D. Eleonora havia mandado chamar o seu primo, o Dr. Alfredo Bonifácio, para uma consulta íntima, sobre diversos remédios que lhe haviam recomendado, quando abriram inesperadamente o portão da casa.
- É o Augusto! - exclamou, horrorizada, a pobre senhora, apanhando com o pente os lindos cabelos em desordem.
E torcendo as mãos, aflita, a andar de um lado para outro da sala de jantar:
- Minha Nossa Senhora! que horror! que eu hei de fazer, meu Deus!...
E ia, já, nos extremos da aflição, da angustia, do desespero, quando, abrindo a porta que comunicava aquele compartimento com a cozinha, teve uma ideia providencial:
- Esconde-te ali, Alfredo! Depressa! anda! anda!
E empurrou o primo, com o chapéu na mão, para dentro da despensa completamente às escuras.
O velho magistrado não era, felizmente, homem de grande perspicácia, desses que adivinham a passagem de estranhos por obra e graça do indício mais simples. Casado em segundas núpcias, confiava na mulher como confiava no Código. E enganando-se, tanto com o Código como com a mulher, foi com a alma tranquila, calma, satisfeita, que penetrou em casa, naquela noite, após uma palestra sisuda na residência do presidente do Tribunal.
Aberta a porta, o ilustre chefe de família entrou, e, pendurando a cartola na chapeleira, sentou-se, grave, à mesa do chá, ao lado da esposa carinhosa. E ia contar-lhe a sua conversa com o outro sacerdote da Justiça, quando ouviu um barulho de garrafas na dispensa
– Que é isso? Ouviste, Eleonora? - exclamou, assustado.
A mulher empalideceu, e ia, talvez, comprometer-se com uma denúncia, quando o velho, ouvindo de novo o barulho, se levantou de repente, encaminhando-se, firme, para a porta da despensa.
- Quem está aí? - gritou o magistrado, com o terror na garganta..
Na despensa escura, semeada de garrafas de cerveja e águas minerais, a situação do Dr. Bonifácio era delicadíssima. De pé, no meio do compartimento, não podia, sequer, mexer-se. Cada passo que aventurava, era um desastre, uma calamidade, que ia despertar, fora, com um rumor de vidros partidos, a atenção do dono da casa. Ao terceiro barulho, o velho tornou, severo, com o revólver em punho:
- Quem está aí?
E estava, já, resolvido a conformar-se com o silêncio das vezes anteriores, quando uma voz surda, cava, soturna, respondeu, de dentro:
- São as garrafas...
Satisfeito com a descoberta, o magistrado embolsou o revolver, e voltou, sereno, a tomar o seu chá.
Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.
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