quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 8: Lados opostos


A MENINA TODA SUJA, os pés descalços no cimento frio, uma sainha curta, desbotada e em tiras, encimada por uma camisa-blusa com vários buracos à luz de uma lua clara, surge diante de mim, assim, do nada. Traz, nas mãos, umas flores de aparências estranhas e, a princípio, penso que pretendesse vendê-las em troca de algumas moedas.

Humildemente ela se aproxima, me dirige um ‘boa noite’ vagaroso e pede ‘desculpas pela intromissão’. A minha mesa armada na calçada da longa avenida movimentada, junto com outras e, nelas, à distancias poucas, alguns gatos pingados bebem cerveja enquanto casais de namorados trocam afagos e permutam carícias espiando a escuridão do mar.

Ela parece ter me colocado na sua alça de mira. Ao invés de se dirigir aos demais, ao redor, prefere vir até mim. A mesa que ocupo, está cheia de pratos e talheres, além de duas garrafas de refrigerantes, uma delas com metade da bebida que eu ainda me servia a goles moderados e duas bandejas com restos de batatas fritas e alguns pedaços de um churrasco no palitinho que eu pedi e rejeitei, em face de conter restilhos de gordura.

Com a mesma simplicidade e candura que chega, e diante da minha negativa de lhe dar alguns trocados, a jovenzinha pergunta se eu me importo que ela pegue aquelas sobras. Aquiesço e ela rapidamente arremata o que eu deixei de comer e engole numa pressa de fome voraz intensa. Indaga, seguidamente, se eu ainda me servirei do restante do guaraná e também declino para que possa matar a sua sede.

Depois, num sorriso de satisfação me agradece e vai embora. Desaparece tão silenciosa como chegou. Fico imaginando, com meus botões, como a vida, para alguns, se mostra hostil e sem razão, enquanto para outros, se exibe maravilhosa e gentil, mostrando um leque de caminhos diferenciados que acabam em horizontes floridos e auspiciosos.

Para esta pobre criança, que acabou de sair do meu campo de visão, acredito ai, na casa dos treze, talvez menos, padece uma vida ingrata e infame, uma existência lhe cai cruel todos os dias sobre as costas. Para mim, ao contrário, se mostra alegre e benfazeja. Olho para meus pratos vazios e penso em tudo o que o meu dinheiro pode comprar, ao passo que a miserável criaturinha carece ficar à deriva.

Purgando ao acaso do Deus dará, indo e vindo, chegando e deschegando, implorando a um e outro alguma coisa que será jogada fora para colocar no estômago vazio e, com a voz áspera da maldita fome gritando severamente mais alta.

Meu Deus!... Eu tenho o direito de me sentar aqui e ela, coitadinha, sequer se pode dar ao luxo, ao prazer, ou ao gosto de se acomodar num destes estabelecimentos montados ao longo da calçada à beira mar e espantar a orexia* dolorosa e lastimosa que a atormenta e, via paralela, que esmaga e definha, corrói e deprava, de maneira contundente as belezas da sua infância perdida.
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*orexia – med.: necessidade ou desejo imperioso e contínuo de ingerir alimentos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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