quinta-feira, 10 de junho de 2021

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXII

A Chuva Desce a Ladeira

 
A  água da chuva desce a ladeira.
É uma água ansiosa.
Faz lagos e rios pequenos, e cheira
A terra a ditosa.

Há muitos que contam a dor e o pranto
De o amor os não qu'rer...
Mas eu, que também não os tenho, o que canto
É outra coisa qualquer.
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A Aranha
 
A aranha do meu destino
Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida balançada
Na consciência de existir.
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou  presa do meu suporte.
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A Criança Que Ri na Rua
 
A criança que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo -

Tudo  isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,
E tem qualquer coisa de amor,
Ainda que o amor seja mudo
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A Estrada, Como Uma Senhora
 
A estrada, como uma senhora,
Só dá passagem legalmente.
Escrevo ao sabor quente da hora
Baldadamente.

Não  saber bem o que se diz
É um pouco sol e um pouco alma.
Ah, quem me dera ser feliz
Teria isto, mais a calma.

Bom campo, estrada com cadastro,
Legislação entre erva nata.
Vou atar a lama com um nastro*
Só para ver quem ma desata.
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nastro = laço, tira.
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Ah, a Esta Alma Que Não Arde
 
Ah, a esta alma que não arde
Não envolve, porque ama,
A esperança, ainda que vã,
O esquecimento que vive
Entre o orvalho da tarde
E o orvalho da manhã.
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Ah, Como Incerta, na Noite  em  Frente
 
Ah, como incerta, na noite  em frente,
De uma longínqua tasca vizinha
Uma ária antiga, subitamente,
Me faz saudade do que as não tinha.

A ária é antiga? É-o a guitarra.
Da  ária mesma não sei, não sei.
Sinto a dor-sangue, não vejo a garra.
Não choro, e sinto que já chorei.

Qual o passado que me trouxeram?
Nem meu nem de outro, é só passado:
Todas as coisas que já morreram
A mim e a todos, no mundo andado.

É o tempo, o tempo que leva a vida
Que chora e choro na noite triste.
É a mágoa, a queixa mal definida
De quanto existe, só porque existe.

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