domingo, 13 de dezembro de 2020

Carolina Ramos (Maria Angélica)


Maria Angélica deveria beirar os trinta. Moça, ainda. Bonita. Cheia de sonhos. Belos sonhos! Altos em demasia, talvez. Mas, sonhos válidos. Desses que a vida, com suas garras sádicas, costuma furar, prazerosamente, como que invejosa da frágil e inimitável beleza das bolhas de sabão.

Natal. O natal de Maria Angélica chegara antecipado quase que um mês, colocando-lhe nos braços, de mãe solteira, um pequerrucho sadio, a alardear, a plenos pulmões, seu direito à vida.

O "mau passo" a colocara em choque com a família. Família modesta, opositora firme à paternidade irresponsável, que lhe punha à porta o fruto inocente de mais um desses dramas, incansavelmente repetidos no palco do cotidiano, sem lograr aplausos.

Padre Tiago alisou a batina e ajeitou os paramentos.

O sermão daquela noite seria o último de sua carreira eclesiástica, como largamente anunciado. Definido como despedida, teria de ser o máximo. Ultrapassar as emoções, tão pródigas, da noite natalina, penetrar nas almas, deixar marca indelével. Tudo o que de melhor dissera, em suas múltiplas falas, deveria ser superado.

Quantas almas sua palavra eloquente salvara? Nenhuma? Isto o menos provável. Se acaso assim fosse, ainda havia esta última oportunidade. Depois, bem depois era só apresentar-se ao Senhor dizendo: — Missão cumprida! Teria em mãos o passaporte para a suprema e derradeira viagem com data indefinida. Próxima, talvez.

Como que tangido por mãos de anjos travessos, o novo sino, fruto da última quermesse, lotara de fiéis a pequenina igreja.

Sem pressa, o velho sacerdote arrastou os pés de pastor cansado, até o centro do altar. Cabeça baixa, quase beijava as mãos contritas, enlaçadas sobre o peito. Sequer estendeu o olhar ao rebanho, que, sabia, acompanhava sua entrada com especial carinho.

Amava cada um daqueles que ali estavam, ansiosos todos para ouvir-lhe a palavra sábia, fluente e piedosa. Naquela grande noite, certamente mais sábia, mais piedosa do que nunca! Fluente, não!

Custava-lhe despedir-se. Entregar suas ovelhas a um pastor mais moço, prepará-lo com desprendimento para assumir funções para ele tão caras, era, antes de tudo, um ato de obediência, de renúncia, que não conseguia chamar de indolor.

As emoções, somadas de lado a lado, ganhavam vulto à medida que se aproximava o instante do sermão, propositadamente adiado para o final da missa.

Após a bênção, Padre Tiago estendeu o olhar ao longo do aprisco. Lá, bem ao fundo, emoldurada pela porta em arco, descobriu Maria Angélica, humildemente ajoelhada, véu branco, sobre os longos cabelos... nos braços, o filho pequenino a sorrir candidamente para o mundo, cuja hostilidade ainda não conhecia.

Padre Tiago viu repetida, em sua capela, a gruta de Belém! A emoção apertou-lhe a garganta. Pelo cristal das lágrimas, a cena ainda se fazia mais bela! Tentou falar. Não conseguiu.

A pausa silenciosa, atribuída às dificuldades da despedida, aumentava a expectativa.

Com esforço. Padre Tiago controlou parcialmente a emoção, dizendo, com voz embargada de quem enfrenta o público pela primeira vez:

— Feliz... Feliz Natal para todos!

E, naquela Noite Santa, não houve sermão algum.

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

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