TENHO UM AMIGO COMUM, o José Cardoso, excelente compositor, que impreterivelmente não deixa de beber a sua cachaça. Chova ou faça sol, haja algo ou não para comemorar, lá está ele, fiel à sua companheira. Outro dia, ao socorrer um cidadão que fora atropelado no trânsito, fui parar, quase às duas horas da madrugada, num pronto socorro desta cidade. Para surpresa minha, quem não encontro na recepção, com a cara toda arrebentada preenchendo uma ficha para ser atendido?
Ele mesmo, o José Cardoso. Entre espantado e boquiaberto (ou mais boquiaberto e desesperado, pelo fato de ter me visto), lhe perguntei, de chofre, o que havia acontecido. Meio estonteado e titubeante, mais para lá do que para cá, o coitado explicou com a voz meio rouca.
— Foi a pia. Se estou aqui, agora, neste estado lastimável que você está presenciando, agradeço à ela. Unicamente à ela...
— A pia? Mas que pia?
— Pelo amor de Deus, Barbosinha. Você não sabe o que é uma pia?
— Claro que sei o que é uma pia. Mas que relação pode haver entre uma pia e este seu estado deplorável?
— Vou tentar explicar. Como sempre faço, depois do serviço, passei na birosca do Aleijadinho. Tomei umas geladinhas com alguns amigos de copo para calibrar o organismo debilitado. Depois de algumas boas rodadas, acabei de chegar no ‘lar, doce lar’. Entrei direto para o banho, jantei, vi um pouco de novela na televisão e, então, segui para um quartinho que tenho nos fundos.
— Não entendi. Quartinho nos fundos?
— Precisamente. Não sei se você sabe, faz tempo que não nos vemos, mas eu construí um espaço nos fundos lá de casa. Na verdade, fiz uma puxadinha para a Narcisa, minha filha que vai casar até o final deste ano. Lembra da Narcisa? Você foi convidado por ela para ser padrinho...
— Cardoso, esquece o resto. Quero saber, neste momento, da história da pia. Não enrola e conta logo...
— Calma, homem, eu chego lá. Como estava dizendo, me dirigi para o quartinho. Sempre que resolvo ‘embriagar’ a alma, para compor alguma coisa nova, me tranco nesse aposento e ‘meto bronca’.
José Cardoso aparentando um certo cansaço, tomou fôlego e prosseguiu.
— Bebi até o copo fazer bico e a garrafa pedir arrego. Minha mulher, a Rita, que você conhece melhor que eu, não aprova a ideia. Aliás, ela nunca aprovou. Odeia quando bebo alguma coisa. Acredito até pretendia ‘tirar uma’ e eu não estava muito disposto a chacoalhar os ossos. Conclusão: a filha da mãe da minha querida esposa me pegou de porrada e a coisa acabou neste quadro que o companheiro está vendo com os próprios olhos.
— Mas espera lá! Você não falou que não foi a Ritinha?
— De fato. Não foi!
— Então, José Cardoso?
— As ‘cacetadas’ que a Ritinha me deu, você sabe, não fizeram nem cosquinha. De mais a mais, tapinhas de amor, não doem. Me ajudam até pensar numa poesia e numa música mais romântica. A culpa, realmente, foi da pia.
— Está bem, quero um relatório detalhado. Sou todo ouvidos...
— Vou procurar ser o mais claro possível. Na verdade, tenho sempre em casa, doze garrafas de aguardente da ‘boa’. Gosto deste número, o doze. Me dá sorte. Inclusive foi a minha primeira música gravada pelo saudoso Orlando Dias...
Voltou a renovar o fôlego e seguiu com seu relato.
— Acontece que a Ritinha bateu na porta do quartinho e me chamou para ir deitar. Iniciamos uma pequena discussão. Entre tapas e beijos, ela resolveu medir as forças e avançou, resoluta para cima de mim, de cabo de vassoura e me obrigou a jogar as garrafas fora. Imagine...
— Você não obedeceu, não é mesmo?
— Nem poderia, Barbosinha. Como já estava grogue, ou para lá de Bagdá, entrei em ação. Peguei a primeira garrafa, bebi mais um copo e joguei o resto na pia...
— Na pia?
— Sim, na pia. Em seguida, peguei a segunda garrafa, bebi outro copo e joguei, também, o que havia sobrado dela, na pia. Parti para a terceira garrafa e aí fiz o seguinte: mandei para dentro o resto da água que os passarinhos não bebem e joguei o copo na pia. Com toda força. Voou caco de vidro para tudo quanto é lado. Com a quarta garrafa, não foi diferente. Bebi na pia e joguei o resto no copo...
— Como é que é...?
— Você já vai entender: calma ai. Na quinta garrafa, eu me armei de uma tigelinha cheia de tira-gosto, joguei a tampa da tigelinha nos cornos da Ritinha, abri a quinta garrafa nos dentes e ingeri, de um só gole, toda a bagaceira. Depois passei a mão na sexta garrafa, corri para a pia, bebi seu conteúdo sem ao menos contar até cem. Na sequência, para não perder o pique, joguei o copo no resto. Na sétima, meu camarada, a bagunça se fez hilária. Peguei no resto, enfiei o dedo nos olhos da nossa empregada que veio correndo quando se apercebeu do bafafá comendo solto e, antes dela me xingar todinho, bebi a pia...
— Bebeu... bebeu a pia?
— Na seguinte, nem lhe conto. Que loucura! Passei a mão no copo, arranquei a pia do lugar e a arremessei, com tudo, contra a nona garrafa. O troço caiu no chão e explodiu como uma bomba dessas caseiras. Pense numa bomba caseira fazendo um estardalhaço dos infernos. Por derradeiro, joguei a décima garrafa no copo, por azar tropecei na décima primeira e, cego de raiva, fora de mim, me atirei, sem mais demora ou delongas, literalmente (enquanto segurava a décima segunda garrafa debaixo do sovaco), de cabeça, na pia.
Ele mesmo, o José Cardoso. Entre espantado e boquiaberto (ou mais boquiaberto e desesperado, pelo fato de ter me visto), lhe perguntei, de chofre, o que havia acontecido. Meio estonteado e titubeante, mais para lá do que para cá, o coitado explicou com a voz meio rouca.
— Foi a pia. Se estou aqui, agora, neste estado lastimável que você está presenciando, agradeço à ela. Unicamente à ela...
— A pia? Mas que pia?
— Pelo amor de Deus, Barbosinha. Você não sabe o que é uma pia?
— Claro que sei o que é uma pia. Mas que relação pode haver entre uma pia e este seu estado deplorável?
— Vou tentar explicar. Como sempre faço, depois do serviço, passei na birosca do Aleijadinho. Tomei umas geladinhas com alguns amigos de copo para calibrar o organismo debilitado. Depois de algumas boas rodadas, acabei de chegar no ‘lar, doce lar’. Entrei direto para o banho, jantei, vi um pouco de novela na televisão e, então, segui para um quartinho que tenho nos fundos.
— Não entendi. Quartinho nos fundos?
— Precisamente. Não sei se você sabe, faz tempo que não nos vemos, mas eu construí um espaço nos fundos lá de casa. Na verdade, fiz uma puxadinha para a Narcisa, minha filha que vai casar até o final deste ano. Lembra da Narcisa? Você foi convidado por ela para ser padrinho...
— Cardoso, esquece o resto. Quero saber, neste momento, da história da pia. Não enrola e conta logo...
— Calma, homem, eu chego lá. Como estava dizendo, me dirigi para o quartinho. Sempre que resolvo ‘embriagar’ a alma, para compor alguma coisa nova, me tranco nesse aposento e ‘meto bronca’.
José Cardoso aparentando um certo cansaço, tomou fôlego e prosseguiu.
— Bebi até o copo fazer bico e a garrafa pedir arrego. Minha mulher, a Rita, que você conhece melhor que eu, não aprova a ideia. Aliás, ela nunca aprovou. Odeia quando bebo alguma coisa. Acredito até pretendia ‘tirar uma’ e eu não estava muito disposto a chacoalhar os ossos. Conclusão: a filha da mãe da minha querida esposa me pegou de porrada e a coisa acabou neste quadro que o companheiro está vendo com os próprios olhos.
— Mas espera lá! Você não falou que não foi a Ritinha?
— De fato. Não foi!
— Então, José Cardoso?
— As ‘cacetadas’ que a Ritinha me deu, você sabe, não fizeram nem cosquinha. De mais a mais, tapinhas de amor, não doem. Me ajudam até pensar numa poesia e numa música mais romântica. A culpa, realmente, foi da pia.
— Está bem, quero um relatório detalhado. Sou todo ouvidos...
— Vou procurar ser o mais claro possível. Na verdade, tenho sempre em casa, doze garrafas de aguardente da ‘boa’. Gosto deste número, o doze. Me dá sorte. Inclusive foi a minha primeira música gravada pelo saudoso Orlando Dias...
Voltou a renovar o fôlego e seguiu com seu relato.
— Acontece que a Ritinha bateu na porta do quartinho e me chamou para ir deitar. Iniciamos uma pequena discussão. Entre tapas e beijos, ela resolveu medir as forças e avançou, resoluta para cima de mim, de cabo de vassoura e me obrigou a jogar as garrafas fora. Imagine...
— Você não obedeceu, não é mesmo?
— Nem poderia, Barbosinha. Como já estava grogue, ou para lá de Bagdá, entrei em ação. Peguei a primeira garrafa, bebi mais um copo e joguei o resto na pia...
— Na pia?
— Sim, na pia. Em seguida, peguei a segunda garrafa, bebi outro copo e joguei, também, o que havia sobrado dela, na pia. Parti para a terceira garrafa e aí fiz o seguinte: mandei para dentro o resto da água que os passarinhos não bebem e joguei o copo na pia. Com toda força. Voou caco de vidro para tudo quanto é lado. Com a quarta garrafa, não foi diferente. Bebi na pia e joguei o resto no copo...
— Como é que é...?
— Você já vai entender: calma ai. Na quinta garrafa, eu me armei de uma tigelinha cheia de tira-gosto, joguei a tampa da tigelinha nos cornos da Ritinha, abri a quinta garrafa nos dentes e ingeri, de um só gole, toda a bagaceira. Depois passei a mão na sexta garrafa, corri para a pia, bebi seu conteúdo sem ao menos contar até cem. Na sequência, para não perder o pique, joguei o copo no resto. Na sétima, meu camarada, a bagunça se fez hilária. Peguei no resto, enfiei o dedo nos olhos da nossa empregada que veio correndo quando se apercebeu do bafafá comendo solto e, antes dela me xingar todinho, bebi a pia...
— Bebeu... bebeu a pia?
— Na seguinte, nem lhe conto. Que loucura! Passei a mão no copo, arranquei a pia do lugar e a arremessei, com tudo, contra a nona garrafa. O troço caiu no chão e explodiu como uma bomba dessas caseiras. Pense numa bomba caseira fazendo um estardalhaço dos infernos. Por derradeiro, joguei a décima garrafa no copo, por azar tropecei na décima primeira e, cego de raiva, fora de mim, me atirei, sem mais demora ou delongas, literalmente (enquanto segurava a décima segunda garrafa debaixo do sovaco), de cabeça, na pia.
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Texto enviado pelo autor.
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