segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 29) Tarja com Caveira


O EUFRATES ESTAVA PRA LÁ DE CONTENTE. Havia arranjado um serviço de última hora em São Paulo e não via chegar o dia para se apresentar no escritório da empresa e começar a trabalhar. Procurava uma ocupação há meses e pensava até em desistir e não sair mais da casa materna, em Catingal, a sua cidade natal incrustada no interior bem escondido da Bahia. O novo batente prometia salário mínimo na carteira, vale transporte e refeição, cesta básica, plano de saúde e uma pequena ajuda de custo. Não muita coisa, mas, de imediato, ajudaria a sair da pindaíba na qual estava metido até os cafundós do pescoço.

Fora conversando praticamente todos os dias por telefone com um amigo que fora antes para a capital dos paulistas, o Rochê, que trabalhava na dita empresa havia anos e, ao saber da vaga, indicara seu nome:

— Eufrates, pra quebrar o galho, você deve pegar. Depois aparece coisa melhor...

— ‘Cê sabe’ qual vai ser a minha função?

— Pelo que me passou a Umbelina, alguma coisa ligada à preservação de espécies.

— Quem é Umbelina?

— A secretária linda e maravilhosa do Doutor Bepantol.

— Doutor o quê?

— Bepantol. Marquei a sua entrevista com ele, para segunda-feira, às dez horas em ponto. Mandei dinheiro suficiente na conta da sua mãe, para você comprar a passagem e comer alguma coisa na estrada. Procure chegar um pouco mais cedo. No Tietê você pega um táxi, mostra o endereço para o motorista. É pertinho...  

— Preservação de espécies, você disse?

— É. Pelo menos foi o que me passou a secretária, quando nos esbarramos, muito rápido, no refeitório, na hora do lanche.

— Rochê, estou me sentindo um nadador solitário dando braçadas em águas turbulentas. Ao meu redor, percebo que os peixes estão inquietos...

— Impressão sua. Vai dar tudo certo. Confia. Passa os cinco dedos em você, embarca no primeiro buzão e se manda pra cá.

— Quanto ao mar ou aos peixes...

—... Deixe de filosofar, Eufrates. Aproveita o resto do dia de hoje, faça a barba, corte os cabelos, engraxe os sapatos, ponha a sua melhor roupa e siga em frente. Não me decepcione. Até segunda feira, você tem pela frente, a seu favor, quase cinco dias.

— Certo. Voltando a tal da preservação...

— O que você quer saber exatamente?

— Não tem como me adiantar alguns detalhes?

— Fora de cogitação, cara.

— E por quê?

— Porque eu trabalho num setor e a Umbelina e o doutor Bepantol em outro. Existe um imenso corredor cheio de portas com cartões magnéticos nos separando. Soube da disponibilidade da vaga por mero acaso.

— Rochê, e se você levasse um papinho com a tal da Umbelina?

— Não tenho intimidades para isso, meu amigo. A gente só se vê, de vez em quando, no refeitório, no horário de almoço ou no lanche da tarde. Fora do expediente é quase impossível.

— Bem, se é assim, na segunda-feira estarei marcando presença  no pedaço.

— Não perca a oportunidade. Se abolete num quarenta janelinhas e queima o chão.  No mais, Fé em Deus e pé na tábua.

Na segunda-feira, um pouco antes das seis horas, o Eufrates depois de uma viagem esmagadoramente estafante, apeava no Terminal Tietê. No Terminal Tietê pegou um táxi e se mandou para o endereço onde ficava o seu futuro promissor.

Compenetradamente sentado na recepção que antecedia à sala do doutor Bepantol, cheio de malas e bolsas, o infeliz olhava cheio de curiosidade para as pernas roliças da apetitosa e inimitável Umbelina.

Nas mãos trêmulas trazia (num envelope comprado às pressas) o currículo básico, com uma foto de terno e gravata tirada no ano passado — na verdade, um pequeno histórico da sua profissionalidade feito por Rochê — meio que às carreiras (e enviado para Catingal via WhatsApp), contendo os dados essenciais, experiências profissionais, essas coisas que geralmente as pessoas colocam para encherem linguiça e chamarem a atenção e impressionarem os futuros patrões.

Na prática, as pérolas pinçadas geralmente da imaginação dos candidatos não colam. Os entrevistadores estão carecas de saber que cinquenta por cento das experiências apresentadas são meras balelas, ou seja, um punhado de quesitos elencados onde o candidato, às vezes, não têm a mínima noção ou ideia do que é e para que serve. O caso de Eufrates, não ia muito além desta dura realidade.

Da vasta experiência profissional que apresentava, de verdade mesmo, sabia apenas lavar garfos, facas e colheres e  enxugar pratos e copos em restaurantes de sua querida e pacata Catingal, além de cuidar de pequenos serviços, como desentupir vasos sanitários e lavatórios, trocar lâmpadas queimadas, varrer corredores das casas dos ricos, cuidar de jardins e armazenar sacolas de lixos tóxicos dos hospitais da região em carrocerias nos caminhões de coletas.

No mais, digitação, cursos disso e daquilo, idiomas, redação própria, etc. etc. “neca de pitibiriba”. Eufrates passava quilômetros de distância dessas preciosidades. Não deu outra. Na hora em que ficou frente a frente com a estrepitosidade da Umbelina e pior, com o chefe sisudo e de pouca conversa dela, o doutor Bepantol, o cenário se fez mais infeliz e desanimativo. Após uma série de testes psicológicos, preenchimentos de fichas, prova disto e daquilo, sem falar nos exames médicos, os pré-adicionais exigidos, o cidadão foi admitido.

A função, enfim descoberta: auxiliar de serviços gerais: abreviando a história do Eufrates. Cuidar de um bando de animais sarnentos,  abandonados e recolhidos das ruas pelas carrocinhas da prefeitura. A empresa onde o Rochê trabalhava dispunha de um imenso galpão na Freguesia do Ó  e se dedicava, entre outras coisas, a este seguimento de cunho social, objetivando tirar das ruas cachorros e gatos famintos e doentes, deixados, na maioria das vezes por seus donos, aos reveses da má sorte e as intempéries do destino.

Fonte:
Do livro “Comédias da vida na privada” – de Aparecido Raimundo de Souza, pela Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro.
Texto enviado pelo autor.

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