TERCEIRO EPISÓDIO: UM AVÔ MUITO VELHO
A narrativa inicia-se anunciando que algo aconteceu ao avô Loio, muito velho. Morava no Gravatá a poucos passos do Largo da Palma aonde chegava sem pressa, sentindo o cheiro do incenso que vinha da igreja se misturando com o aroma dos pãezinhos de queijo.
A neta Pintinha é a alegria do avô.
A pretinha viva e esperta, a mostrar os dentinhos no riso alegre, a falar pelos cotovelos na língua embrulhada, era a grande alegria do pai, Chico Timóteo, da mãe Maria Eponina, e dele próprio, o velho negro Loio.
Desde os primeiros passos ela anda com ele; ele a leva à escola, depois ela vai com as amigas e, finalmente, chega o dia em que Pintinha recebe o diploma de professora.
O velho Loio era tocador de sanfona. Num retrocesso temporal ficamos sabendo do passado do velho negro Loio. Seu pai era pescador, perdeu uma perna no mar, dizia que na guerra com os tubarões. Vendera o saveiro, e, comprando uma porta vende charutos, dá sorte e compra uma loja no Mercado Modelo. Loio apaixonou-se por Aparecida, aos dezoito anos, e aquela mulher era tudo para ele: mãe, amiga e amante, uma sanfoneira como ele.
Negra como ele, mais velha que ele doze anos, de tantas coisas entendia que a sabedoria em pessoa. Sanfoneira, jogadora de baralho e dados, cantora nas ruas do cais, prostituta aos sábados, cartomante e rezadeira, mulher sem pouso certo que apenas tinha de seu o maior coração da Bahia.
Numa ocasião, Aparecida põe as cartas e lhe diz que viu que há uma morte nas mãos dele. Um dia a polícia chegou e ele foi reconhecer Aparecida no chão, morta, numa poça do próprio sangue. A partir daí Loio vai trabalhar no mercado com o pai até o dia em que morreu com dores no peito, tendo deixado “como herança a birosca, um bocado de dinheiro e um terreno no Rio Vermelho”. Comprou outra porta no mercado e tornou-se comerciante remediado.
Continuou a tocar a sanfona, mas nunca aceitou convites para tocar nas festas. Só comparecia a circos e foi lá que conheceu Verinha. Vendeu o terreno, comprou uma casa no Gravatá, e dizia que o Largo da Palma era tanto de Verinha quanto da Santa.
Quando os negócios prosperaram precisou contratar um ajudante. Depois de duas tentativas Maria Ecléa, vendedora de rendas do Ceará ofereceu o filho, Chico Timóteo. A confiança cresce entre eles, quando a mãe de Chico falece, Loio o convida para almoçar na casa dele. Assim começa o namoro, vem o noivado e o casamento de Chico Timóteo com Maria Eponina. Loio oferece sua casa para o casal e vai morar nos quarto dos fundos.
Andando pelo Largo da Lapa, o velho negro Loio vai relembrando o passado.
Vem a recordação do dia em que Pintinha é professora nomeada, e vai ensinar na Amaralina. Encanta-se com a dedicação da neta com os alunos, filhos de pescadores.
Mas naquela noite, Pintinha não voltou das aulas. O desespero e a loucura tomam conta de Maria Eponina e de Chico Timóteo. A polícia veio dizer que Pintinha foi agredida, bateram, violentaram e atiraram nela e agora está entre a vida e a morte.
Três meses de dor, de sofrimento. Duas operações depois voltou para casa. Tão doente, com tantas dores, não reconhecia ninguém. O velho negro Loio buscava paz no Largo da Palma.
Um dia vai falar com o médico, Dr. Eulálio Sá, e soube que as operações só prolongaram um pouco a vida, mas que as dores seriam insuportáveis. Quando foi ver a neta, doeu muito seu coração de velho e saiu de cabeça baixa para o Largo da Palma.
Procurou o farmacêutico, pediu um veneno para matar um cachorro que estava velho e doente. Ao chegar em casa, dissolve o veneno na água e dá para Pintinha. Lavou o copo muito bem, depois e ficou na sala. Agora ele tem uma morte nas mãos.
A filha veio do quarto, “indiferente, sem lágrimas e quase sem voz: Traga uma vela, pai, Pintinha acaba de morrer.”
COMENTÁRIO
Nesse episódio, a eutanásia é o tema em torno do qual se desenvolve a narrativa. Embora ela só apareça no final, durante todo o conto há signos de morte e de tragédia. A delicadeza com que o narrador descreve a forte ligação entre o avô e a neta, a dedicação extrema que há entre eles é tecida ao longo da narrativa.
Com uma síntese brilhante tomamos conhecimento da vida desse velho avô, que só procurou a paz, o amor e que por amor no fim da vida realiza o ato anunciado nas primeiras linhas “O velho, quando aquilo aconteceu, trancou-se em si mesmo”.
Apenas o Largo da Palma é capaz de trazer a paz, talvez que todos o esqueçam, mas “Todos sabem em Salvador da Bahia que, apesar da idade, antigo de muitos séculos, o Largo da Palma tem boa memória. Como esquecer o velho negro Loio, nas manhãs de sol ou de chuva, a levar a neta para as aulas?”
Fonte:
– ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade, p.21. Disponível no Portal São Francisco.
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