sexta-feira, 25 de junho de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 43) Terminal

A MORTE CHEGA para buscar mais um. Trata-se do número 2674238549582408128596848695086, ou melhor, desta senha. A pessoa, assim que for encontrada, deverá deixar imediatamente o mundo dos vivos. A Morte se disfarça numa linda mulher de arrepiar os cabelos, até de quem não os possui mais. O rosto é jovem, o sorriso impecável, a voz maviosa. Traz, na mão, o celular com uma agenda eletrônica conectada diretamente com o Homem Lá De Cima.

O sujeito a ser levado, pelo horário (seis horas da manhã), deve estar purgando os pecados num vagão de metrô em direção a estação Clínicas. Talvez não o que ela acabou de entrar. É preciso procurar minuciosamente. O futuro ‘de cujus’ está indo em direção ao trabalho. A Morte tem a ficha dele completa, porém, em face de ter havido um probleminha de transmissão, justamente na hora do ingresso dentro do vagão do metrô, a Internet deixou de estar conectada com o provedor do Rei do Universo. Por este motivo, o aparelho da Morte não está conseguindo visualizar, na telinha quem é o sujeito.

Neste passo, apesar da ausência momentânea da internet, a Morte sabe que a criatura pode andar por ali, em algum lugar, agrupada aos demais que viajam furdunceados numa algazarra só. É um jovem de trinta anos, 1.78 de altura, 75 quilos, olhos penetrantes e sedutores. Está indo para seu trabalho, no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Em face do rosto ter desaparecido da sua telinha, a Morte precisará usar de outro recurso mais rudimentar, qual seja, averiguar um por um o sujeito a ser pinçado. Como senhora e representante da vida e dos destinos de cada ser vivente, porá em prática um ensinamento aprendido com o Altíssimo.

“Se na hora agá houver alguma dúvida, ou interferência entre nosso servidor e os computadores aos cuidados da turma do anjo Gabriel, use seu charme. Murmure, ao passar pelos rapazes, de ouvido em ouvido, a senha desta pessoa que resolvi trazer aqui para cima. Ele é um excelente infectologista, apesar de muito jovem. Todavia, talentoso, criativo, tem garra. Me ajudará com as almas que chegaram e não param de ser enviadas aqui para cima, a todo instante, vitimadas pela Covid-19. Não o perca de vista, nem erre o alvo. Este menino nos será muito útil por aqui”.

Assim, pois, viaja a morte em direção à Terra. Aqui chegada, procura seguir à risca conforme lhe ordenou o Criador. Enquanto percorre vagão por vagão, cada jovem com as características físicas do futuro defunto, a princesa murmura, em seu ouvido a senha, de forma que só ele escute a sua voz adocicada e maviosa. Voz que se manifestará, unicamente para o escolhido do Pai Celestial, não sabendo ela, contudo, qual será a sua reação. Poderá ser de espanto, com a preciosidade aceitando o desfecho trágico do imediato ou, no pior dos mundos, tentando fugir.

A peregrinação começa. No primeiro trem, vagão por vagão, nada. No segundo, idem. Ninguém lhe dá sinais positivos. Delicada e sem pressa, segue a Morte, incansável, laboriosa e atenta. Muda novamente de trem. Desde que chegou, mil e quatrocentos rapazes (soprados nos ouvidos) não lhe deram atenção. Minutos depois, em outra composição, a conta dos ‘buscados’ sobe para três mil e novecentos. Nada do ‘escolhido’ responder positivamente. Final do comboio, mais um metrô se vê vasculhado. Exausta, a Morte se prepara para dar um tempo. Se materializará num restaurante para almoçar.

Pensando, pois, em sair daquele trem e pular em outro, resolve antes de definitivamente, pôr em prática o seu desejo, dar uma derradeira espiada. Está faminta. É justamente nesta hora, que avista um jovem quase perto de uma das portas de acesso. Aquele deus grego, olhos serenos cor de ‘perigo à vista’, que hipnotizariam, sem tirar nem destirar, uma jovem por mais fria que fosse, se assemelhava com as características ditadas pelo Senhor dos Exércitos. A internet, ainda sem sinal. A Morte não perde tempo. Se aproxima, passo a passo, pedindo licença a um e outro e, finalmente, ladeada diante daquele ser maravilhoso, sem mais delongas, lhe assopra a senha. O moço bonito e morigerado se vira, num ímpeto para ver quem ternamente lhe falou alguma coisa no pé do escutador de novelas.

Se depara com uma jovem encantadora. Figura adorável, esbelta, jamais vista em toda a sua vida. Rosto de maçãs salientes, pele de porcelana, corpo bem torneado e flexível. Em sua mão direita se aninha um belo aparelho celular revestido numa capa cor de rosa. Embasbacado, ‘o selecionado’ lhe dirige a palavra.

Ele
– Oi

Ela
– Olá, gato.

Ele
– Nos conhecemos?

Ela
– Acredito que sim...

Ele
– De onde?

Ela
– Acho que de algum lugar muito longe e especial...

Ele
– Tenho certeza que não. Uma coisa bonita e radiante como você eu jamais esqueceria. Este sorriso, então, é seu cartão de visitas...

Ela
– O seu também é esplendoroso.

Ele
– Obrigado.

Ela
– Está indo para onde?

Ele
– Na verdade, para meu trabalho. Por sinal, super atrasado. Sou médico. Estou empenhado numa fórmula nova, uma futura vacina que poderá colocar um ponto final na pandemia da Covid-19. Se você tiver alguma ideia, eu saio às vinte horas. Deixo meu telefone, endereço, WhatsApp, e seja lá o que for que decida, depois deste horário, estarei à sua espera e levarei você para onde quiser... ou me passe, igualmente, seus contatos...

Ela
– Acabou de me conhecer. Nem sabe quem sou. Posso ser uma pessoa má, um ser vindo de outra galáxia que pretenda ‘roubar’ você e arrastar a sua existência terrena para algum lugar de onde não tenha como voltar...

O airoso se abre num sorriso mais espetaculoso e travesso.

– Com você eu iria para qualquer lugar. Faria isto de olhos fechados...

Ela
– Vejo que você, além de bonito, é um cara sem medo.

Ele
– Com você a meu lado, acredite, meus medos e receios seriam capazes de criarem asas e voarem para bem longe...

Ela
– Prove que não tem medo de mim...

Ele
– Simples. Diga para onde gostaria de estar me levando depois que eu saísse do trabalho e...

Ela
–... O que diria se eu resolvesse levar você para conhecer o infinito?

Ele
– Infinito? Eu adoraria!

Ela
– Eu não teria tanta certeza...

Ele
– Então me permita, com todo respeito, escolher um lugar mais aconchegante. Pode ser?

Ela
– E onde seria?

Ele
– A um restaurante que costumo frequentar. Tomaremos um vinho, ou se você preferir, uma cerveja... em seguida, jantaremos... depois deixaremos que o momento seguinte nos conduza... como dizem por ai, ’a noite é uma criança...’.

Ela
– OK. E depois?

Ele
– Convidaria você para conhecer a minha casa, o meu reduto de descanso, o quarto, onde fiz uma extensão do laboratório...

Ela
– Uau...!

Ele
– E... então... o que diria à minha proposta?

Ela, esfuziante e solta.
– Tenho certeza que, em seguida, você me seduziria, manteria relações comigo e depois... dia seguinte, me daria um belo chute no traseiro...

Ele
– Estava olhando o seu porte físico... você é simplesmente uma mocinha encantadora... mulher de gestos harmoniosos. Eu não teria coragem de lhe dar um chute... jamais... uma doçura do seu porte, merece ser amada, acarinhada, beijada... eu... eu acho que... não deixaria mais você sair da minha vida...

Ela
– Pena que você, meu lindo, esteja em rota de colisão com uma passagem com viagem só de ida...

Ele
– Não entendi...

Ela
– Você é o 2674238549582408128596848695086... e está prestes a subir...

Ele se abre numa risada discreta de modo a fazer qualquer representante do belo sexo perder o tino.

– Com você eu subiria até onde o Maravilhoso Conselheiro  pudesse me ouvir. Então eu diria à Ele, de peito aberto: ‘Pai, eu sou o homem mais feliz deste universo’. A propósito: estamos aqui dentro deste vagão atulhado de estranhos proseando e você não me disse como se chama. Sopra de novo, em meu ouvido, bem baixinho, para que somente eu possa me deleitar com o som estonteante e melodioso que sai de sua linda boquinha... qual seu nome?

Ela, judiciosamente.
– Eu sou a Morte. Se prepare, gatinho charmoso: a sua hora chegou.

Ele se deixa ser levado, por ela, de mãos dadas, enquanto os freios do metrô parando, se misturam com a voz dos altos falantes indicando a próxima estação.

Fonte:
Do livro “Comédias da vida na privada” – de Aparecido Raimundo de Souza, pela Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro.
Texto enviado pelo autor.

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