segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Estante de Livros (O Largo da Palma, de Adonias Filho)–2–


SEGUNDO EPISÓDIO: O LARGO DE BRANCO

Eliane, “cabelos brancos”, sozinha, morando num quarto muito pobre e pequeno na rua Bângala, vai a um encontro. Ela foi abandonada por seu companheiro, Geraldo, depois de 30 anos, ficando sem recursos. Na verdade “ele jogara o dinheiro na cama e, como se estivesse a pagar a vida quase inteira em comum, saíra a bater a porta com estupidez”.

Ela vai encontrar-se com Odilon, seu primeiro marido de quem ela tinha se separado há trinta anos. Ele estava voltando a Salvador e queria um encontro, “naquele dia mesmo, ao meio dia, no Largo da Palma. Em frente, bem em frente da igreja”.

Na carta ele lhe dizia que soubera de sua situação e queria vê-la. Quando chega “o Largo da Palma, em junho, sempre espera o sol para vencer o frio que sobre da noite”. Ela chegou cedo. As pedras, no chão, deviam ter séculos.

O narrador faz uma volta ao passado de Eliane para narrar a infância dela, o nascimento da irmãzinha, Joanita, a alegria da mãe, sempre a sorrir, o pai calado, cada vez mais calado. Depois, o tempo em que o pai chega bêbado, até o dia em que cai, deitado de bruços, como um morto.

A ambulância chega, vem o médico e um estudante, que Eliane ouve o médico chamar de Odilon. O pai é levado, e Odilon vai todo dia dar notícias, até o dia em que o pai volta, doente para casa, sem poder mais trabalhar. Em três meses Odilon será médico, e tudo nele respira bondade, calma e boa vontade. Ela conclui que Odilon não é um homem comum. A casa fica triste, a mãe perde o riso, a família está na miséria. A morte do pai foi um alívio. Todos viam que Odilon estava apaixonado por Eliane.

Eles ficam noivos, casam. Ela entende, então que o marido era “um homem inteiramente desligado do mundo” Só o que interessava a ele eram os doentes, o hospital, o ambulatório, chegando ao ponto de comprar remédios para os doentes, mesmo sabendo que a mãe e a irmã precisavam muito de dinheiro.

Ele era feio, desajeitado e desligado do mundo, mas a tratava com o maior carinho. A dor maior aconteceu quando ela ficou sabendo que não poderia ter filhos. O choque que sofreu foi tão grande que Odilon se afastou do hospital por três dias. Mas mesmo todo o amor que o marido dedicava não era suficiente, pois ela se sentia cada vez mais separada dele.

Algumas vezes, irritada, zangada, dirigia-se a ele ofendendo-o, dizendo palavrões.

Ele era incapaz de zangar-se. No último dia o agrediu aos gritos, saiu batendo a porta. Foi para um hotelzinho, à beira da praia, e foi lá que viu Geraldo, o homem mais bonito que tinha conhecido. Quando ele se aproximou, olhou-a, não teve coragem de se afastar.

Agora, depois de trinta anos, Odilon voltava, sabendo do abandono, queria vê-la. Ela sentiu fome e lembrou que, talvez “A Casa dos Pãezinhos de Queijo” estivesse aberta.

Mas ela se aproxima da igreja, e vê Odilon.

Está de pé, o paletó chegando aos joelhos, a calça frouxa sobre as pernas, o laço da gravata quase no peito, velho e sujo o chapéu de feltro. E, talvez, por causa do buquê de rosas vermelhas que tem na mão, parece um palhaço de circo. É ele, Odilon, não há dúvida. Os cabelos grisalhos, bastante envelhecido, mas o mesmo homem de sempre. (…) E como se nada houvesse acontecido naqueles trinta anos, desde que se separaram, ele apenas diz: – Vamos, Eliane, vamos para casa.(…) E Eliane, não tem dúvida de que o seu velho largo, como num dia de festa está vestido de branco. (p.47)

COMENTÁRIO

Novamente o espaço do Largo da Palma é testemunha de uma história humana. O largo fica de branco, festivo para dar alegria e alívio a uma velha mulher desiludida e triste. Uma história de amor transparece nas entrelinhas, feita de fidelidade, persistência, resistindo ao tempo e ao abandono.

O “branco” é uma cor simbólica, representando uma mudança de condição. Recebe todas as cores, por isso tem um valor limite de cor de passagem, da qual se esperam mutações do ser. É a cor da revelação e da graça; desperta o entendimento, a consciência desabrochada.

O texto é construído lentamente, despertando o interesse em relação ao desfecho, e lá está o Largo da Palma, antigo, firme, fiel a seu destino, iluminado pelo sol, com o céu muito azul, veste-se de branco, trazendo para Eliane a certeza de que haverá uma transformação em sua vida, sua consciência desperta para valores que, quando jovem, não soube avaliar devidamente.

Fonte:
– ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade, p.21. Disponível no Portal São Francisco.

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