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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (parte 40) Bigode na Tuba


OSÓRIO ACHOU ENGRAÇADO a moça de bigode que pintou diante dele, no ponto, logo de manhã, enquanto esperava pela condução. Lembrou da mãe que não deixava de aconselhar: “Meu filho, com mulher de bigode, nem o diabo pode”. Aquela fêmea, contudo, trazia no rosto o sorriso descontraído da Joss Stone. Osório era gamado — gamado não, doido varrido maluco de pedra, embasbacado de carteirinha e não mudaria a sua preferência nem que a cantora inglesa pintasse diante dele de cueca samba canção, falando grosso, ou fumando um charuto cubano de Fidel Castro ou usando bigode à Olívio Dutra.

— Será que ela usa esses aparelhos que são vendidos por toda parte para fazer a barba? — cogitou com seus botões. Barba não, bigode... o dessa criatura está perfeito... pelo menos, ela cuida com apuro da epiderme...

Pensou, entretanto, em sua namorada, a Edifusa. A Edifusa, antes dele, havia namorado o Bigorna, um camarada alto e magro, grosso nos modos de tratar com as pessoas. Bigorna tocava tuba na Orquestra Sinfônica de São Paulo. Por isso, a Edifusa largou do sujeito. Sem contar que não parava em casa, vivia viajando para baixo e para cima e, quando dava o ar da graça, geralmente de quinze em quinze dias, não desgrudava da tuba. Edifusa reclamava que o cidadão queria que ela aprendesse a assoprar o instrumento. Edifusa, batia pé e nunca quis aprender coisíssima nenhuma, ainda mais tendo que botar na boca um “treco controlado por válvulas e feio pra chuchu igual aquele”.

— Prefiro assoprar um órgão! — disse certa vez à figura do ex ao seu ex.

— Órgão não se assopra. — de igual maneira teria respostado (*)  o mala sem alça, à contragosto. Órgão se toca com os dedos... tuba é melhor, Edifusa. Não cansa as mãos.

Ao que Edifusa insistia mudando o rumo da prosa:

— E quem toca tuba, o que é? Tubeiro, tumbeiro, tubista, ou tubuleiro?

— Músico, Edifusa. Músico. Quem toca tuba é músico. Eu toco tuba na Orquestra Sinfônica de São Paulo por partitura.

O primeiro ônibus se fez em carne e osso e a Cinderela de bigode não embarcou. Outros que esperavam levantaram acampamento. Só ficou ele e ela. Ela e ele. Ele, esperto e atento, aproveitou esse interregno de tempo e atentou melhor para a gazela. Um pedaço de mulher. Magra como ele gostava, altura mediana, atraente, dona de um lindo par de pernas, rosto bem trabalhado, e o mais espetaculoso. Os cabelos cor de mel compridos e bem cuidados, caindo sobre os ombros, em cascata estonteante. Só o bigodinho tirava um pouco a graça. No resto, estava longe de se jogar fora. Entre ela e a Edifusa, ganharia pontos, sem dúvida alguma, a incógnita deusa, apesar do bigode. Por um momento se imaginou nos braços dela, agarrado, como dois pombinhos apaixonados. Será que o bigode atrapalharia quando começasse a sentir a sua pele?

Deu asas a imaginação. O bigode faria cosquinha? Edifusa vivia reclamando que o do Bigorna, seu ex, tirava a sua concentração. O trocinho espetava, justo na hora das trocas das permutas dos afagos mais acentuados. Chegava mesmo a sentir arrepios, a ponto dos pelos de seu corpo encresparem de tanto que se assanhavam:

— Bigorna, não gosto de homem de bigode. Dá gastura... (*)  não adianta fazer a barba e não raspar a droga do bigode. Por que não faz, logo, de vez, barba, cabelo e bigode?

— Edifusa, o que você tem contra meu visual?

— Nada. Só maneira de falar....

Bigode, bigode, bigode. Tudo girava em torno dele. Pintou outro coletivo. De novo, por azar, a linha que o deixava na porta da empresa. Vazio, com meia dúzia de gatos pingados. A bela do bigode não deu sinal para o motorista. Nem ele.

Por certo, ao Osório a partir da perda desse buzu, ficava claro e evidenciado que chegaria fora do seu horário estabelecido. Diria ao chefe que o salto de seu sapato se soltara e, em razão disso, tivera que voltar em casa. Uau! Osório se mostrava contente com a sua decisão de ter se prostrado no ponto junto com aquela estrangeira que ele via pela primeira vez. E mais. Satisfeito com a mentira que contaria para engambelar o patrão. A do salto ter se soltado cairia como uma dádiva do céu. Mais criativa que a gafe contada por sua colega de serviço, a Fulmênia, na quarta passada. A funcionária chegou com uma hora e meia de retardo para bater o cartão contando a lorota de que haviam roubado seu aspirador de pó justo na hora em que trancava a porta da sala.

Meia hora depois, o terceiro ônibus sorrindo igual mala velha. Osório imaginou: “Agora a bigoduda se põem em marcha e eu pulo no seu vácuo”. Ledo engano! A dita cuja continuou ali, em pé, firme e plantada, sem se mover. Estaria esperando carona? Claro, alguém passaria e a arrastaria de carro. Suas suspeitas se confirmaram no instante em que, pela décima vez, a irrequieta  consultou o relógio de pulso. Osório, de repente, colocou em dúvida uma dúvida que até então ele mesmo tinha dúvidas se daria certo. Matutou: “E se essa história do meu sapato ter se soltado não colar? Vou ter o dia cortado”. O celular tocou. Osório encarou a moça, ou melhor, depositou as suas aflições no bigode dela. De novo, outra arrepsia (*), desta vez mais pirrônica (*) e contundentemente pertinaz: “Atendo ou não atendo? A droga da campainha não dava trégua. Espiou, sabendo de antemão, quem importunava. A Edifusa:

— O que você quer?

Edifusa parecia meio apreensiva e agitada:

— Amor, onde você está? Liguei no seu serviço e a secretária disse que você ainda não passou pela recepção!

— Perdi o ônibus.

— Perdeu como, amor?

— Perdendo, ora bolas.

— E agora?

— Meu sapato quebrou a sola... ou soltou, sei lá. Tive que voltar em casa e calçar outro par...

— Ta legal, amor. Mas você está bem?

— Ótimo.

— Ok, meu príncipe. Bom serviço. Beijos. Te amo!

Por azar, novo ônibus apontou na esquina. Diabos. Nada. A Majestosa do bigode não se decidia, nem ele. Firme e forte, ela se mantinha em pé e ele, idem, só filmando, os olhos atentos e esbugalhados no bigode. O celular novamente quebrou as suas divagações mais extravagantes:

— Edifusa, você de novo? O que foi dessa vez?

— Liguei para sua mãe, minha sogra. Ela está preocupada...

— Preocupada? Com o quê?

— Disse a ela que você chegaria depois da hora normal no emprego porque o seu sapato deu um problema no motor de arranque...

—... E ela?

— Garantiu, de pés juntos, que você não voltou em casa. E mais: seu quarto está do jeito que ela arrumou assim que você botou o nariz pra fora. O que é que está havendo?

Osório ia responder, mas se calou porque nesse exato momento, a estonteante do bigode se aproximou e puxou conversa. Constrangido, o rapaz não sabia se continuava falando com a namorada, ou se desligava e respondia à pergunta que a guria  lhe havia formulado. Optou por desligar. Porém, tarde demais. Edifusa, apesar do barulho reinante, conseguiu escutar a voz da outra. Fula da vida, Edifusa não se fez de rogada. Voltou à carga, agora com insistência descomedida. Sem jeito, Osório fez ouvidos de mercador. Por fim, como a praga da sua metade da maçã não desistia, resolveu. Mandaria a inconveniente da Edifusa às favas e fim de papo. Todavia...

— Sua mulher?

— Não.

— Namorada?

— Não tenho. Ando à cata de uma...

O caldo engrossou os ânimos:

— Osório seu filho de uma égua. A égua da sua mãe, minha sogra, que me perdoe. Quem é essa vagabunda que está ai ao seu lado?

Nessa altura da bomba estourada, surgiu um carro buzinando. A Rainha do bigode ficou faceira, ou melhor, ela toda em sua alegria infinda se abriu num gesto de alegria imensa que engalanou tudo ao seu redor. Até o bigode ficou mais envolvente:

— Legal te conhecer. Meu nome é Monique. A gente se “esbarra” outra hora...

Em seguida ela abriu a porta e acenou um adeus. Osório ia vomitar algo, mas estancou, atônito. Reconheceu, de imediato, aquele automóvel. E também atinou com quem pilotava o volante. O desgranhento do Bigorna. O ex da Edifusa, o tocador de tuba da Sinfônica de São Paulo. Mas alto lá: ele não estava viajando? Pois bem! A história do sapato não colou com o chefe. Osório se esqueceu que só usava tênis.
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* Vocabulário:
Respostado: dado em resposta,
Gastura:  arrepio, mal-estar,
Arrepsia:  dúvida, indecisão, vacilo
Pirrônica: Pessoa teimosa, cabeçudo, rabugento


Fonte:
Texto e vocabulário enviados pelo autor.
in Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da Vida na Privada.

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (parte 39) Pivô



RODRIGO COMPLETARIA seis anos de casado. Para comemorar o evento, programou uma festinha íntima: só parentes e amigos mais chegados. O encontro aconteceria no domingo, na casa dos sogros, os  pais de Laura, a esposa, com quem tinha dois filhos: Thiago, o caçula, de três anos, e Luciana, de cinco. Durante a semana, a dupla ficou por conta dos preparativos. Carne para o churrasco, carvão, bebidas, convites, refrigerantes, além dos docinhos e salgadinhos, o que seria servido no almoço, na sobremesa... enfim, tudo precisava estar nos conformes, nos mínimos detalhes. E, assim, foram vistos, revistos e repassados, cada etapa, para dar certo e a comemoração se tornar inesquecível e marcar o momento, para sempre. E, de fato, marcou.

De fato, no domingo, a casa se apinhou de encômios e júbilos exultantes. Tinha gente saindo pelo ladrão. O Rodrigo e a Laura  não contavam com um número tão expressivo de amigos e amigas que pintaram, de última hora, tanto da sua parte como das relações da esposa. Até um tio que residia nos cafundós do interior de Minas Gerais resolveu dar os ares da graça, trazendo, a tiracolo, a família. Telefonou confirmando a presença. Não deu para trás. Viajou mais de oito horas e chegou logo depois das cinco da tarde. Quando a buzina do seu carro soou forte e, em seguida a campainha, Rodrigo pediu licença à turba animada e se dirigiu à porta principal para receber os ilustres convidados.

— Tio Léo, quanto tempo?

Em meio a desenfreada aglomeração dos tresloucados, tio e sobrinho trocaram fortes e fraternos abraços.

— Espera ai, cadê a tia?

— Ficou para traz tirando os seus presentes do carro.

— Presentes, tio?

— Claro, trouxemos três. O nosso e o de sua prima Keylla. Acaso você se esqueceu dela?

— Meu Deus, tio, faz tanto tempo que não nos vemos...

— Exatamente meu caro sobrinho. Dezoito anos. Na derradeira vez, a Keylla contava apenas doze e, você, quinze!

Mal acabara de pronunciar estas palavras, surgiu, na varanda, à tia Helena, cheia de bolsas e, atrás dela, Keylla, a prima.

Rodrigo se abriu num sorriso grandioso e correu para saudar a velha tia.

— Tia Helena! Que prazer em revê-la.

— Você continua um gato. Aliás mais bonito até que da última vez em que te dei a bênção. Lembra da Keylla?

Rodrigo então desviou os olhos para a prima. Neste momento o céu desabou sobre a sua cabeça. Literalmente. Ele se deparou com uma figura fascinante e inimitável. Uma menina ingênua que se tornou mais bela, à medida em que os seus pensamentos e lembranças iam despindo cada centímetro do seu corpo escultural. Rodrigo pensou, de repente, estar diante de uma fada madrinha, caída de algum lugar do espaço. Nossa! Aquele mulherão que estava ali, bem diante do seu nariz, carregava uma formosura estonteante. Keylla, a prima distante, agora aos trinta, destoava de tudo o que estava acostumado a ver em reuniões daquela natureza. A moça, por seu turno, parecia, na verdade, um diamante brilhando entre cascalhos e pedregulhos.

Seus olhos de um azul muito forte, vistos de perto, se tornaram fascinantes: uma tonalidade suave de azul-esverdeado, circundava por um halo mais escuro. Lembrava safiras, com incríveis dourados no meio. Para completar a magia, os cílios longos e espessos, as sobrancelhas delicadamente arqueadas. Havia uma pintinha minúscula, quase imperceptível, pouco acima do lábio superior  esquerdo, tornando a boca sensual ainda mais provocante. Apesar do símbolo de pureza e inocência que o vestido longo e branco insinuava, fazia emanar, de dentro de si, uma sensualidade sutil e natural, capaz de despertar o interesse mais básico de qualquer homem menos atento para as delícias do amor.

Mesmo passo, parecia que ela não tinha consciência do efeito  que passou a exercer a partir daqueles segundos sobre o primo Ricardo. Nenhum dos dois, verdade seja dita, fez absolutamente alguma coisa ou gesto, para se mostrar. Nenhum deles provocou, nem flertou para atrair a atenção. Também não precisava. Não carecia. A mãe natureza abençoara, de pronto, aquele longo interregno e se sentia feliz por vê-los, de novo, na mesma sintonia. Keylla possuía uma  performance perfeita, incontestável, além de uma vibração muito forte que se irradiava naturalmente por todo o seu entorno.

— Puxa! Como você está linda!...

— E como você se transformou num pedaço de mau caminho...!

— É você  mesma, prima, ou os meus sentidos estão me enganando?

— Veja por você mesmo. Venha cá...

Do nada, Ricardo foi. Se sentiu ridículo por não saber o que responder à bela.  Como um felizardo que houvesse descoberto um tesouro escondido, em uma ilha deserta e tivesse medo de contar o segredo à alguém, não pensou duas vezes. Obedeceu sem esperar segunda ordem. Pulou no pescoço da graciosa e a envolveu com uma ternura antiga, uma afeição adormecida, uma brandura repletada de uma maviosidade que não precisava de palavras. Laura, a esposa, neste exato momento, surgiu do nada, entremeada entre o furdunço de cabeças da galera que gritava e algazarriava atabalhoadamente. Ao lado dela, os filhos Thiago e Luciana. No amplexo demorado e aderente que trocaram, nas carícias que permutaram, frente aos demais, um impasse criou vida e forma.

Laura se sentiu pequena, diminuída, vazia, traída, humilhada e, pior, amedrontada pelo negror de um passado que, bem sabia, sempre estivera vivo e pulsante. Sabia da antiga paixão de seu marido pela prima. Um “primeiro amor” como um flagelo que nenhum dos dois conseguira arrancar de dentro da alma. Tomou uma decisão extrema e merencória. Sem que ninguém percebesse (e, de fato, ninguém se deu conta) se afastou dos filhos, e sem dizer uma palavra, caminhou ligeira, para à saída, o peito arfando em grito silente, todavia esbagaçado e aflito. De lá, sem que vivalma desse por sua ausência, ganhou a calçada da rua e, desde este ocorrido, nunca mais foi vista.

Fonte:
Texto enviado pelo autor. Integrante da série Comédias da Vida na Privada.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 37) Chá de panela

O CONVITE ENDEREÇADO à Felisbina Monteverde, estava sobre uma espécie de aparador de canto, sobressaindo, ao lado dele, um espelho oval enorme. Enfiado entre um monte de porta-retratos, um esquecido envelope branco, de tamanho grande, jazia silencioso, à espera de que alguém, ao menos, se lembrasse de que ele estava ali. Também marcando presença, no velho móvel, dois castiçais que ela havia trazido de uma viagem de fim de semana, numa excursão que fizera à Rua Vinte e Cinco de Março, em São Paulo. Nessa peça, ficavam também, o telefone de linha, e, praticamente, todas as chaves das portas da casa. Enfeitando o rosto do envelope, um punhado de coraçõezinhos azuis e algumas rosas de cores às mais diversas, em cima do que parecia ser uma mesa com xícaras repousando sobre pires coloridos, destoando, entretanto, do bule que dava a impressão de ser de alumínio.

Também se destacavam quadrados brancos e pretos, como um tabuleiro de xadrez, com os guardanapos, ao lado, dobradinhos e à espera de serem usados. Felisbina pegou o curioso envelope, abriu e leu um bilhete que veio grampeado a um cartão-convite. Dizia o seguinte. “Amiga, finalmente vou desencalhar. Deixarei de ser solteira Meu casamento está marcado e será dentro em breve”. CONVIDO VOCÊ PARA O MEU CHÁ DE PANELA QUE DAREI NO DIA DE HOJE”. Abaixo, vinha o dia e a hora, sublinhados com uma caneta esferográfica vermelha, e, claro, o nome de quem promovia o tal encontro: “JULIETA”. Em seguida, o local onde aconteceria o evento. Terminando a singela convocação, uma frase simples, mas de certa forma impositiva: “CONTO COM A SUA PRESENÇA. NÃO FALTE!”. A seguir, um “EM TEMPO” e, na frente, uma pequena linha pontilhada onde a beldade que deixaria a solteirice colocou o que gostaria de ganhar.

E o que exatamente a Julieta gostaria de ganhar da amiga Felisbina Monteverde? Com a mesma caligrafia feia, de quem escreveu o nome dela, como anfitriã, porém, em letras garrafais, o desejo incontido: “ESCUMADEIRA PARA ARROZ COM CABO AZUL”, destaque, entre parentes, a loja e o endereço onde o tal apetrecho poderia ser encontrado. Casa dos Quebra Galhos. E uma observação de suma importância: “FAVOR DISFARÇAR O PRESENTE”. Terminava, por sinalizar o endereço da casa de festa onde aconteceria o encontro. “RUA DAS OLIVEIRAS, 1743 ao lado do EDIFÍCIO POLPA DE LARANJA. O referido prédio é uma torre alta e magra (dá a impressão de estar fazendo regime para se manter em pé), de trinta andares com pastilhas brancas desbotadas de ambos os lados. Em frente a ele, tem uma farmácia. Depois de passar a 100% DVD, uma loja que aluga fitas e bolachões antigos, verá a casa onde receberei as minhas convivas. Não tem como errar”.

Na verdade, o que fez a Felisbina lembrar do tal chá de Panela foi o telefone que, de repente, passou a tocar insistentemente. Ao atendê-lo, sem querer, topou com o convite. Tratou de se livrar do chato que estava do outro lado da linha, assim que leu o dia e a hora. Deu um tapinha na testa, apreensivamente apavorada:

— Caraca. É hoje. Tenho menos de uma hora!

Ligou imediatamente para uma vizinha que morava dois andares acima do seu.

— Malvina? Sou eu, Felisbina...

— Quem? Felisbina? Não conheço nenhuma...

— Do seu prédio, apartamento 405.

— Ah, Felisbina, claro, desculpa pela gafe. Esposa do falecido Carlos Bolinha. Que cabeça, a minha. O que você manda, amiga?

— Estou com um problema. Aliás, um problemão...

— Posso ajudar?

— Tenho de estar em um chá de cozinha, ou de panela, sei lá, qual a diferença, dentro de uma hora e ainda não comprei o presente...

— Calma. O que a pessoa quer ganhar?

— Espere. Deixa ver aqui... li e esqueci.

— Achei: uma escumadeira com cabo azul.

— Fácil, amiga. Vá até o centro, na Casa dos Quebra Galhos e encontrará o que precisa.

— Eu sei. O problema não é esse...

— E qual é?

— A Julieta...

— Quem é Julieta?

— A do chá...

— Ah!, tá bom. E ai?

— Ela quer que eu disfarce o presente. Como é que se disfarça uma porcaria de um presente?

— Qual é mesmo o bagulho que ela pediu?

— Uma escumadeira com cabo azul.

Silêncio momentâneo. Aflição de ambos os lados.

— Amiga, vou ligar para a Chiquinha. Ela deve saber. Nunca soube que alguém disfarçasse um presente...

— Nem eu! O que é que eu faço?

— Aguarde. Ligarei para ela e, em seguida, voltarei a falar com você.

Malvina desligou o telefone com um “tchau, não saia daí”. Menos de um minuto depois, retornou a ligação.

— Amiga, desculpe. Qual é mesmo o seu telefone?

— Malvina, você acabou de me ligar...

— É verdade. Desculpe. Que cabeça!

Felisbina estava a ponto de arrancar os cabelos quando o telefone gritou, de novo, dez minutos depois. Chegou a tomar um baita de um susto.

— Alô? Quem é?

— Sou eu.

— Eu quem?

— Malvina, sua amiga, dois andares acima do seu pavimento.

— Ah, desculpe. Fala minha amiga. Conseguiu contato com a Chiquinha?

— Sim.

— E o que ela falou com relação a disfarçar um presente?

— Ele me disse para você ser prática. Nada de ir em loja e gastar dinheiro com bobagens. Simplesmente se dirija  a  uma papelaria qualquer aí no centro e encomende uma caixinha de presente bem bonita e, dentro dela, não coloque nada.

— OK. E quanto a Julieta abrir?

— Ela não irá encontrar absolutamente nada, é evidente.

— Mas e a escumadeira de cabo azul?

— Diz a ela que, como pedido, você disfarçou.

— Ela vai saber que é sacanagem de minha parte. Poderá até cortar a nossa amizade...

— Qual o quê! Se ela reclamar, você alega que ela foi com tanta sede e afoiteza ao embrulho, na hora de abrir, que não notou a escumadeira azul no fundo da embalagem. Joga aquela balela do “você não olhou para o meu presente com os olhos da alma, e, sim com a visão da ganância desenfreada". Apimente a cena com umas gotinhas de “magoei”. Sempre cola...

E terminou, acrescentando:

— ...Precisa ter sensibilidade, amiga. Aprenda a ter sensibilidade que você verá a linda escumadeira de cabo azul que lhe trouxe.

— Sei não. Parece esquisito...

— Vai na fé. Dará certo. Confia.

Felisbina passou numa papelaria, comprou uma embalagem chamativa, pediu um embrulho caprichado com direito a lacinho e tudo e se mandou para o local indicado no bilhetinho.

Logo na chegada, por sorte, deu de testa com a Julieta recebendo a galera na porta de entrada. Assim que avistou a amiga, tremeu na base. Não poderia desistir. Já estava lá, carecia seguir em frente. Tentou se achegar à jovem o mais rápido possível e entregar o pacote lindamente preparado. Três ou quatro pessoas, todavia, ao mesmo tempo, se aboletaram ao seu entorno. Sem perder tempo, Felisbina passou-lhe o presente, ou seja, a caixa vazia, o que não causou nenhum alvoroço, de pronto, em face, claro, das demais criaturas que se abraçavam à felizarda, em jubilosa efusividade. Uma semana depois, o telefone tocou. Era a Julieta.

— Oi, Felisbina. Tudo bem? Desculpe, aquele dia quando me entregou o presente, não pude lhe dar muita atenção. Me perdoa, por favor.

— Nada a desculpar. Fique tranquila. E aí, gostou da escumadeira de cabo azul?

Nesse momento, Julieta começou a chorar copiosamente.

— O que foi minha amiga? Não gostou da escumadeira?

— Felisbina, você não vai acreditar. Em meio ao furdunço, alguém me roubou a lembrança que você tão carinhosamente me deu de coração...

— Credo, amiga, logo o meu presente que lhe dei com todo o amor do fundo de minha alma?! Como tal fato pode acontecer?

— Não faço a menor ideia. O sem vergonha ou a vagabunda, sei lá, teve a ousadia de levar o presente e deixar a caixa vazia...

Felisbina, por pouco, não caiu na gargalhada. Achou melhor conter o riso e se solidarizar às frustrações da amiga.

— Meu Deus, Julieta, que horror!

— Bota horror nisso, amiga Felisbina. Estou pasma!

— Eu idem. Você não imagina o meu espanto. A que ponto as pessoas chegaram.

Fonte:
Texto enviado pelo autor, integrante de seu livro “Comédias da Vida na Privada”.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 36) Desafios

ELISEU, UM RAPAZ metido a galanteador de mulheres, entra num barzinho de um bairro próximo onde mora, acompanhado de um amigo. O amigo, não outro, senão o Beto. Beto é mais comedido, ou seja, não é lá tão cara de pau, pelo contrário, medroso, não ultrapassa os limites da sua timidez. Ao se acomodarem, Beto enxerga uma moça linda, sentada numa mesa com mais duas companheiras. Resolve sacanear o amigo e, sem pensar nas consequências, solta o desafio:

— Eliseu, está vendo aquelas gatinhas ali? Pago duas caixas de cervejas se você for até  lá e jogar o seu charme para a mais elegante delas, a fofinha de blusa azul e sainha vermelha. Olha que gata. Meu Deus, se eu tivesse sorte!

Eliseu ao olhar para a jovem, e notando, de fato, a sua formosura, aceita a aposta.

— Beto, duas caixas de cervejas?

— Sim.

— Fechado. Veja, e aprenda.

Beto não perde a pose:

— Duvido que consiga...

— Prepare o bolso. Vai ser barbada.

Eliseu se levanta, caminha até a jovem, e começa a xavecar:

— Boa noite, senhorita. Como é seu nome?

A moça se vira para o desconhecido, devolve o boa noite e indaga:

— Não me lembro de você!

— Mas eu de você, pode ter certeza. Só não me recordo do seu nome. Nos esbarramos uma vez...

— OK. Safira. E o seu?

— Eliseu, às suas ordens. Eu sabia que estava diante de uma pedra preciosa. Encantado!

— Vamos direto ao ponto, Eliseu. Posso saber o que deseja?

Em resposta, o engraçadinho manda brasa:

— Tem feitiço teus olhos
São os mais belos do mundo
Olhos assim, não existem mais, mais... mais...

A beldade se espanta e, ao mesmo tempo, se sente lisonjeada.

Para não fazer papel de tonta e deseducada, na frente das amigas, se abre num sorriso e dá o troco à altura. Abre o gogó:

— Fujo, de mim
Procurando, esquecer
Que você existe...

Eliseu, bate palmas e segue, insistente:

— Receba as flores que lhe dou...

Safira, sem deixar de lado a manifestação de contentamento, emenda:

— Enfia na cesta do lixo, que ‘já murchou...’.

Todas, as demais se precipitam numa gargalhada estrondosa.

Eliseu, de novo sem perder a linha de pensamento:

— Negue,
O seu amor
E o seu carinho
Diga, que você já me esqueceu...

Safira, fazendo carinha de zanga, rebate:

— Saia do meu caminho
Eu prefiro andar sozinha
Deixa que eu decida a minha vida...

Sem pestanejar, Eliseu se aprofunda:

— Quero me casar contigo
Não me abandones tenha compaixão...

Safira, descobre um lado seu, que até então desconhecia e se espanta com a sua audácia. Recatada, não dava trela às pessoas que não faziam parte do seu mundinho de amigos mais íntimos. Todavia, percebe que as colegas estão gostando e se divertem, batendo palmas, seguidas de sonoros gritinhos vibrantes com o rumo da brincadeira. Resolve levar adiante a encenação, curiosa para ver como seria o desfecho. Manda vê, na réplica, sem pestanejar:

— Talvez um dia
Quem sabe,
Encontre a felicidade
Achando alguém pra valer,
Até morrer...

Numa antevisão dos futuros copos de bebidas que teria pela frente, e se sentindo o rei da cocada preta, Eliseu contra-ataca:

— Diga logo de uma vez
O que você quer de mim
Não me torture mais...

A esta altura, Safira foge à sua própria regra. Se levanta e encara Eliseu bem dentro dos olhos. E estrondeia, com a maviosidade do seu brado percuciente:

— Vá pro inferno, com seu amor
Só eu amei
Você não me amou...

Enquanto as amigas se rasgam e aplaudem, entusiasmadas, o gerente, sisudo e de pouca conversa, lá do caixa, assiste a tudo sem perder um detalhe. Achando se tratar de uma importunação, convoca os dois seguranças que prestam serviços à casa. Com eles, à tira colo, se achega rebolativo à beira das garotas. Desmunhecando, em excesso, expõe os fatos segundo a sua ótica:

— Amigo, boa noite. Rogo que saia do recinto ou serei obrigado a colocar o senhor e o seu amiguinho, ali atrás, para fora, de maneira não muito elegante. O prezado está aborrecendo, deveras, as nossas clientes. Olhe em redor. Os  frequentadores se mostram descontentes com a sua intromissão.

Eliseu, entretanto, entusiasmado, pior, abrasado pelo rumo que o evento provocara, não leva as palavras do gerente à sério. Dando uma de desentendido, cai na besteira de peitar o sujeito. Canta para ele, à imitação de Naiara Azevedo:

— Nãaaaao!
Não tente se explicar, não tem conversa
Pois tudo que disser, não me interessa
Você não presta... você não presta...
Vocêeeeee não presta!

O gerente, espumando de enfurecimento, sinaliza para a dupla de armários embutidos que, imediatamente entram em ação. Eliseu e Beto são, literalmente, atirados como dois sacos bêbados, no meio da avenida.

Fonte:
Texto enviado pelo autor, integrante de seu livro “Comédias da Vida na Privada”.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 35) Terminal

A MORTE CHEGA para buscar mais um. Trata-se do número 2674238549582408128596848695086, ou melhor, desta senha. A pessoa, assim que for encontrada, deverá deixar imediatamente o mundo dos vivos. A Morte se disfarça numa linda mulher de arrepiar os cabelos, até de quem não os possui mais. O rosto é jovem, o sorriso impecável, a voz maviosa. Traz, na mão, o celular com uma agenda eletrônica conectada diretamente com o Homem Lá De Cima.

O sujeito a ser levado, pelo horário (seis horas da manhã), deve estar purgando os pecados num vagão de metrô em direção a estação Clínicas. Talvez não o que ela acabou de entrar. É preciso procurar minuciosamente. O futuro ‘de cujus’ está indo em direção ao trabalho. A Morte tem a ficha dele completa, porém, em face de ter havido um probleminha de transmissão, justamente na hora do ingresso dentro do vagão do metrô, a Internet deixou de estar conectada com o provedor do Rei do Universo. Por este motivo, o aparelho da Morte não está conseguindo visualizar, na telinha quem é o sujeito.

Neste passo, apesar da ausência momentânea da internet, a Morte sabe que a criatura pode andar por ali, em algum lugar, agrupada aos demais que viajam furdunceados numa algazarra só. É um jovem de trinta anos, 1.78 de altura, 75 quilos, olhos penetrantes e sedutores. Está indo para seu trabalho, no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Em face do rosto ter desaparecido da sua telinha, a Morte precisará usar de outro recurso mais rudimentar, qual seja, averiguar um por um o sujeito a ser pinçado. Como senhora e representante da vida e dos destinos de cada ser vivente, porá em prática um ensinamento aprendido com o Altíssimo.

“Se na hora agá houver alguma dúvida, ou interferência entre nosso servidor e os computadores aos cuidados da turma do anjo Gabriel, use seu charme. Murmure, ao passar pelos rapazes, de ouvido em ouvido, a senha desta pessoa que resolvi trazer aqui para cima. Ele é um excelente infectologista, apesar de muito jovem. Todavia, talentoso, criativo, tem garra. Me ajudará com as almas que chegaram e não param de ser enviadas aqui para cima, a todo instante, vitimadas pela Covid-19. Não o perca de vista, nem erre o alvo. Este menino nos será muito útil por aqui”.

Assim, pois, viaja a morte em direção à Terra. Aqui chegada, procura seguir à risca conforme lhe ordenou o Criador. Enquanto percorre vagão por vagão, cada jovem com as características físicas do futuro defunto, a princesa murmura, em seu ouvido a senha, de forma que só ele escute a sua voz adocicada e maviosa. Voz que se manifestará, unicamente para o escolhido do Pai Celestial, não sabendo ela, contudo, qual será a sua reação. Poderá ser de espanto, com a preciosidade aceitando o desfecho trágico do imediato ou, no pior dos mundos, tentando fugir.

A peregrinação começa. No primeiro trem, vagão por vagão, nada. No segundo, idem. Ninguém lhe dá sinais positivos. Delicada e sem pressa, segue a Morte, incansável, laboriosa e atenta. Muda novamente de trem. Desde que chegou, mil e quatrocentos rapazes (soprados nos ouvidos) não lhe deram atenção. Minutos depois, em outra composição, a conta dos ‘buscados’ sobe para três mil e novecentos. Nada do ‘escolhido’ responder positivamente. Final do comboio, mais um metrô se vê vasculhado. Exausta, a Morte se prepara para dar um tempo. Se materializará num restaurante para almoçar.

Pensando, pois, em sair daquele trem e pular em outro, resolve antes de definitivamente, pôr em prática o seu desejo, dar uma derradeira espiada. Está faminta. É justamente nesta hora, que avista um jovem quase perto de uma das portas de acesso. Aquele deus grego, olhos serenos cor de ‘perigo à vista’, que hipnotizariam, sem tirar nem destirar, uma jovem por mais fria que fosse, se assemelhava com as características ditadas pelo Senhor dos Exércitos. A internet, ainda sem sinal. A Morte não perde tempo. Se aproxima, passo a passo, pedindo licença a um e outro e, finalmente, ladeada diante daquele ser maravilhoso, sem mais delongas, lhe assopra a senha. O moço bonito e morigerado se vira, num ímpeto para ver quem ternamente lhe falou alguma coisa no pé do escutador de novelas.

Se depara com uma jovem encantadora. Figura adorável, esbelta, jamais vista em toda a sua vida. Rosto de maçãs salientes, pele de porcelana, corpo bem torneado e flexível. Em sua mão direita se aninha um belo aparelho celular revestido numa capa cor de rosa. Embasbacado, ‘o selecionado’ lhe dirige a palavra.

Ele
– Oi

Ela
– Olá, gato.

Ele
– Nos conhecemos?

Ela
– Acredito que sim...

Ele
– De onde?

Ela
– Acho que de algum lugar muito longe e especial...

Ele
– Tenho certeza que não. Uma coisa bonita e radiante como você eu jamais esqueceria. Este sorriso, então, é seu cartão de visitas...

Ela
– O seu também é esplendoroso.

Ele
– Obrigado.

Ela
– Está indo para onde?

Ele
– Na verdade, para meu trabalho. Por sinal, super atrasado. Sou médico. Estou empenhado numa fórmula nova, uma futura vacina que poderá colocar um ponto final na pandemia da Covid-19. Se você tiver alguma ideia, eu saio às vinte horas. Deixo meu telefone, endereço, WhatsApp, e seja lá o que for que decida, depois deste horário, estarei à sua espera e levarei você para onde quiser... ou me passe, igualmente, seus contatos...

Ela
– Acabou de me conhecer. Nem sabe quem sou. Posso ser uma pessoa má, um ser vindo de outra galáxia que pretenda ‘roubar’ você e arrastar a sua existência terrena para algum lugar de onde não tenha como voltar...

O airoso se abre num sorriso mais espetaculoso e travesso.

– Com você eu iria para qualquer lugar. Faria isto de olhos fechados...

Ela
– Vejo que você, além de bonito, é um cara sem medo.

Ele
– Com você a meu lado, acredite, meus medos e receios seriam capazes de criarem asas e voarem para bem longe...

Ela
– Prove que não tem medo de mim...

Ele
– Simples. Diga para onde gostaria de estar me levando depois que eu saísse do trabalho e...

Ela
–... O que diria se eu resolvesse levar você para conhecer o infinito?

Ele
– Infinito? Eu adoraria!

Ela
– Eu não teria tanta certeza...

Ele
– Então me permita, com todo respeito, escolher um lugar mais aconchegante. Pode ser?

Ela
– E onde seria?

Ele
– A um restaurante que costumo frequentar. Tomaremos um vinho, ou se você preferir, uma cerveja... em seguida, jantaremos... depois deixaremos que o momento seguinte nos conduza... como dizem por ai, ’a noite é uma criança...’.

Ela
– OK. E depois?

Ele
– Convidaria você para conhecer a minha casa, o meu reduto de descanso, o quarto, onde fiz uma extensão do laboratório...

Ela
– Uau...!

Ele
– E... então... o que diria à minha proposta?

Ela, esfuziante e solta.
– Tenho certeza que, em seguida, você me seduziria, manteria relações comigo e depois... dia seguinte, me daria um belo chute no traseiro...

Ele
– Estava olhando o seu porte físico... você é simplesmente uma mocinha encantadora... mulher de gestos harmoniosos. Eu não teria coragem de lhe dar um chute... jamais... uma doçura do seu porte, merece ser amada, acarinhada, beijada... eu... eu acho que... não deixaria mais você sair da minha vida...

Ela
– Pena que você, meu lindo, esteja em rota de colisão com uma passagem com viagem só de ida...

Ele
– Não entendi...

Ela
– Você é o 2674238549582408128596848695086... e está prestes a subir...

Ele se abre numa risada discreta de modo a fazer qualquer representante do belo sexo perder o tino.

– Com você eu subiria até onde o Maravilhoso Conselheiro  pudesse me ouvir. Então eu diria à Ele, de peito aberto: ‘Pai, eu sou o homem mais feliz deste universo’. A propósito: estamos aqui dentro deste vagão atulhado de estranhos proseando e você não me disse como se chama. Sopra de novo, em meu ouvido, bem baixinho, para que somente eu possa me deleitar com o som estonteante e melodioso que sai de sua linda boquinha... qual seu nome?

Ela, judiciosamente.
– Eu sou a Morte. Se prepare, gatinho charmoso: a sua hora chegou.

Ele se deixa ser levado, por ela, de mãos dadas, enquanto os freios do metrô parando, se misturam com a voz dos altos falantes indicando a próxima estação.

Fonte:
Do livro “Comédias da vida na privada” – de Aparecido Raimundo de Souza, pela Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro.
Texto enviado pelo autor.

sábado, 3 de abril de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 38) Receita rápida

O LUIZÃO BOCA ZANGADA chega no escritório de sua advogada, às nove horas em ponto, cumprimenta a secretária Maria do Carmo e revela, sem mais delongas, o motivo da sua presença:

— Bom dia, dona Maria do Carmo. Preciso urgentemente falar com a minha advogada. Por favor, é muito importante. Diga a ela que estou aqui na recepção e, se puder me atender agora, agradecerei.

Dona Maria do Carmo, a secretária, está com o rosto entristecido e a voz embargada. Toda ela é uma angústia de proporções gigantescas:

— Bom dia, seu Luizão. A doutora Efigênia não poderá mais atendê-lo...

Luizão Boca Zangada se queda pasmo e interrogativo:

— Como não? Eu marquei com ela na sexta-feira retrasada. Houve um problema, precisei faltar ao nosso encontro. Liguei para a casa dela, no mesmo dia, e ela me disse que eu poderia vir hoje cedo.

De repente a Maria do Carmo começa a chorar copiosamente:

— Seu Luizão, infelizmente...

Luizão Boca Zangada não deixa que a funcionária complete o que tem a dizer. Interrompe:

— Dona Maria do Carmo, veja bem. Me escuta. Estou em dia com os honorários. Nada devo à doutora Efigênia... É um caso novo... Caso novo...

Com toda paciência a garota tenta explicar:

— Seu Luizão... A doutora..

Todavia, o Luizão parece por demais irritadiço e fora de si:

— Dona Maria do Carmo, não tem mais nem menos. Vá lá dentro e diga para a doutora que tenho urgência urgentíssima em falar com ela... Eu...

Desta vez, a atendente corta a conversa pelo meio:

— Seu Luizão, a doutora Efigênia morreu neste sábado. Nos deixou, a todos, comovidos e sem ação. Como pode perceber, a grosso modo, nos pegou de calças curtas. Sinto muito...

Luizão Boca Zangada resmunga alguma coisa que ninguém entende, dá meia volta e vai embora.

Dia seguinte, mesmo horário, está ele, de volta, ao escritório. Ao chegar, cumprimenta as pessoas sentadas na recepção, se serve de um cafézinho e encara a bela recepcionista:

— Bom dia, dona Maria do Carmo. Como lhe disse ontem, careço urgentemente falar com a minha advogada. Por favor, é muito importante. Diga a ela que estou aqui e, se puder me atender agora, agradecerei...

Maria do Carmo pede licença a uma cliente com uma bebê de colo, encara o Luizão Boca Zangada e, calmamente, volta a esmiuçar o que ele sabia desde o dia anterior:

— Seu Luizão Boca Zangada, infelizmente a doutora Efigênia não poderá lhe atender. Ela...

Luizão Boca Zangada perde a esportiva e se enfurece:

— Dona, não quero saber. Não tem mais, nem menos. Vá lá dentro e diga para a doutora que tenho urgência em falar com ela... É um caso novo... Não saio daqui hoje...

A pacienciosa tenta, de novo, com toda calma, definir o infortúnio que pegou a todos  de surpresa:

— Seu Luizão, Seu Luizão, como lhe disse ontem... Está lembrado? A doutora Efigênia faleceu...

— Como é que é?

— A doutora Efigênia não está mais entre nós...

— Como não? Eu marquei com ela na sexta-feira passada. Ela me disse que eu poderia vir. Eu vim. A senhorita me enrolou e, agora, de novo, me vem com este papo furado...

— Seu Luizão, como lhe disse ontem, e volto a repetir hoje. A doutora Efigênia partiu. Sinto muito, sinto de verdade... Estava explicando a esta senhora, quando o senhor chegou...

— Não é possível. Na sexta-feira ela...

Precisa a criatura repetir, em meio a um suor de angústia que lhe molha as têmporas (apesar do ar condicionado ligado), o que havia dito no dia anterior, para que o Luizão Boca Zangada entendesse. Apesar disto, o imbecil vai embora abespinhado, batendo a porta de vidro que guarnece a sala de espera.

Quarta-feira, nove horas em ponto, o hall cheio. Entra, de novo, o Luizão Boca Zangada, como um furacão. Desta feita, sem cumprimentar ninguém. Vai direto ao balcão e vocifera:

— Dona Maria do Carmo, aqui estou em carne e osso. Rogo que vá lá dentro agora e diga para a doutora que tenho urgência urgentíssima em falar com ela... Só saio daqui depois que me entrevistar com ela. Não quero saber de lero-lero. Vai... Vai... Não tenho o dia todo... Trouxe para ela um caso novo...

Assustada com os modos brutalizados, a Maria do Carmo se levanta da sua cadeira e encara o ranzinza parado a sua frente:

— Seu Luizão, pelo amor de Deus. A doutora Efigênia morreu. Disse isto ontem ao senhor e na segunda também. E torno a repetir, agora e sempre: a doutora Efigênia veio à óbito.

Luizão Boca Zangada bate fortemente na superfície da bancada tentando intimidar a funcionária:

— Veio à quê?

— À óbito, seu Luizão. À óbito. A doutora Efigênia morreu. Morreu...

Luizão perde as estribeiras e encara as pessoas que ocupam o ambiente. Grita:

— E toda esta gente que aqui está? O que me diz, qual a explicação que me dará em vista disto?

Sem perder a serenidade, Maria do Carmo repete, pela milésima vez, a triste notícia:

— A doutora Efigênia, seu Luizão, morreu... Morreu...

Estabanado, derrubando um vaso de plantas, o anormal sai da sala, e, desta feita, quase põe abaixo a porta envidraçada de acesso ao ambiente.

Quinta-feira, nove horas em ponto, a sala se encontra como nos dias anteriores, superlotada. A Maria do Carmo segue atendendo, devolvendo documentos, fazendo a restituição de valores recebidos. Eis quem surge, do nada... Luizão Boca Zangada. Ao vê-lo entrar sem modos e com ares de poucos amigos, se adianta e peita o inconveniente:

— Seu Luizão, de novo? Pelo amor de Deus, não acredito! Será que joguei pedras na cruz?

Luizão não dá tratos à bola:

— Dona Maria do Carmo, aqui estou, mais uma vez, nos seus calcanhares. Não vou pedir, vou intimar a senhora. Falarei uma vez só. E não pretendo repetir. Vá, pois, lá dentro, agora — eu disse agora — e diga para a doutora Efigênia, que tenho urgência urgentíssima em falar com ela... Lembrando à sua cara de espantada, que somente sairei daqui depois que ela me encarar frente a frente. Hoje estou disposto a tudo. Não quero saber de desculpas. Vai logo, o que está esperando?

Encurraladamente acuada, Maria do Carmo se debulha em lágrimas. Algumas senhoras que aguardam a vez, acorrem a atendê-la, em face do estado emocional deplorável em que a moça se encontra.

— Senhor – diz uma cliente — Sinto muito dizer, mas a doutora Efigênia morreu no sábado. Estamos aqui pegando a nossa papelada para levarmos para outro defensor.

Um idoso entra na discussão e procura, de igual modo, acalmar os ânimos do irrequieto travesso:

— Sentimos muito, senhor. Todos nós aqui sentimos muito. Fomos vítima do inevitável. A amável e querida doutora Efigênia, nos deixou...

Luizão Boca Zangada, desfere um soco, ao oposto da primeira vez, não na bancada, desta feita, na parede ao lado da mesinha de café. Não contente, atira na cesta de lixo um amontoado de copinhos plásticos, onde os clientes da extinta podiam se servir de uma bebida quentinha, feita na hora:

— Morreu? Morreu? Como esta desgraçada morreu? E o meu processo?

À imitação das vezes em que ali esteve, o chato de galochas sai raivoso e encrespado, como se não entendesse o que acontecia.

Sexta-feira, amanhece chovendo. À cântaros. Apesar disto, o espaço destinado aos clientes da doutora Efigênia, se faz superlotado. De resto, tudo em paz, em ordem, até que o relógio assinala nove horas em ponto. Trajando capa de chuva preta e guarda chuva, adentra, no maior estardalhaço, o Luizão Boca Zangada.

Deseducado, como de costume, e soltando fogo pelas ventas, sem cumprimentar quem ali chegara antes dele, encosta direto na beira da pobre e indefesa Maria do Carmo:

— Dona Maria do Carmo... Senhora, os cambaus... Maria... Vou lhe dar dois minutos para ir lá dentro e chamar a sua patroa, a maldita doutora Efigênia. Repare, um minuto acabou de passar... Não ande, voe...

Maria do Carmo faz, então, sinal para um homem alto, vestido num elegante terno preto que se acha encostado ao lado da porta do banheiro. O seu corpo atlético lembra um desses armários embutidos de doze portas com maleiro e tudo:

— Seu Eurico, seu Eurico, por favor...

O seu Eurico prontamente se aproxima, todo volumoso, na frente da pequena Maria do Carmo.

— Pois não, senhora!

— Este é o senhor do qual falei. — aponta o Luizão Boca Zangada — Veio aqui a semana inteira e cansei de explicar à ele que a doutora Efigênia não poderá atendê-lo, em face do... O senhor sabe o motivo, da pobrezinha ter nos enlutado. Como pode ver, acho que precisará levar um papinho mais sério com o nosso teimosinho...

O grandalhão encara o Luizão Boca Zangada de uma maneira tão fria que todos os presentes certamente alimentaram a mesma impressão. Aquele olhar do segurança parece ter varado o fundo da alma pegajosa do buliçoso fanfarrão:

— Pois não, cavalheiro? Em que posso ajuda-lo?

— Com quem estou falando? Não me lembro de ter topado, pelo menos, até agora, com a sua carinha de mau. Quem é o prezado?

— Um amigo da doutora Efigênia. Antes que fale alguma coisa, até onde sei, a senhorita Maria do Carmo lhe passou os devidos esclarecimentos a semana toda.

Luizão Boca Zangada, por seu turno,  arrosta o brutamontes, sem se deixar ser intimidado pela energia prodigiosa que emana de sua superioridade. Carece esticar bem o pescoço, em face da estatura do seu interlocutor ser um pouco incomum.

— Verdade. Ela me disse que a minha advogada morreu. Ora, se ela morreu, o que toda esta gente veio fazer aqui? Ela está atendendo e se nega a me receber? Saiba, seu rascunho de Torre Eiffel, que estou em dia, em dia. O senhor quer ver os recibos?

— Não quero ver nada. Se o senhor, por acaso, pagou e não deve nada, ou se pagou a mais e a senhorita Maria do Carmo disser que o senhor tem alguma soma a ser reembolsada, ou via outra, documento faltoso, que ficou para trás, por favor, pegue o que tem de pegar, ou de receber e caia fora.

E prossegue, no mesmo tom, sem mover um músculo da face carrancuda.

— A doutora Efigênia morreu, bateu as botas...

Luizão Boca Zangada, em resposta, aponta o dedo em riste para a galera ao redor:

— Morreu né? E toda esta gentalha aqui sentada? Está esperando por quem? Se a doutora Efigênia escafedeu... Até onde sei, ela trabalhava sozinha... E então, desembucha...

— Estas pessoas estão retirando seus documentos para irem procurar outro advogado. Deu para entender?

— Não dei, nem vou dar. Ficou louco? “Ta me tirando?”.

— Senhor, um conselho. De novo. Pela derradeira vez. Pegue seus documentos e se tiver dinheiro, rogo que resgate e, da mesma forma, depois de tudo nos conformes, vaza daqui. Fui claro, ou quer que eu desenhe?

Em continuo, o robusto pergunta à Maria do Carmo (para que todos o escutem) se aquele mala sem alça tinha dinheiro a ser devolvido ou documentos.

— Nada, seu Eurico. A doutora acertou tudo com ele. Aliás, aqui está a pasta com todo o andamento do caso que ela resolveu para ele. O processo deste senhor está finalizado faz tempo.

— Ouviu, meu camarada. Nada mais resta a fazer aqui. Dê meia volta e evapore...

— Quero falar com a doutora...

— Quantas vezes terei que dizer para o senhor que a sua advogada, a doutora Efigênia morreu?

Rindo a mais não poder, e exprimindo uma audácia tranquila, o Luizão Boca Zangada tenta passar, num gesto carinhosamente revestido de uma ironia vulgar, a mão esquerda em torno do rosto carrancudo do impenetrável segurança.

— A doutora morreu?

— Morreu, morreu... Repete o segurança, meio pê da vida e prestes a encaçapar o sujeito.

— MORREU... M...O...R...R...E...U!...

— Desculpe, meu lindo — completa Luizão Boca Nervosa em voz tronituante. A doutora morreu. Desculpe, de verdade, mas é que eu adoro, amo de paixão ouvir isto! De paixão, está me compreendendo? A doutora morreu... Uau! Que ótimo... Que legal... A doutora, a minha doutora morreu... Viva, viva, a doutora virou defuntaaaaaa...

A datar, porém, deste dia em diante, o Luizão Boca Zangada virou as costas e nunca mais apareceu no pedaço.

Fonte:
Parte integrante do livro de crônicas de Aparecido Raimundo de Souza, ‘Comédias da vida na privada’ – Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro. 2021. Texto enviado pelo autor.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 34) Papo careta


Texto integrante de Comédias da Vida na Privada.

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BIFE MARCOS PASSADO, amigo íntimo do Eduardo Camaleão, marido da inebriante e formosa Laurinda, se encontrou com ela quando a beldade saia da padaria do bairro onde moravam. Extremamente galanteador e metido a ter todas as mulheres a seus pés, principalmente as jovens, não pensou duas vezes e se abriu em mesuras e reverências, feito mala velha imprestável:

— Dona Laurinda, que prazer enorme em lhe encontrar!

Dona Laurinda, vinte e três anos, se formara uma mulher bela e encantadora, capaz de virar a cabeça de qualquer homem que tivesse gosto apurado e rigoroso pelo sexo oposto. Seus cabelos compridos, caídos até a cintura, lhe davam ares de uma boneca feita sobre medida pelas mãos hábeis de um artista nato, que pensara em concentrar tudo de maravilhoso num ser humano único, tornando o inimitável e assombradamente fagueiro e mavioso:

— O prazer é todo meu, seu Bife.

— E como está o meu amigo Eduardo Camaleão?

— Neste momento se aprontando para o trabalho.

— Legal. Faz tempo que não vou à casa de vocês. Estou com saudades de seus bolos de chocolate.

— Não seja por isto, amigo Bife. Apareça quando quiser... Sempre será bem vindo.

— Tomei conhecimento, pelo Pingolino, o porteiro do seu prédio, irmão do vigia do meu edifício, que vocês comemoraram um ano de casados?

— De fato. Pensei que fosse contar com a presença do senhor. Fizemos uma brincadeira rápida, de última hora. Assamos uma carninha, entornamos algumas cervejas... Abrimos um champanhe. Até falei para o Camaleão: ‘Amor, está faltando o Bife’.

Risos de ambas as partes:

— Ele esqueceu de me chamar. Acontece. Não faltará ocasião.

— Independentemente disto, poderia ter ligado. Tudo bem. Me perdoa. Peço desculpas por nossa falha. Afinal, o senhor faz parte do seleto círculo de amigos. Sempre nosso cantinho estará ao seu inteiro dispor.

— Agradeço o seu carinho. Isto muito me lisonjeia.

— Não por isto.

— A Bebel, sua empregada, me disse num encontro que tivemos na feira de quarta, que a senhora está pensando em ter um filho?

— Nossa, as noticias correm. Penso, de fato, em aumentar a família. Acho que está na hora de arranjarmos um herdeiro...

Bife Marcos Passado não era de perder uma chance, por menor ou por mais insignificante que fosse. Neste pé, aproveitou a deixa e caiu matando:

— Uau, dona Laurinda! Que excelente notícia. Me avisa quando quiser colocar esta ideia em prática. Lembra de mim. Não esqueça que os amigos... Os verdadeiros amigos são para estas coisas...

Laurinda mandou um bom dia, meio que enviesado, fechou o rosto numa carranca furiosa e entrou, de vez, padaria adentro.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 33) Para todas as horas


ANINHA LIGOU para a amiga Eloísa e disse que precisava se avistar o mais rapidamente possível com ela. Uma dúvida cruel a atormentava e lhe chegara, por conta, ao incômodo de lhe afetar o sossego e tirar o sono:

— Venha aqui em casa. Vou lhe esperar com um café reforçado. Pegue um Uber. Eu pago...

— OK. Estou indo.

— Vou providenciar nosso café.

Aninha passou a mão na bolsa, pediu um carro de aplicativo e, vinte minutos depois, estava sentada à farta mesa do café no apartamento da sua melhor e única amiga, confidente íntima a quem contava todos os seus segredos, mesmo os mais inadmissíveis e cabeludos:

— E então, Aninha, o que foi desta vez?

— Encontrei um bilhete no bolso do paletó de meu marido! Acho que o Leopoldo está me traindo. Aquele safado tem uma amante, uma amante, Eloísa.

— Um bilhete, amiga?

— Na verdade, o terceiro, só esta semana. Se eu pego a vagabunda, eu mato, juro que mato...

— E o que ele diz?

— Ele quem, meu marido?

— Não, Aninha, os tais bilhetes...

— Estou tão furiosa, tão irritada, que dei para me atrapalhar. Pra você ter uma ideia, já me peguei falando sozinha com a geladeira.

Eloisa caiu numa estrondosa gargalhada:

— E ela respondeu?

— Amiga, você está me tirando? Fazendo hora com a minha cara?

— Claro que não, amiga. Só estou tentando descontrair a sua irritação. Continue, o que diziam os bilhetes?

— No primeiro, a sem vergonha escreveu: ‘Amor, eu te amo. Vamos nos ver no lugar de sempre?’. O segundo, esclarece pouca coisa: ‘meu gato, nosso encontro de ontem foi legal. Vamos repetir a façanha? Me liga. O terceiro, dá conta de que sou ‘otária’. A maldita me chamou de otária. E assinou assim: ‘Sua gatinha, E...’.

— E...?!

— É. A infeliz assinou com um ‘E’ e um coraçãozinho. A desnaturada deve se chamar Elisa, Eliane, Érica, Esther...

— Meu Deus, amiga, que safada! Acaso você desconfia de alguém?

— Sim e não. Para dizer a verdade, sim.

— De quem?

— Olhe você mesma os bilhetinhos. Salvo melhor juízo, me parece, com a caligrafia da secretária dele, a Efigênia.

Aninha abre a bolsa e, de dentro, tira os bilhetinhos encontrados no bolso do paletó do marido:

— Pode ser. Você não deixa de ter razão.

— Eloísa, você ainda tem aquele caderninho cheio de páginas com folhinhas coloridas iguais aos destas mensagens?

— Sim, amiga... Quero dizer, tinha...

— Ué! Que fim levou?

— Joguei fora. Depois que arranjei um problema com a minha mão direita... Ela deu para ficar dormente, assim sem mais nem menos e pior, a doer terrivelmente. Peguei a droga do caderninho e joguei no lixo. Veja você mesma. Nem segurar a caneta estou conseguindo. Se você soubesse como esta coisa dói... Minha vizinha aqui do lado, me disse que é artrite, ou artrose, sei lá.

— Credo, amiga! Não sabia. Que situação! Quanto aos bilhetinhos, o que acha que devo fazer?

— Deixa todos aqui comigo. Vou tentar apurar se as letras de uma de nossas amigas (as que costumam frequentar aqui em casa, nos encontros que nossos maridos e os delas, lógico promovem), batem, ou se assemelham com a caligrafia destes papeizinhos.

— Que legal, minha amiga. Bem pensado. Você me faria este favor?

— Com certeza. Lembra que somos unha e carne e a nossa amizade, nestas horas, serve para ajudar no que for preciso. Asseguro a você que juntas vamos desmascarar rapidinho quem poderá estar se encontrando com o Leopoldo. Deixa estar, ou não me chamo Eloísa.

— Mas nenhuma das esposas tem o nome começado com a letra ‘E’.

— Pode ser um despiste, amiga. Pra não dar na pinta, entende? Juro a você que pego essa periguete seja lá quem for, com a boca na botija.

— E como fará isto?

— Minha ideia, a princípio é comparar as letras. E como farei isto? Pedindo a cada uma das esposas que escrevam alguma coisa para mim.

— Para mim?

— Para eu. Inclusive, até você entrará no jogo. A partir de agora, não fale nada pra ninguém. Bico calado. Te juro que mais cedo do que você pensa, pegarei o sem noção do Leopoldo. Ele que me aguarde.

— Ele?

— Sim amiga, ele...

— Não estou conseguindo acompanhar a sua cabeça. Desenhe.

— Eles, amiga, os bilhetinhos, os bilhetinhos...

Fonte:
Texto integrante do livro 'Comédias da Vida na Privada'. Editora AMC-Guedes Rio de Janeiro 2021.
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 32) Distorções de um Cotidiano


O SUJEITO TOMADO pelos vapores do álcool, quase a ponto de cair de maduro, entrou no ônibus com dificuldade e, a muito custo pagou a passagem. Assim que cruzou a roleta, deu uma parada básica e espiou, como um sentinela sem guarita, para um ponto acima da cabeça dos passageiros que estavam sentados. Avistou, então, depois do reservado aos deficientes, um lugar vazio, ao lado de uma moça de cabelos vermelhos que se entretinha com seu aparelho celular, naturalmente jogando alguma coisa para se distrair até que chegasse seu ponto de destino.

Um flash de luz se acendeu dentro de sua irresponsabilidade travessa. Lento e cambaleando em tropeços deselegantes de seus próprios impasses, segurando aqui e ali, o aventureiro conseguiu chegar até ela. Pediu licença e se instalou, ou melhor, se jogou com tudo, se estabanando pesado, como um Mané, completamente destituído dos modos elegantes de um cavalheiro que se preza e sabe se portar de maneira educada ao lado de uma garota distinta. A jovem, com o seu baque, o mediu de cima em baixo, com um par de olhos verdes e, em seguida, se achegou mais contra o canto da janela e voltou a se preocupar com a tela de seu celular:

— Disculpi, foi maul... —  grunhiu à guisa de explicação.

— Tudo bem, esqueça.

Junto com estas palavras, a beldade lhe endereçou um sorriso sem graça, mais por educação que por simpatia e continuou firme, voltada com os sentidos atentos para o que fazia, sem dar mais confiança ao insolente. A certa altura, todavia, o pinguço, sem o abrigo da sobriedade, puxou conversa:

— Comu é seo nomi?

— Monica.

— O que está jogano?

— Paciência.

— É boum o passatempu?

— Dá pra enganar o tédio das horas.

— Faiz tempu qui si dedica ao gostu apuradu por porcarias?

— Não acho que seja... É bem legal...  

Percebendo que a formosa lhe ignorava dando o maior gelo, não lhe dando brechas, tampouco sustentando a conversa, respondendo apenas com duas ou três palavras, partiu para o ataque:

— ‘Possu lhe fazê otra pregunta?’

— Sem problema...

— Nãum vai mi levá à mal?

— Por que chegaria a tal disparate? Meus pais me ensinaram a ser educada...

— Legaul. Vamu lá. Seguinti... A senhorita é meia esquisita e feia assim mermo, ou é meus olho que está me enganano?

A interpelada corou vigorosamente por trás da sua graciosidade. Todavia, não perdeu a linha, nem a compostura.

Encarou, com toda a seriedade que lhe foi possível juntar naquele momento e se dirigiu, fulminante, para o engraçadinho mandando a resposta, na lata:

— Pior é o senhor. Olhe para isto! Um traste. Além de bêbado e chato, fedendo a carniça e me causando asco. O cheiro da sua pinga nojenta e barata me dá vontade vomitar...

Fez uma breve pausa como para tomar fôlego e prosseguiu, altiva:

—... Sem falar nas suas roupas, que exalam alguma coisa tipo assim azeda, ou podre, sei lá. Amigo, vê se te enxerga e me deixa em paz.

O alcoólatra, no afã da sua insubordinação, e extremamente alterado e fora de si, pelo mutismo da sua companheira de assento, não deixou por menos. Rebateu, à alta voz, num script sem ensaio, chamando a atenção de outros anônimos sentados próximos:

— Minha quirida, olhe beim pra meus cornu e se lembri de uma coisa. Daqui a poco, ou mais tardá amanhã, eu estarei novo em folha e curado. Sem chero algum... Já a senhorita, continuará tão lambisgoia e marmota como agora.

Visivelmente irritada, a bela representante do sexo oposto, se conteve. Ato contínuo, pediu licença, se levantou, puxou a campainha do sinal e desceu. O engraçadinho continuou no mesmo lugar, cantando e rindo alto e falando palavrões a mais não poder, como se nada de anormal tivesse acontecido.

Resolveu, porém, na sua estupidez insensata, sair novamente da gaiola de seus excessos e voar mexendo com outra recém chegada, desta feita, uma estudante aparentemente na faixa dos quinze anos, que entrou um quilômetro ou dois, adiante. Carregava consigo uma mochila pesada e se esparramou ofegante no banco à frente do perturbado. O sem modos não demorou para colocar as unhas de fora. Passou as mãos nos cabelos longos e encaracolados da guria.

Deu BO. Três sujeitos que viajavam em pé, nos degraus da porta de saída dos fundos, resolveram interferir. Compraram a briga. Partiram literalmente para cima do bebum com tudo. Pegaram o insolente de porradas. Distribuíram certeiros tabefes, seguidos de uma dúzia de pernadas e outros tantos de safanões e bordoadas. Logo depois das carícias, numa das paradas, atiraram o biriteiro como um saco vazio para fora do coletivo, a fuça deformada, as roupas em pandarecos.

Seus costados e dissabores se desfizeram esparramados numa poça de sangue e sujeira. Daí para frente, o ‘quarenta janelinhas’ seguiu a sua viagem normal, pegando um aqui, desembarcando outro ali. Quem assistiu a cena e seguiu até o final da linha não se se meteu nem contra, nem a favor do mala sem alça e seus espalhafatos, por conta, caíram no esquecimento.

Manhã seguinte, saiu no jornal, primeira página, em letras garrafais: "FUZUÊ NA VOLTA PRA CASA". A notícia, dava destaque ao fato, informando que... "Um pobre e infeliz trabalhador, se viu molestado e roubado dentro de um transporte público. Seus agressores, não contentes em lhe subtraírem todos os pertences, ainda lhe aplicaram uma tremenda surra e, subsequentemente, lhe jogaram para fora da condução. A vítima foi encaminhada para o hospital por populares que passavam pelo local e acionaram o SAMU. Uma viatura da Polícia Militar seguiu na captura dos meliantes. Ninguém foi preso".

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 31) Acuado


TODA NOITE, A MESMA HORA, o telefone fixo toca na calmaria  serena da sala vazia. Miresola corre a atender sabendo, de antemão, o que acontecerá assim que tirar o auscultador do fone:

— Alô...?... Alô...?... Alô...?

Do outro lado da linha, nada:

—...

— Alô...?

—...

Miresola insiste, mas ninguém dá sinais de vida. Segue a mudez enervante e pasmacenta de sempre:

— Alô...?

O rapaz ouve nitidamente a respiração descompassada de quem está do outro lado. Escuta os dedos da criatura tamborilando no aparelho, mas voz, que é bom...

— Ora, vamos. Quem é você?  Diga seu nome!  Sua idade? O que quer? Porque me liga todas as noites no mesmo horário?

—...

- Fale! Se abra! Acaso se esconde de alguém?

—...

— Tem medo de quê?

—...

Miresola persevera, prolonga e se empenha ao máximo. Batalha na sua obstinação. Tenta de todas as formas puxar assunto:

— Olha! Não vou te machucar, nem morder. Ainda que pudesse chegar até você viajando pelos fios...

Nenhuma resposta. O emperramento em dizer algo esclarecedor se agiganta:

—...

— Converse comigo... Revele alguma coisa sobre você. Sonhos? O que gostaria de fazer? Ler, ouvir música, sair, ir ao cinema? Frequenta barzinhos? Amigos? Pratica algum tipo de esporte? Acaso você mora aqui no meu prédio? Já nos vimos no elevador?

—...

Sem mais nem menos, um clique interrompe a ligação. Fica no ar, além das reticências de respostas às perguntas formuladas, a taciturnidade do telefone. A afrasia da noite alta como que magicamente se quadruplifica lá fora.
                                        ***

Tem sido assim, meses a fio. Miresola não sabe mais o que fazer. Ou como agir. Sente que, de certa forma, se tornou refém daquela situação caótica e esquisita que não sabe explicar. Se sente como um idiota. Toda noite à mesma hora o telefone tilinta e ele, segue a conversar com alguém que não sabe quem é. Se pelo menos a pessoa ligasse para seu celular, ele identificaria o número de onde viera provinda a ligação e retornaria. Qual o quê!

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 30) Invenção de espanto

Vila Velha/ES

PENSEM NUM SUJEITO trabalhador e honesto, cumpridor de seus deveres até debaixo d'água. O Alpheu! Este mesmo, escrito assim, desta forma arcaica, Alpheu com ‘PH’. E ele, por seu turno, fazia questão de deixar pontificado, o ‘PH’. Sem dúvida alguma, este era o cara, apesar de não gostar da melodia do Roberto Carlos, onde o cantor de Cachoeiro de Itapemirim, filho de dona Laura e seu Robertino, dava conta de um indivíduo que exaltava a figura auspiciosa de um craque, o dono do pedaço e da cocada preta, sobretudo, que fazia as honras em todos os sentidos, inclusive e, principalmente, se abrindo feito paraquedas às princesas de todas as idades, o que tornou o bendito fruto amável e benquisto entre as beldades do sexo oposto, Brasil e desvãos além fronteiras.

Mas o nosso Alpheu com ‘PH’, sem tirar nem pôr, fora o escolhido. Homem sério, até seu relógio interno seguia as regras do excelente. Sem nenhuma mancha que tornasse seu passado obscuro, servia de chacota e de gozação para os amigos. Na verdade, um espectador inocente, figura ridícula pela maneira por que se deixava, sobretudo, escravizar com as barbáries e investidas dos idiotas que se diziam e se proclamavam ‘seus chegados’: ‘Você é o cara, mano —, afirmava um’. Este ‘cara é você’ —, ajuntava outro. Por conta deste ‘cara sou eu’, o homenzarrão queria morrer. Tirando esta particularidade, Alpheu com ‘PH’, um santo. Do pau oco, mas santo. Bom pai, ótimo marido e seleto companheiro, principalmente com os colegas de trabalho. O patrão o adorava. Seu trajeto, nos trezentos e sessenta e cinco dias do ano... Apenas um. Com uma variante.

De casa para o trabalho e do trabalho para casa. Nada mudava a sua rota. A vida, para ele, se fazia mais obsessiva que as liquidações das Lojas Renner, anunciando seus auspiciosos e chamativos Black Friday. Alpheu com ‘PH’, como todo ser humano perfeitamente imperfeito, claro, exatamente por ser humano, tinha (apesar dos pesares e da vidinha reta e sem nódoas), cinco defeitos inquestionáveis. Primeiro deles. Gostava de fazer filhos. Por conta desta vida desregrada, no escuro de quatro paredes, enrodilhado com a sua metade gostosa do casamento, a Belinha, e gozando, com ela, os prazeres das fogosidades calientes, trouxera, à luz, em consequência das viradas de olhinhos, nove boquinhas para dar de beber e comer. Nove. Imaginem só! O segundo defeito. Ao sair do trabalho (pegava às cinco da manhã, na padaria do português Manuel Joaquim, parava uma hora para almoçar e, quinze minutos, para engolir o café servido como lanche).

Largava, o batente, às dezessete horas. Todo santo dia esta rotina enervante. O terceiro defeito. O pior deles. Antes de chegar em casa, vinha a variante acima citada. Alpheu com ‘PH’, passava, impreterivelmente, pelo boteco do Aristeu da Conceição (duas quadras de onde morava) e, uma vez ali, alagava os bofes, tomando todas as purinhas com seus amigos de copos. Ficava enraivecido, porque, nesta hora, os falsos amigos das garrafadas zoavam da sua vida certinha, cantando ‘Este cara sou eu’, do Roberto Carlos. Alpheu com ‘PH’, ficava pra morrer. Odiava, com todas as forças, esta canção e, se tivesse poder, pegava seus parceiros e os mandava para verem Papai do céu antes da hora marcada. Um suplício mal parido de que não cogitou, em nenhum momento, a sua postura de cidadão de bem.

Quarto defeito. Chegava, em casa, por volta das vinte e uma e o fazia, aos tropeços, chamando urubu de Nego do Burel e confundindo os postes com os mourões das cercas de arame ao longo da avenida. Morava quase no final dela, num bonito sobrado de alvenaria que lhe fora deixado de herança pelos pais falecidos. Ainda no jardim, ao ouvir o som das crianças jogando em frente à televisão, ato contínuo, pintava o quinto defeito. A criatura então soltava a âncora, deixando, à mostra, um temperamento virulento. Em nome deste drástico frenético, se fazia acessível aos desastres do horror. Arrancava o cinto da calça e pulava, num gingado à Jackie Chan, metendo sem dó nem piedade, um punhado de pancadas nos costados dos pobrezinhos. Neste pega pra capar, os quatro garotos com as idades de sete, nove, treze, e quinze anos, bem ainda, em igual número, as meninas, com dez, onze, quatorze, e dezessete, debandavam, em solitários impulsos, cada um para seu quadrado, os respectivos fundilhos pegando fogo, além das pernas e braços em carne viva. Coisa de meio minuto. O bastante para a gurizada dispersar, se escondendo, entre choros e atropelos, fora do real, todavia, em uma asselvajada realidade adentro.

Este sistema abrupto não mudava nunca. Bastava por os pés no alpendre, o couro começava a comer e se esparramar solto nas oito crianças. Alto lá: não somavam nove? Sim, isto mesmo, nove. A mais nova, a Aninha, de cinco anos, não alimentava o hábito de ficar jogando com os irmãos. Dava oito horas, a lindinha saia de cena e partia para a horizontal. Por certo, se estivesse entre os consanguíneos, não escaparia das perversidades do Alpheu com ‘PH’. Belinha, coitada, a esposa aflita, vinha lá de dentro correndo, apavorada (às vezes, com uma tigela cheia de pipocas nas mãos ou uma garrafa de refrigerante) e, ao se deparar com o bafafá, se intrometia às cegas para cima do marido, pedindo a ele, aos gritos vociferados que não agisse daquela forma com seus rebentos.

Afinal de contas, eles não tinham culpa de terem sido postos no mundo:

— Alpheu, pelo amor de Deus — separava, ou tentava. – Pare de tratar as suas crias deste jeito. Eles não estavam fazendo nada, só jogando. Deixe de ser violento. Respeite a sua família, em nome do Senhor Jesus. Que loucura! Todo santo dia este perrengue... Olhe pela janela. Nossos vizinhos, boquiabertos e pasmos, presenciando os descalabros das suas malditas biritas.

Alpheu com ‘PH’, no seu intenso sentimento de ódio descomedido, na danação de distribuir cintadas, às vezes acertava a pobre mulher onde não devia.

Mesmo ferida, braços e pernas, ou onde pegasse as correadas, a piedosa e santa mãe não deixava de se impor. Alpheu com ‘PH’, sequer dava ouvidos aos seus clamores e lamúrias. Cansado de distribuir porradas, o pinguço saía cambaleando, segurando aqui e acolá e acorria para o banheiro. Antes de fechar a porta, deixava sintetizado à esposa ultrajada:

— Não se esqueça: Alpheu, sua vadia... Alpheu com ‘PH’.

Belinha, ofendida e insultada na sua moral, apesar dos safanões e arranhões, não abria a guarda. Resmungava, xingava, chorava e para extravasar as suas inquietações, geralmente mandava junto com seus derrotismos alguma coisa pesada, jogada com força em direção ao embriagado:

— Vai para os quintos, cão sarnento.

O tinhoso, duro na queda, não arredava. Seguia sempre assim, sem nenhuma mudança. Em parte, culpa da mulher. Ora, convenhamos. Sabendo que o marido não mudava seus modos em relação aos jogos, por que não exigia que as crianças jantassem e subissem para dormir antes que o tresloucado desse o ar da graça? Se tivesse se precavido... Aconteceu, entretanto, que num final de semana os meninos haviam acabado de chegar de uma festinha de aniversário de um vizinho parede-meiado. Todos os nove. Por algum motivo, até o presente momento não esclarecido devidamente, Alpheu com ‘PH’, saiu mais cedo da padaria. Passou pelo boteco antes da hora prevista e se empanturrou, em rodadas à gostos apurados, com os amigos de sempre. Em seguida pegou o rumo de seu barraco. Ao chegar no portão, dali mesmo, ao ouvir as risadas barulhentas vindas do interior da residência não se fez de rogado. Arrancou da cinta e...

...Meteu os pés na porta e escancarou partindo para o ataque. Aos estropigaitados* de ‘eu mato’, pegou o primeiro, agarrou o segundo, esbofeteou o terceiro, socou o quarto... Belinha, em contrapartida, se armou de uma cadeira e investiu contra o desmiolado. Ele não se deteve. Seguiu mandando correadas e bordoadas no quinto, no sexto... Belinha, braba (pensem numa fêmea endiabrada), quebrou uma cadeira nas pernas dele. Entretanto, esta medida não se fez objetiva pelo menos para fazê-lo parar. Alpheu com ‘PH’, não se intimidou. Correu para o sétimo, grudou nos peitos do oitavo, derrubou o quinto...

Voltou para o segundo... Aplicou uma rasteira no oitavo... Quando, avistou num canto, a nona, ou seja, a Aninha, a coitadinha agachada, chorosa e assustadíssima, as mãozinhas cobrindo suas estremeções, Alpheu com ‘PH’, voou feito um leão faminto para deitar o sarrafo na brejeira:

— Até que enfim, esta maldita, hoje, está no bolo. Saiba, praguinha dos infernos, que de agora você não me escapa. Vai apanhar dobrado. Faz tempo que não boto os sentidos em seu magérrimo esqueleto...

Belinha, ao ouvir estas palavras, chegou ao ápice do seu desespero. Alcançou os píncaros do seu furor. Galgou às cumeadas das contrariedades que a dominavam e a fizeram crescer na sua cólera interior. Como um raio, passou as mãos num vaso de flores enorme e pesado (mais robusto que a consciência de Rodrigo Maia), que descansava, solitário sobre uma mesinha de centro, e mandou direto nos cornos de sua parte podre da maçã. Alpheu com ‘PH’, titubeou. Tentou ir em frente. Qual o quê! Ensaiou alguns passos. Inútil. Desabou, caindo de joelhos, o sangue jorrando abundantemente em meio à sua testa.

Antes de sair do ar, de vez, ouviu estas palavras da sua linda consorte:

— Na minha caçulinha, seu verme peçonhento, você não encosta as patas. Esta ai, seu corno safado, não é sua filha.
* * * * * * * * * * * * * * * *  
Vocabulário:
Estropigaitados
– atrapalhados, embaraçados, confusos.


Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 29) Tarja com Caveira


O EUFRATES ESTAVA PRA LÁ DE CONTENTE. Havia arranjado um serviço de última hora em São Paulo e não via chegar o dia para se apresentar no escritório da empresa e começar a trabalhar. Procurava uma ocupação há meses e pensava até em desistir e não sair mais da casa materna, em Catingal, a sua cidade natal incrustada no interior bem escondido da Bahia. O novo batente prometia salário mínimo na carteira, vale transporte e refeição, cesta básica, plano de saúde e uma pequena ajuda de custo. Não muita coisa, mas, de imediato, ajudaria a sair da pindaíba na qual estava metido até os cafundós do pescoço.

Fora conversando praticamente todos os dias por telefone com um amigo que fora antes para a capital dos paulistas, o Rochê, que trabalhava na dita empresa havia anos e, ao saber da vaga, indicara seu nome:

— Eufrates, pra quebrar o galho, você deve pegar. Depois aparece coisa melhor...

— ‘Cê sabe’ qual vai ser a minha função?

— Pelo que me passou a Umbelina, alguma coisa ligada à preservação de espécies.

— Quem é Umbelina?

— A secretária linda e maravilhosa do Doutor Bepantol.

— Doutor o quê?

— Bepantol. Marquei a sua entrevista com ele, para segunda-feira, às dez horas em ponto. Mandei dinheiro suficiente na conta da sua mãe, para você comprar a passagem e comer alguma coisa na estrada. Procure chegar um pouco mais cedo. No Tietê você pega um táxi, mostra o endereço para o motorista. É pertinho...  

— Preservação de espécies, você disse?

— É. Pelo menos foi o que me passou a secretária, quando nos esbarramos, muito rápido, no refeitório, na hora do lanche.

— Rochê, estou me sentindo um nadador solitário dando braçadas em águas turbulentas. Ao meu redor, percebo que os peixes estão inquietos...

— Impressão sua. Vai dar tudo certo. Confia. Passa os cinco dedos em você, embarca no primeiro buzão e se manda pra cá.

— Quanto ao mar ou aos peixes...

—... Deixe de filosofar, Eufrates. Aproveita o resto do dia de hoje, faça a barba, corte os cabelos, engraxe os sapatos, ponha a sua melhor roupa e siga em frente. Não me decepcione. Até segunda feira, você tem pela frente, a seu favor, quase cinco dias.

— Certo. Voltando a tal da preservação...

— O que você quer saber exatamente?

— Não tem como me adiantar alguns detalhes?

— Fora de cogitação, cara.

— E por quê?

— Porque eu trabalho num setor e a Umbelina e o doutor Bepantol em outro. Existe um imenso corredor cheio de portas com cartões magnéticos nos separando. Soube da disponibilidade da vaga por mero acaso.

— Rochê, e se você levasse um papinho com a tal da Umbelina?

— Não tenho intimidades para isso, meu amigo. A gente só se vê, de vez em quando, no refeitório, no horário de almoço ou no lanche da tarde. Fora do expediente é quase impossível.

— Bem, se é assim, na segunda-feira estarei marcando presença  no pedaço.

— Não perca a oportunidade. Se abolete num quarenta janelinhas e queima o chão.  No mais, Fé em Deus e pé na tábua.

Na segunda-feira, um pouco antes das seis horas, o Eufrates depois de uma viagem esmagadoramente estafante, apeava no Terminal Tietê. No Terminal Tietê pegou um táxi e se mandou para o endereço onde ficava o seu futuro promissor.

Compenetradamente sentado na recepção que antecedia à sala do doutor Bepantol, cheio de malas e bolsas, o infeliz olhava cheio de curiosidade para as pernas roliças da apetitosa e inimitável Umbelina.

Nas mãos trêmulas trazia (num envelope comprado às pressas) o currículo básico, com uma foto de terno e gravata tirada no ano passado — na verdade, um pequeno histórico da sua profissionalidade feito por Rochê — meio que às carreiras (e enviado para Catingal via WhatsApp), contendo os dados essenciais, experiências profissionais, essas coisas que geralmente as pessoas colocam para encherem linguiça e chamarem a atenção e impressionarem os futuros patrões.

Na prática, as pérolas pinçadas geralmente da imaginação dos candidatos não colam. Os entrevistadores estão carecas de saber que cinquenta por cento das experiências apresentadas são meras balelas, ou seja, um punhado de quesitos elencados onde o candidato, às vezes, não têm a mínima noção ou ideia do que é e para que serve. O caso de Eufrates, não ia muito além desta dura realidade.

Da vasta experiência profissional que apresentava, de verdade mesmo, sabia apenas lavar garfos, facas e colheres e  enxugar pratos e copos em restaurantes de sua querida e pacata Catingal, além de cuidar de pequenos serviços, como desentupir vasos sanitários e lavatórios, trocar lâmpadas queimadas, varrer corredores das casas dos ricos, cuidar de jardins e armazenar sacolas de lixos tóxicos dos hospitais da região em carrocerias nos caminhões de coletas.

No mais, digitação, cursos disso e daquilo, idiomas, redação própria, etc. etc. “neca de pitibiriba”. Eufrates passava quilômetros de distância dessas preciosidades. Não deu outra. Na hora em que ficou frente a frente com a estrepitosidade da Umbelina e pior, com o chefe sisudo e de pouca conversa dela, o doutor Bepantol, o cenário se fez mais infeliz e desanimativo. Após uma série de testes psicológicos, preenchimentos de fichas, prova disto e daquilo, sem falar nos exames médicos, os pré-adicionais exigidos, o cidadão foi admitido.

A função, enfim descoberta: auxiliar de serviços gerais: abreviando a história do Eufrates. Cuidar de um bando de animais sarnentos,  abandonados e recolhidos das ruas pelas carrocinhas da prefeitura. A empresa onde o Rochê trabalhava dispunha de um imenso galpão na Freguesia do Ó  e se dedicava, entre outras coisas, a este seguimento de cunho social, objetivando tirar das ruas cachorros e gatos famintos e doentes, deixados, na maioria das vezes por seus donos, aos reveses da má sorte e as intempéries do destino.

Fonte:
Do livro “Comédias da vida na privada” – de Aparecido Raimundo de Souza, pela Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro.
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 28) Língua presa

O autor é de Vila Velha/ES

 
O ESCRITÓRIO DO ADVOGADO ficava literalmene em frente ao prédio da delegacia de polícia.  Por esta razão, assim que o rapaz que acabara de entrar em sua sala trazido pela sua secretária, o causídico indicou gentilmente uma cadeira. Antes de se acomodar, o moço tirou da cabeça um boné ensebado e o colocou sobre a mesa cheia de papéis e processos:

—  Bom dia, meu jovem. Aceita  água gelada?

— Boum diua paura o seunhour taumbuém. Nãu, oubriugaudo. Seurei breuve.

—  Um cafezinho, ao menos?

—  Teunhu qui paugar?

—  Claro que não, meu amigo. É tudo por conta do nosso escritório.

—  Entãu eu auceitu um...

—  Quer comer alguma coisa? Temos bolo de laranja...

—  Se eu tiuver que paugar, preufiuro só o caufé...

O criminalista chamou a atendente pelo interfone e solicitou que trouxesse a bebida para dois:

—  Vamos ao seu caso, senhor... Como é mesmo seu nome?

—  Audeusgeusto Fumouso.

—  Pois não. Conte o que aconteceu?

— Meu aumiugo se meuteu nuuma encreunca e a pouliucia trouxe eule auqui paura a deuleugaucia.

—  Sabe dizer exatamente qual o motivo?

— Seugundo o pouliuciaul de plauntão, roubo de uma mouto. Mas já foui tudo deuviudamente esclaureucido.

—  Entendi. Mas ele, seu amigo, ainda continua detido?

—  Nãu. Doutour. Aucaubou de ser liubeurado. Eustá auté auli foura me espeuraundo.

A recepcionista entrou com a bandeja  e  serviu os dois homens em silêncio:

—  Senhor, açúcar ou adoçante?

—  Auçuucar, pour fauvour.

—  Não entendi, cavalheiro!

—  Aucho meulhour toumar puro meusmo...

Terminada esta  tarefa, a jovem acenou para os dois e retornou à recepção:

—  Bem, seu Adegesto...

—  Audeusgeusto...

—  Como se escreve, ou melhor, como se pronuncia? Adegesto ou Adeusgesto?

—  Audeusgeusto.

—  Ok. Seu Audeusgeusto, pelo que entendi, seu amigo não está mais detido ai na delegacia, correto?

—  Grauças à Deus, nãu.

— Confesso ao senhor que não entendi uma coisa. Como se chama, afinal, este seu amigo: Souto ou Solto?

—  Ourlaundo!

—  Mas o senhor disse à minha funcionária, ainda a pouco,  que seu amigo Souto foi... Solt... E...  

— ...Nãu, nãu diusse. Fui beum clauro com eula. Faulei  o seuguiunte: que o meu aumiugo Ourlaundo... De onde o senhour tiurou euste taul de Souto?

— Calma, vamos recapitular: o que o senhor falou, afinal, para minha subordinada quando ela o interpelou na recepção ai da delegacia?

—  Queu meu aumiugo Orlaundo esteuve, mas augoura nãu está mais...

—  Mais o quê?

—  La deuntro da deuleugaucia, com o doutour deuleugaudo.

—  Então ele foi realmente solto?

— Foui. Diaunte diusso eu vium auté auqui augraudecer, pois nãu vou mauis preuciusar de seus serviuços. Taumbém sauber se deuvo aulguma couisa coum reulaução a hounouraurios. Aufiunaul de countas a sua ausseussoura foi muito euducauda...

— Tudo bem, o  senhor não me deve nada. Apenas gostaria de um pequeno esclarecimento. Estou, ainda pra lá de confuso. Desculpe a insistência, seu Adeusgesto: seu amigo é o Souto?

— Nãu, doutour. Pour tudo quaunto é mais saugraudo. Meu noume é Audeusgeusto...  

— Realmente acho que não estamos conseguindo nos entender.  O Souto, ou melhor, o Orlando  veio preso e agora está solto?

—  Euste taul de Soulto nunca eusteuve preuso. Se nãu eusteuve preuso, jaumais poudeuria ter siudo soulto. O Ourlaundo sim... De preuso, passou a soulto... E soulto, pourtaunto, eule eustá augoura.

Risos:

— Por acaso isto é algum tipo de brincadeira?

— Nãu senhour. Clauro que nãu.

— Então?

— O Ourlaundo, coumo eu diusse, está soulto. Enteunde o que diugo? Eule augoura está souto. Fuoi aupenas um maul enteundiudo. Coumo poude ver, tudo se  feuz deuviudaumente esclaureuciudo. Miunha preusença auqui no seu euscriutóurio  se deuve  aupeunas paura vuer se eu lhe deuvo aulgum vaulour e, soubreutudo augraudeucer a sua iunterveunção e, clauro, a da sua aumaubilíssiuma beuldaude que fiuca  na meusinha da sua aunteusaula.

Para descomplicar a vida, ou melhor, a conversação e o entendimento entre seu cliente, o jurista ‘porta de cadeia’ procurou falar no mesmo linguajar dele:

— Iusto nous leuva a councluir que eule, o Ourlaundo  eustauva preuso e augoura grauças a Deus, foui soulto?

Audeusgeusto Fumoso, se sentindo imitado, e pior, zombado, perdeu as estribeiras. Fechou o semblante. Gritou, colérico:   

— O seinhour pour aucauso reusoulveu gouzar da miunha caura?

— De forma alguma, seu Adegesto. Por tudo quanto é sagrado. Longe de mim esta ideia absurda.

— Audeusgeusto. Meu nome é Audeusgeusto...

Em seguida se levantou da cadeira mais irritado e furioso. Passou a mão no boné ensebado, virou as costas e saiu definitivamente da sala.

Fonte:
Do livro “Comédias da vida na privada” – de Aparecido Raimundo de Souza
Texto enviado pelo autor.