atrás da outra. Na cadeira da frente vai o chofer, atrás, Tuninho. O chofer simula dirigir, fazendo curvas espetaculares”. Em outro momento, discute-se as razões que levaram Zulmira a se recusar a beijar o marido na boca:
“Tuninho – Afinal de contas, eu sou o marido. E se eu, por acaso, insisto, que faz minha mulher? Fecha a boca!
Cunhado – Muito curioso!
Tuninho – Mas como? – perguntei eu à minha mulher – você tem nojo de seu marido? Zulmira rasgou o jogo e disse assim mesmo: ‘Tuninho, se você me beijar na boca, eu vomito, Tuninho, vomito!’
Sogra – Ora veja!
Cunhado (de óculos e livro debaixo do braço) – Caso de psicanálise!
Outro – De quê?
Cunhado – Psicanálise.
Outro (feroz e polêmico) – Freud era um vigarista!”
Esta cena serve também para ilustrar o cuidado de Nelson Rodrigues com a caracterização das personagens de A Falecida. A personalidade tanto dos protagonistas quanto das personagens secundárias é revelada, muitas vezes, em apenas uma única frase. Às vezes, como no caso retratado acima, basta uma aparição no palco para a plateia se dar conta do tipo de pessoa. Primeira heroína frustrada de Nelson Rodrigues, Zulmira trai porque não vê muita motivação no seu mundinho.
Não tem dinheiro, não tem divertimento e não tem mais esperança de que sua vida possa mudar. Por isso concentra-se na sua morte, ou seja, em planejar nos mínimos detalhes o seu enterro de luxo. Seu marido Tuninho também é frustrado e infeliz. Não se acha capaz de conseguir um novo emprego e, por isso, resolve passar o tempo com os amigos, na praia, jogando sinuca ou falando sobre futebol. Todos têm em comum o fato de não terem o destino da vida nas mãos.
A grande inovação estrutural de Nelson Rodrigues em A Falecida está na troca de protagonistas que acontece no 3° ato. Zulmira tem a ação nas mãos nos dois primeiros atos, quando pesquisa preços para o seu enterro e visita médicos para se certificar de que está mesmo com tuberculose.
No final do 2° ato, a suburbana morre e passará o comando da peça para o marido, Tuninho. A partir daí, ele vai atrás de Pimentel para conseguir o dinheiro do enterro e descobre a traição de sua mulher. O foco narrativo muda, portanto, no meio da peça.
Mas Zulmira também tem aparições esporádicas no 3° ato, principalmente para elucidar aspectos ainda nebulosos de sua personalidade. Na cena em que Pimentel está revelando a infidelidade de Zulmira, Tuninho arrasta a sua cadeira e se coloca diante do quadro, na mesma posição de um observador da plateia. Aparece então Zulmira, que reproduz com Pimentel o contexto da traição.
O corte do flashback acontece com um grito de Tuninho, histérico com a “coragem” da mulher em traí-lo no banheiro de uma lanchonete enquanto ele esperava na mesa. Voltar no tempo para contar a traição de Zulmira foi uma solução bastante eficiente encontrada por Nelson Rodrigues. Se a história fosse apenas contada por Pimentel a Tuninho, a cena ficaria monótona e perderia parte de seu conteúdo dramático.
Outra novidade presente em A Falecida é a multiplicidade de cenários. Zulmira vai à cartomante, ao banheiro, ao quarto, à Igreja, à casa dos pais, à funerária e ao consultório, até morrer de hemoptise. Tuninho aparece num táxi, numa sinuca, na mansão do empresário Pimentel e até mesmo no Maracanã. Para poder abarcar tantas mudanças, o espaço é vazio e o único objeto fixo são as cortinas. Ao contrário do que possa parecer, a peça não ficou fragmentada e o resultado saiu original.
Frases
“A solução do Brasil é o jogo do bicho! E, minha palavra de honra, eu, se fosse presidente da República, punha o Anacleto (bicheiro) como ministro da Fazenda”.
Timbira, funcionário da funerária
“Estou com uma pena danada do Tuninho… A mulher morre na véspera do Vasco X Fluminense… O enterro é amanhã… Quer dizer que ele não vai poder assistir ao jogo… Isso é o que eu chamo de peso tenebroso!…”.
Oromar
“Mas como? – perguntei eu a minha mulher – você tem nojo de seu marido? Zulmira rasgou o jogo e disse assim mesmo: ‘Tuninho, se você me beijar na boca, eu vomito, Tuninho, vomito!'”.
Tuninho
“A mulher de maiô está nua. Compreendeu? Nua no meio da rua, nua no meio dos homens!”.
Zulmira
Fonte:
Jayro Luna.
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