A obra O calor das coisas, de Nélida Piñon, é um livro de contos que tratam de circunstâncias presentes no cotidiano das pessoas. São treze histórias nas quais é fácil perceber as mesmas preocupações da autora: a importância da palavra e a manipulação política da linguagem. Desta vez, porém, há uma grande carga de humor. De fina ironia e construção complexa para desvendar os mais recônditos cantões da alma de seus personagens.
Nélida utiliza imagens belas e delicadas para tratar das paixões humanas. Seus enredos, sempre originais, muitas vezes confundem-se com o discurso. Nélida alterna poesia e crítica, racionalidade e erotismo em páginas de leitura voraz e provocadora.
A obra de Piñon é instigante e envolvente. Ela traz em sua estrutura temática o desdobrar e o atualizar em cada publicação, seja de romances, de contos ou de ensaios. Reflete em sua obra a preocupação constante com questões referentes à criação do texto, à linguagem, à religião (panteísta ou cristã), ao mito, ao amor associado aos questionamentos do cristianismo, à paixão, à solidão humana e, entre outras, à realização feminina
Nesta obra têm-se personagens do mundo contemporâneo vivendo momentos significativos – mas não necessariamente excepcionais – e historicamente marcados.
A multiplicidade das histórias deixa ver um certo número de temas recorrentes, que se espelham entre si e se desenvolvem uns aos outros. Tem-se assim, por exemplo, o tema fantástico da união (im)possível de espécies diferentes e o da mutação humana, o do incesto e o da homossexualidade. Em todos os casos tem-se o homem infrator, ora por sua ação, ora pela inação que, nesses contos, não significa jamais fraqueza mas escolha e assunção de força. Esse homem infrator exige, limpa, ordena, organiza, que tais são os verbos recorrentes na gramática nelidiana.
Nas histórias que nesse livro se conta, não há reorganização (construção) do mundo destruído pelos personagens, pelas circunstâncias, pela narração. Quando ocorre, a auto-organização do protagonista implica a desvalorização de seu contexto, que só lhe interessa como cenário, palco de experiências próprias e não partilháveis.
De fato, tem-se nesses contos, em vários níveis e em vários matizes, a mesma narrativa de solidão, em que toda relação interpessoal é vista como radicalmente impossível e na qual é lesiva toda tentativa nesse sentido.
É por isso que não se pode, a rigor, falar da existência de diálogos nesses textos. Entre os personagens só há monólogos e o preenchimento do silêncio pelo pastiche do lugar-comum, falas que apontam o vazio de que são feitas.
Os contos “O calor das coisas”e “A sombra da caça” destacam-se na composição do livro de que participa. O primeiro por dar nome à coletânea de que faz parte, o outro por ocupar o significativo lugar de último conto do livro, como a indicar que nele se poderia buscar (como nos romances policiais) a chave para o(s) mistério(s) de sentido que se teriam enovelado até então.
Se, quando apreciados tematicamente, vê-se atravessar tais textos o sentimento de erosão, este também se exprime na linguagem. Assim, já à primeira abordagem, a dicção destes contos se mostra provocadora, elaborando uma narrativa densa, que exige toda a atenção do leitor para a percepção do seu sentido. Pode-se mesmo dizer que o discurso nelidiano revela-se uma experiência sobre as possibilidades de expressão da tensão pensamento/linguagem fora da norma linguística e que daí advém a dificuldade que oferece a seu leitor.
Nesse discurso pode-se também identificar a presença de alguns aspectos da retórica do “carnaval”, tais como o estilo grotesco como em “O calor das coisas” e “O sorvete é um palácio”.
É a presença do mecanismo da paródia que melhor caracteriza a estruturação dos mais significativos textos do livro em questão. Através de tal procedimento perpassam os mais bem sucedidos nesses contos, narrativas advindas de lugares tão variados quanto a Bíblia em “O jardim das oliveiras”; o repertório artístico popular brasileiro em “Disse um campônio a sua amada”; um determinado corpus de valores e padrões de comportamento em “I love my husband” ou “Tarzan e Beijinho”. Esses textos básicos (e considera-se como texto também o conjunto de valores e padrões de comportamento vigentes a partir dos anos 60 do século XX) constituem o indispensável pano de fundo do conto nelidiano, que os relativiza sem jamais os anular.
Estão, assim, sempre presentes, indicando o quanto o discurso da autora deles se serviu e o quanto deles se afastou e assinalando, dessa maneira, a tonalidade irônica desse discurso. Assim, por exemplo, a agonia de Cristo é convocada na expressão da angústia daquele que renega seus antigos valores, em “O jardim das oliveiras”, primeiro conto da obra. Este conto narra, em primeira pessoa, a história de um preso que não suporta ser torturado, que examina os horrores da ditadura e a covardia moral dos seres humanos. Assim como Pedro nega Cristo, o protagonista desta história pretende negar
a si mesmo.
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continua: análise dos contos .
Fonte:
Elvia Bezerra para o Passeiweb.
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