domingo, 6 de dezembro de 2020

Paulo Leminski (Versos Diversos) 7

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além alma
(uma grama depois)


Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar
Já no peito trago em bronze:
NÃO TEM VAGA NEM LUGAR
Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
Mais me parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero quem chora,
se estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?
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arte do chá

ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo

ele veio
meio a esmo
praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo
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desencontrários

Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.

Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.
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o par que me parece

Pesa dentro de mim
o idioma que não fiz,
aquela língua sem fim
feita de ais e de aquis.
Era uma língua bonita,
música, mais que palavra,
alguma coisa de hitita,
praia do mar de Java.
Um idioma perfeito,
quase não tinha objeto.
Pronomes do caso reto,
nunca acabavam sujeitos.
Tudo era seu múltiplo,
verbo, triplo, prolixo.
Gritos eram os únicos.
O resto ia pro lixo.
Dois leos em cada pardo,
dois saltos em cada pulo,
eu que só via a metade,
silêncio, está tudo duplo.
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plena pausa

Lugar onde se faz
o que já foi feito,
branco da página,
soma de todos os textos,
foi-se o tempo
quando, escrevendo,
era preciso
uma folha isenta.
Nenhuma página
jamais foi limpa.
Mesmo a mais Saara,
ártica, significa.
Nunca houve isso,
uma página em branco.
No fundo, todas gritam,
pálidas de tanto.
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signo ascendente

Nem todo espelho
reflita este hieroglifo.
Nem todo olho
decifre esse ideograma.
Se tudo existe
para acabar num livro,
se tudo enigma
a alma de quem ama!

Fonte:
Paulo Leminski. Distraídos venceremos. Publicado em 1987.
Livro enviado pelo autor.

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