quarta-feira, 2 de junho de 2021

Cecy Barbosa Campos (O Telefonema)

Talita chegou em casa muito cansada, após um dia de trabalho exaustivo. Só desejava tirar seus elegantes sapatos de bico fino e salto alto que realçavam suas bem torneadas pernas, mas exigiam muito sacrifício. Depois, uma boa chuveirada. Em êxtase, já imaginava a água escorrendo, sensualmente, pelo seu corpo, da cabeça aos pés, num afago apaixonado.

Rapidamente despiu-se. Pronta para entrar debaixo da água recuperadora, ouviu o telefone tocar.

— Logo agora! — pensou. — Não vou atender.

A campainha insistente a inquietou. Não teria o sossego desejado se continuasse com aquele som irritante em seus ouvidos. Com o corpo úmido, deu meia volta e correu ao telefone, marcando o sinteco com seus pés molhados.

Foi a conta de pegar o aparelho e ouvir desligarem.

— Que droga, demorei demais para vir!

Decidiu-se a esperar um pouco para ver se ligavam novamente. Nada. Desistiu de ficar ali parada, nua, no meio da sala. Observou os pingos d'água que tinham marcado o assoalho e foi correndo buscar um pano para secá-los. Afinal, não fora fácil sintecar o apartamento, embora ele fosse pequeno. Sabia bem as horas de trabalho que o sinteco lhe custara.

Voltou ao banheiro, ansiando pelo chuveiro. Tepidamente, a água acariciou seu corpo e o perfume do sabonete inebriou-a.

Entregou-se àquele prazer de forma plena e absoluta, a ponto de assustar-se ao ouvir o telefone.

— Outra vez? Não é possível. Não vou atender.

Entretanto, lembrou-se de Maurício. Podia ser ele, arrependido da ausência nos últimos encontros, sentindo saudades, buscando a reaproximação.

Pulou para fora do chuveiro instantaneamente. Pegou o pano de chão que ficara no banheiro e correu para atender o aparelho. Que decepção! Nenhuma palavra.

— Provavelmente, ele achou que eu ainda não havia chegado. Demorei para atender, pensou.

Resolveu terminar o banho rapidamente. Não queria ser interrompida outra vez. Ou, por outro lado, agora queria que o telefone tocasse.

Envolta na toalha, deitou-se no tapete da sala. Desta vez, não perderia a ligação. Ali, estava o Graham Bell, bem ao alcance de sua mão.

Enquanto esperava, observava as bolinhas de água que rodopiavam pelo seu corpo bronzeado e devidamente nutrido pelos óleos aromáticos que faziam parte da composição do seu sabonete.

— Como o Maurício gosta desse cheiro e da suavidade da minha pele!

Permaneceu ali deitada, à espera, como se ele estivesse ao seu lado. pronto para abraçá-la.

O telefone não chamou outra vez. Nada mais lhe restava senão vestir uma roupa leve e confortável, preparar uma refeição frugal e refugiar-se na solidão dos lençóis para uma noite de merecido descanso.

Ultrapassados todos esses trâmites, seus oIhos já se fechavam gostosamente quando aquele som estridente que, frustrada, desistira de aguardar, desperta-a da sonolência em que mergulhara.

De um salto, levanta-se, mais rapidamente do que se poderia esperar naquelas circunstâncias. Em segundos, chega á sala e coloca o telefone no ouvido.

Ressentida, escuta uma voz grave e quente vinda do outro lado da linha.

— Marilda, até que enfim você atendeu. Já tentei várias vezes...

Ela quer explicar que é ligação errada e que aquele nome não é o seu. Ele não escuta o que ela fala, no afã de justificar-se pelos dias em que estivera afastado e declarar-se confiante na renovação do amor compartilhado.

Talita para de insistir e aceita as juras arrebatadoras como sendo, verdadeiramente, dirigidas a ela.

Refeita, por uma noite de sono recheada de sonhos eróticos, apronta-se pela manhã com cuidado especial. Sente que precisa estar bem, embora não saiba exatamente por quê.

Ao voltar para casa, após um dia de trabalho igual a muitos outros, encontra-se com disposição invejável. Poderia até fazer uma caminhada pelo calçadão absorvendo o crepúsculo ou mesmo ir pela beira da praia sentindo o mar a lamber-lhe os pés. Lembrou que essa havia sido a sua rotina de fim de tarde por alguns anos. Rotina que abandonou, apesar de sempre tê-la achado prazerosa.

Entretanto, ao entrar em seu apartamento, muda de ideia. Lembra-se da voz grave e quente do amante de Marilda. Desiste da caminhada e resolve esperar que ele "lhe" telefone. Nem entra no banho, temerosa de não chegar a tempo de atender ao chamado.

Impaciente, prepara uma bandeja com o lanche que saboreia ali mesmo, na sala, ao lado do telefone que permanece mudo. Aflita, Talita procura imaginar o que teria acontecido para que ele a deixasse na angustiante espera. Finalmente, mais tarde do que na noite anterior, quase madrugada, o aparelho toca.

— Marilda, desculpe a hora, mas não poderia ficar sem falar com você... Foi como ele começou a conversa que se estendeu por longo tempo.

Após ouvir inúmeras declarações de amor eterno, Talita passou a noite nos braços de Morfeu, feliz como se fosse a Marilda e estivesse dormindo nos braços do homem que tanto a amava.

Os telefonemas foram se sucedendo, todas as noites, por mais de um mês. O casal mostrava-se cada vez mais apaixonado em suas ardentes conversas.

Os amigos e colegas de trabalho de Talita não compreendiam o que se passava com ela. Aparentava uma alegria tranquila e seu olhar luminoso anunciava a existência de um grande amor. Entretanto, vivia reclusa e não participava das reuniões festivas na firma nem dos passeios e celebrações, organizados pelos companheiros mais próximos.

Quando tentavam descobrir a existência de um namorado novo ou "amante secreto", apenas sorria, enigmaticamente.

Maurício também não entendeu. Procurou-a, tentando reatar um relacionamento que, afinal, não havia acabado, mas nada conseguiu. Quando, tornando-se mais enfático, quis convencê-la de que "haviam nascido um para o outro", a rejeição de Talita foi definitiva:

— Por favor, entenda. Eu não suporto a sua voz.

Começaram a perceber que havia algo fundamentalmente errado, quando Talita deixou de responder ao ser chamada pelo seu próprio nome.

Depois, verificou-se que assinara cheques e documentos com nome falso. A firma teve vários problemas, e a moça foi, obviamente, demitida, tendo também que se explicar na justiça pelo mesmo motivo.

Quanto ao amante de Marilda, não se soube nada, exceto que os vizinhos de Talita se sentiam inquietos de tanto ouvir o telefone tocar logo após o seu desaparecimento.

Um rapaz, que morava no décimo andar, soube por duas senhoras que, como ele, esperavam o elevador, da partida de Talita a fim de passar uns tempos na casa dos pais, no interior.

— É, muitas pessoas vêm para a cidade grande e têm problemas de solidão, comentou com um sorriso significativo.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

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