sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Fernando Sabino (Televisão para Dois)


Ao chegar ele via uma luz que se coava por baixo da porta para o corredor às escuras. Era enfiar a chave na fechadura e a luz se apagava. Na sala, punha a mão na televisão, só para se certificar: quente, como desconfiava. Às vezes ainda pressentia movimento na cozinha:

- Etelvina, é você?  

A preta aparecia, esfregando os olhos:  

- Ouvi o senhor chegar... Quer um cafezinho?  

Um dia ele abriu o jogo:  

- Se você quiser ver televisão quando eu não estou em casa, pode ver à vontade.

- Não precisa não, doutor. Não gosto de televisão.  

- E eu muito menos.  

Solteirão, morando sozinho, pouco parava em casa. A pobre da cozinheira metida lá no seu quarto o dia inteiro, sozinha também, sem ter muito que fazer... Mas a verdade é que ele curtia o seu futebolzinho aos domingos, o noticiário todas as noites e mesmo um ou outro capítulo da novela, "só para fazer sono", como costumava dizer:

- Tenho horror de televisão.  

Um dia Etelvina acabou concordando:  

- Já que o senhor não se incomoda...  

Não sabia que ia se arrepender tão cedo: ao chegar da rua, a luz azulada sob a porta já não se apagava quando introduzia a chave na fechadura. A princípio ela ainda se erguia da ponta do sofá onde ousava se sentar muito ereta:

- Quer que eu desligue, doutor?  

Com o tempo, ela foi deixando de se incomodar quando o patrão entrava, mal percebia a sua chegada. E ele ia se refugiar no quarto, a que se reduzira seu espaço útil dentro de casa. Se precisava vir até a sala para apanhar um livro, mal ousava acender a luz:

- Com licença...  

Nem ao menos tinha mais liberdade de circular pelo apartamento em trajes menores, que era o que lhe restava de comodidade, na solidão em que vivia: a cozinheira lá na sala a noite toda, olhos pregados na televisão. Pouco a pouco ela se punha cada vez mais à vontade, já derreada no sofá, e se dando mesmo ao direito de só servir o jantar depois da novela das oito. Às vezes ele vinha para casa mais cedo, especialmente para ver determinado programa que lhe haviam recomendado, ficava sem jeito de estar ali olhando ao lado dela, sentados os dois como amiguinhos. Muito menos ousaria perturbá-la, mudando o canal, se o que lhe interessava estivesse sendo mostrado em outra estação.

A solução do problema lhe surgiu um dia, quando alguém, muito espantado que ele não tivesse televisão em cores, sugeriu-lhe que comprasse uma:

- Etelvina, pode levar essa televisão lá para o seu quarto, que hoje vai chegar outra para mim.

- Não precisava, doutor. - disse ela, mostrando os  dentes, toda feliz.

Ele passou a ver tranquilamente o que quisesse na sua sala, em cores, e, o que era melhor, de cuecas - quando não inteiramente nu, se bem o desejasse.

Até que uma noite teve a surpresa de ver a luz por debaixo da porta, ao chegar. Nem bem entrara e já não havia ninguém na sala, como antes - a televisão ainda quente.

Foi à cozinha a pretexto de beber um copo d'água, esticou um olho lá para o quarto na área: a luz azulada, a preta entretida com a televisão certamente recém-ligada.

- Não pensa que me engana, minha velha - resmungou ele.

Aquilo se repetiu algumas vezes, antes que ele resolvesse acabar com o abuso: afinal, ela já tinha a dela, que diabo. Entrou uma noite de supetão e flagrou a cozinheira às gargalhadas com um programa humorístico.

- Qual é, Etelvina? A sua quebrou?

Ela não teve jeito senão confessar, com um sorriso  encabulado:

- Colorido é tão mais bonito...  

Desde então a dúvida se instalou no seu espírito: não sabe se despede a empregada, se lhe confia o novo aparelho  e traz de volta para a sala o antigo, se deixa que ela assista a  seu lado aos programas em cores.

O que significa praticamente casar-se com ela, pois, segundo a mais nova concepção de casamento, a verdadeira felicidade conjugal consiste em ver televisão a dois.

Fonte:
Os melhores contos de Fernando Sabino. RJ: Record, 1986.

Nenhum comentário: