Análise pelo Me. Fernando Marinho
“Memórias póstumas de Brás Cubas”, publicado em 1881, é uma das principais obras do escritor Machado de Assis. A publicação desse romance é considerada o marco inicial do Realismo no Brasil, e seu autor, por consequência, é reconhecido como o pai de tal movimento em terras brasileiras.
CARACTERÍSTICAS DE MACHADO DE ASSIS
O autor criticou vários valores burgueses por meio de ironias e metalinguagens. Precedendo não só o próprio realismo, instaurou o realismo psicológico, claramente visto em seus romances por fazer diálogos diretos com o leitor e também por conta de pensamentos pontuais que surgem ao longo da narrativa como uma reflexão sobre os acontecimentos que se passam no romance, similar à quebra da quarta parede no teatro, quando o ator cria um diálogo direto com o espectador.
Machado tratava com frequência sobre a ascensão social e a manutenção das aparências sociais por meio de críticas à burguesia, dando luz ao realismo brasileiro. Suas obras, recheadas de ironias, abordam o que o autor observava na sociedade da época. O Rio de Janeiro do Brasil passava por uma transição da falta de infraestrutura, ganhando planejamento baseado no urbanismo de Paris, na França: sofisticação para satisfazer a proeminente parcela burguesa da população da época. Estima-se que de 200 mil cidadãos cariocas, 100 mil eram escravos e, desse total, apenas 20% eram letrados, configurando uma população em que 80% eram analfabetos.
Sua carreira pode ser dividida em duas fases, sendo a primeira caracteristicamente mais romântica, predominando obras como seu primeiro romance, ‘Ressurreição’; sua primeira peça, ‘Queda que as mulheres têm pelos tolos’; e o livro de poesias ‘Crisálidas’. A fase romântica perdurou entre 1864 e meados de 1878.
Sua segunda fase teve início com a publicação do livro ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’, livro escrito logo após ser internado devido ao seu quadro de epilepsia, que o forçava a tomar remédios fortes, que lhe desgastavam a saúde. Ainda internado, chegou a enviar alguns capítulos do romance à sua esposa, Carolina Augusta Xavier de Novais. Como um marco entre uma fase e outra, percebe-se que, nessa nova fase, Machado apresenta fortes traços de pessimismo e ironia, que se tornam grandes características da obra do autor, acompanhando-o até seus últimos dias.
RESUMO DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS
Trata-se de uma narrativa feita em primeira pessoa, com o inusitado de o narrador já ter morrido quando começou a escrever;
Narra-se, de maneira breve, a infância do protagonista;
São contados os diversos amores de Brás Cubas, protagonista da história;
Descreve-se a vida adulta de Cubas, suas diversas tentativas de trabalho e de invenção (tal qual o emplasto);
Por fim, o narrador descreve sua vida como um conjunto de negativas que acabam com um único saldo positivo: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
CONTEXTO
O contexto histórico que dialoga com o romance Memórias póstumas de Brás Cubas é o de um Brasil construindo sua urbanidade, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, capital nacional no período. De modo geral, a obra de Machado de Assis retrata os tipos e cenas comuns dessa sociedade carioca.
A libertação dos escravos , em 1888, e seus efeitos na vida urbana, assim como a reestruturação política brasileira a partir da Proclamação da República, em 1889, são alguns dos fatos históricos que permeiam o livro machadiano.
Veja, a seguir, um trecho do romance em que o narrador retrata sua relação com os escravos na infância:
Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — “ai, nhonhô!” — ao que eu retorquia: — “Cala a boca, besta!”
ANÁLISE DA OBRA
O romance Memórias póstumas de Brás Cubas é uma obra complexa, e os diversos detalhes presentes no seu enredo só podem ser apreendidos a partir da leitura, na íntegra, do livro de Machado de Assis. Não obstante, a seguir descrevemos alguns dos pontos fundamentais para a compreensão da narrativa.
NARRADOR: DEFUNTO AUTOR
O romance machadiano é narrado em primeira pessoa, possuindo, portanto, um narrador em primeira pessoa e, nessa estruturação, há duas questões fundamentais:
Primeiramente, essa escolha afasta a obra das narrativas realistas europeias – ali se usava o narrador onisciente para transferir à obra maior grau de objetividade;
Em segundo lugar, para além do uso de um personagem narrando sua vida a partir de uma visão particular – e subjetiva, portanto –, Brás Cubas, antes de começar a contar sua história, morre. Nesse sentido, a personagem intitula-se não um autor defunto, mas sim um defunto autor – haja vista que a morte ocorre antes da escrita de suas memórias póstumas.
INFÂNCIA
A infância de Brás Cubas é contada brevemente nos primeiros capítulos do romance. Ali, percebemos a representação de uma infância não idealizada e, em muitos casos, até cruel – conforme se pode ver na descrição da relação entre o narrador e um escravo, transcrita anteriormente.
Feito dessa forma, o retrato dos anos de criança afasta o romance de Machado de Assis do Romantismo, movimento em que a mocidade é vista como ideal e motivo de saudade.
AMORES
O amor é outro elemento que afasta o romance Memórias póstumas de Brás Cubas da estética romântica – movimento que foi sucedido pelo Realismo.
Para os românticos, tais quais José de Alencar e Álvares de Azevedo , o sentimento amoroso era representado como maior meta da vida e, em muitos casos, inatingível. Além disso, a figura da amada era idealizada e única.
No romance de Machado de Assis, entretanto, não há idealização do amor ou da mulher. De fato, Brás Cubas tem uma grande paixão na vida, a personagem Virgília. Entretanto, ela nem é única e tampouco completamente correspondida e eterna. Outros amores do protagonista são Marcela, Eugênia e Nhã-Loló.
Trecho do romance em que Brás Cubas descreve seu maior amor, Virgília:
Virgília? Mas então era a mesma senhora que alguns anos depois?... A mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais íntimas sensações. Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que ia lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, — devoção, ou talvez medo; creio que medo.
EMPLASTO BRÁS CUBAS
Já no final da vida, Brás Cubas assume para si a responsabilidade de criar um medicamento capaz de curar todas as doenças do mundo. Tal projeto, obviamente, não dá certo e torna-se mais uma das frustrações do narrador.
Leia, a seguir, o momento em que o narrador conta da ideia do remédio, intitulado “Emplasto Brás Cubas”:
Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.
Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade.
O CAPÍTULO DAS NEGATIVAS
O último capítulo do romance tornou-se célebre por resumir a ironia e o pessimismo típicos da escrita de Machado de Assis. Nele, Brás Cubas faz uma espécie da ponderação acerca da própria vida, que, segundo ele, pode ser resumida como uma sucessão de negativas. Não obstante, um saldo positivo acaba restando para o narrador, conforme se lê a seguir:
Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
PERSONAGENS
O romance Memórias póstumas de Brás Cubas é longo – conta-se toda a vida e morte do protagonista. Por isso, não é curta a lista de personagens presentes na obra. Não obstante, alguns deles são de fundamental importância e vale a lembrança:
Brás Cubas, protagonista da história;
Virgília, maior paixão de Brás Cubas;
Lobo Neves, marido de Virgília e político;
Marcela, prostituta e primeiro amor de Brás Cubas;
Eugênia, segundo amor do narrador;
Nhã-Loló, que se casaria com Brás Cubas, mas falece vitimada pela febre amarela;
Quincas Borba, amigo de infância de Brás Cubas. Esse específico personagem teve seu próprio romance também publicado por Machado de Assis.
Fonte:
MARINHO, Fernando. "Memórias póstumas de Brás Cubas". Disponível em Brasil Escola: Acesso em 07 de dezembro de 2020.
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