domingo, 6 de junho de 2021

Sammis Reachers (A maratona da panificação: Quem vencerá?)

O tema deste capítulo não é um assunto politicamente correto, mas este livro e o próprio humor também não o são. Vamos falar de uma realidade algo delicada, algo controversa: os idosos que, valendo-se do fato de não pagarem passagem, e do tempo de sobra que têm para fazer (ou não fazer) o que quiserem, pegam ônibus à esmo, seja subindo num ponto para descer no seguinte, seja percorrendo grandes distâncias, por motivos fúteis ou mesmo à toa, para "fazer hora".

Em mais um dia comum na garagem da Ingá, pela manhã, a galera está reunida para aquela tradicional resenha, o bate-papo que dá o ânimo do dia. Alguém começa a falar do assunto, dizendo de um ancião que sai do bairro Fonseca para, todos os dias, comprar quatro míseros pães franceses no mercado Extra, no centro de Niterói. Sendo que, no mesmo Fonseca, ele tem à disposição umas 15 opções de compra, sem ter que apanhar ônibus algum. Todos os presentes dizem então conhecer casos semelhantes. Mas nisso o motorista Fabiano "Gueiry", antiga "cria" da empresa, toma a palavra e, dizendo que o que eles viam no dia-a-dia não era nada, passa a relatar o seguinte:

- Na linha do Apolo (bairro de São Gonçalo, coberto pela empresa Fagundes), eu costumava pegar às vezes o carro de certo motorista, no horário das 5h00. O motorista seguia normalmente apanhando os passageiros do horário nos respectivos pontos. A maioria, galera que trabalhava nos estaleiros de Niterói. Certa vez, ao apanhar uma leva e dar a arrancada no carro, alguns dos passageiros puseram-se a gritar:

- Ei! Ei, motorista! Está vindo um senhor lá atrás, espera ele aí!

Conhecendo a 'peça' e um pouco contrariado, o motorista ainda fez menção de acelerar mais o veículo, cujo horário era extremamente apertado, mas alguns dos passageiros sentados na parte de trás chegaram a xingá-lo.    

O motorista    então    puxou    o freio de mão e pacientemente esperou. Lentamente    o senhor se aproximou e subiu com dificuldade no ônibus.

- Obrigado meu filho, se eu perder esse ônibus eu não pego a fornada de pão das seis horas...

O motorista, a essa altura já com a cara fervendo e querendo ensinar uma lição aos passageiros, mesmo sabendo que estava completamente errado, resolveu ir devagar. Os pontos já ficavam normalmente cheios, e com a lentidão repentina eles enchiam ainda mais, e assim também o ônibus,    que nunca vira tantos passageiros na vida, enquanto o piloto tranquilamente se arrastava, rebocando como um pé-de-pano.

Aquela lentidão já prefigurava o atraso daqueles trabalhadores, que tinham hora certa para pegar no serviço. A insatisfação e o burburinho dentro do veículo só faziam crescer, até que a galera não se conteve e começou a reclamar:

- Como é que é, ô piloto! Vamo com essa carroça! Nós temos hora pra chegar em Niterói!

Era o momento pelo qual o motorista, alma tinhosa, esperara e trabalhara,

- Ué rapaziada, vocês têm hora? Não me xingaram, lá atrás, para esperar o coroa? Pensei que vocês não tivessem pressa.

- Mas ele é velho já, se perdesse esse ônibus o outro ia demorar!

- E vocês sabem o que ele vai fazer? Ele sai todos os dias lá do Apolo, só para ir em Niterói comprar meia dúzia de pães!!! Atravessa centenas de padarias, pega engarrafamento, toma chuva, só pra ir em Niterói comprar pão porque "o de lá é mais gostoso"! E ele não tem nada melhor pra fazer mesmo... Então esse é o preço do atraso de vocês: um saco com seis pães franceses. Agora podem xingar, pra ver se anima o motor.

A galera ficou contrariada e, confusa entre ficar com raiva do motorista vingativo ou do idoso de paladar exigente, ficou em silêncio o resto da viagem.

Desnecessário é dizer que eles nunca mais pediram àquele piloto para esperar ninguém!

Após tal relato, Fabiano acreditou que se sagrara o vencedor da disputa sobre a maratona da panificação, praticada diariamente por milhares de velhinhos. Mas então Marqulnho, motorista baixinho e grande zoador, morador do bairro gonçalense do Jockey, terminou de tomar seu café e tomou a palavra.

- Malandros, como alguns aqui sabem, antes de trabalhar como motorista na Ingá eu era da empresa Rosana, em São Gonçalo. Pegava às 17h00 e largava às OlhOO da madruga. Acontece que a garagem da Rosana era problemática, e quando chovia, corria o risco de alagamento. Assim, em noites de muita chuva o dono da empresa ligava pra lá e pedia pra galera fazer uma força e rodar até às 05h00 da manhã, e se ainda assim a chuva continuasse e a garagem ficasse alagada, era pra largarmos os ônibus nas ruas próximas a ela. Nessas vezes, sempre às 04h00 da manhã, quando eu ia com minha última viagem, já exausto, sempre pegava um velhinho, que dizia estar esperando o outro carro da linha, que era efetivo de todo dia, mas passava às 04h20. Com o tempo fui pegando uma certa amizade com o velho, pois sempre que tinha que rodar até às cinco lá estava ele, sem falta. Até que chegou certo dia, e eu perguntei:

– Trabalha aonde?

- Ô meu filho, eu não trabalho não... Sabe o que é, é que há muito tempo eu morei no município de Rio Bonito, e gostei muito do pão de lá. Aí todo dia eu vou lá comprar pão.

Ou seja: o indivíduo saía às 05h00 da matina do município de São Gonçalo, pegava dois ou três ônibus só de ida, e além de São Gonçalo atravessava os municípios de Itaboraí e Tanguá para chegar em Rio Bonito, quase duas horas depois... apenas para comprar pão.

E com essa bordoada o presepeiro do Marquinho aniquilou todos os presentes e sagrou-se campeão da disputa.

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

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