— Como vai indo seu marido, que há tanto tempo não vejo?
— Meu marido morreu há dois anos, o senhor não sabia?
Cumprida a primeira parte da gafe, saio impávido para a segunda:
— Que coisa terrível, eu não sabia! Me desculpe, mas andei viajando...
E não tendo mais o que dizer, repito para o cavalheiro que a acompanha:
— Terrível, não acha?
Mas ele não pensa assim:
— Não acho não: sou o atual marido dela.
A consciência de que a gafe em geral se compõe de duas partes distintas. Ficar sempre na primeira, jamais tentar consertar. Ao contrário da Loteria Federal, não insista, desista! Eis o que eu, empedernido praticante, tenho a aconselhar aos meus companheiros de infortúnio. A gafe é vertiginosa e se faz anteceder de uma espécie de aviso, antecipa-se na sensação de que caminhamos no ar, como num desenho animado:
— Como foi bom encontrar você! Eu já estava achando esta festa chatíssima. Vamos embora daqui?
— Não posso, sou a dona da casa.
Ou esta outra, mais comum ainda:
— Com aquela mulher ali eu não dormia nem de graça.
— Aquela mulher ali é a minha esposa.
Se o infeliz acrescentar que neste caso dormia sim, não estará apenas caindo de quatro: estará se precipitando no abismo da mais imperdoável inconveniência, que vem a ser a repetição literal de uma velha anedota.
São gafes tradicionais, decorrentes em geral das relações de parentesco ou dos encontros de circunstância, a que os mais insensatos como eu raramente escapam. Não há como resistir ao poder magnético dos assuntos traiçoeiros, que vão espalhando armadilhas a cada passo, e nos levam sempre a falar em corda justamente na casa do enforcado.
Se sabemos que a gafe é irreversível, por que tentamos teimosamente remendá-la, afundando-nos cada vez mais?
É que ela nem ao menos é sincera. Fôssemos autênticos e verazes na convivência, a gafe se desarmaria ao peso de sua própria legitimidade. E deixaria de ser gafe.
Foi essa, pelo menos, a solução encontrada por um amigo meu, vítima também dessa maldita sina, e que ontem me dizia ter-se conformado, passando a praticá-la deliberadamente.
— Você é parente dele? Que horror!
— Morreu? Meus parabéns.
— Não sei como você, tão simpática, pode ter um marido tão chato.
— Fui cair logo ao seu lado neste banquete, mas veja só que azar o meu.
— Aliás, pelo que eu soube, a senhora não é tão velha quanto parece.
— Não aguentei ler até o fim. Ah, foi o senhor que escreveu? E ainda tem coragem de confessar?
Com isso, ele passou a ser considerado homem do mais fino espírito — excêntrico, desconcertante, é verdade — mas de esmerada educação. Apesar de tudo, outro dia recebeu o troco que lhe era devido, funcionando desta vez como receptor de uma gafe, ao dizer a uma jovem, que está escrevendo um romance: a história de um mau-caráter.
E ela, inocentemente:
— Autobiográfico?
Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.
— Autobiográfico?
Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.
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