sábado, 23 de janeiro de 2021

Paulo Leminski (Versos Diversos) 8


dois loucos no bairro

um passa os dias
chutando postes para ver se acendem

o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco

todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também
* * * * * * * * * * * * * * * *  

bate o vento eu movo
volta a bater de novo
a me mover eu volto
sempre em volta deste
meu amor ao vento
* * * * * * * * * * * * * * * *  

hoje o circo está na cidade
todo mundo me telefonou
hoje eu acho tudo uma preguiça
esses dias de encher linguiça
entre um triunfo e um waterloo
* * * * * * * * * * * * * * * *  

você
que a gente chama
quando gama
quando está com medo
e mágua
quando está com sede
e não tem água
você
só você
que a gente segue
até que acaba
em cheque
ou em chamas
qualquer som
qualquer um
pode ser tua voz
teu zum-zum-zum
todo susto
sob a forma
de um súbito arbusto
seixo solto
céu revolto
pode ser teu vulto
ou tua volta
* * * * * * * * * * * * * * * *  

esperas frustras
vésperas frutas
matérias brutas
quantas estrelas
custas?
* * * * * * * * * * * * * * * *  

oração de pajé

que eu seja erva raio
no coração de meus amigos
árvore força
na beira do riacho
pedra na fonte
    estrela
        na borda
             do abismo
* * * * * * * * * * * * * * * *  

dia
dai-me
a sabedoria de caetano
nunca ler jornais
a loucura de glauber
ter sempre uma cabeça cortada a mais
a fúria de décio
nunca fazer versinhos normais
* * * * * * * * * * * * * * * *  

ver
é dor
ouvir
é dor
ter
é dor
perder
é dor

só doer
não é dor
delícia
de experimentador
* * * * * * * * * * * * * * * *  

lembrem de mim
como de um
que ouvia a chuva
como quem assiste missa
como quem hesita, mestiça,
entre a pressa e a preguiça
* * * * * * * * * * * * * * * *  

como um coto caro ao roto
incrédulo tiago
toco as chagas
que me chegam
do passado
mutilado

toco o nada
aquele nada que não para
aquele agora nada
que tinha
a minha
cara

nada não
que nada nenhum
declara tamanha danação

Fonte:
Paulo Leminski. Distraídos venceremos. Publicado em 1987.

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