segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte e Oito) Língua presa

O autor é de Vila Velha/ES

 
O ESCRITÓRIO DO ADVOGADO ficava literalmene em frente ao prédio da delegacia de polícia.  Por esta razão, assim que o rapaz que acabara de entrar em sua sala trazido pela sua secretária, o causídico indicou gentilmente uma cadeira. Antes de se acomodar, o moço tirou da cabeça um boné ensebado e o colocou sobre a mesa cheia de papéis e processos:

—  Bom dia, meu jovem. Aceita  água gelada?

— Boum diua paura o seunhour taumbuém. Nãu, oubriugaudo. Seurei breuve.

—  Um cafezinho, ao menos?

—  Teunhu qui paugar?

—  Claro que não, meu amigo. É tudo por conta do nosso escritório.

—  Entãu eu auceitu um...

—  Quer comer alguma coisa? Temos bolo de laranja...

—  Se eu tiuver que paugar, preufiuro só o caufé...

O criminalista chamou a atendente pelo interfone e solicitou que trouxesse a bebida para dois:

—  Vamos ao seu caso, senhor... Como é mesmo seu nome?

—  Audeusgeusto Fumouso.

—  Pois não. Conte o que aconteceu?

— Meu aumiugo se meuteu nuuma encreunca e a pouliucia trouxe eule auqui paura a deuleugaucia.

—  Sabe dizer exatamente qual o motivo?

— Seugundo o pouliuciaul de plauntão, roubo de uma mouto. Mas já foui tudo deuviudamente esclaureucido.

—  Entendi. Mas ele, seu amigo, ainda continua detido?

—  Nãu. Doutour. Aucaubou de ser liubeurado. Eustá auté auli foura me espeuraundo.

A recepcionista entrou com a bandeja  e  serviu os dois homens em silêncio:

—  Senhor, açúcar ou adoçante?

—  Auçuucar, pour fauvour.

—  Não entendi, cavalheiro!

—  Aucho meulhour toumar puro meusmo...

Terminada esta  tarefa, a jovem acenou para os dois e retornou à recepção:

—  Bem, seu Adegesto...

—  Audeusgeusto...

—  Como se escreve, ou melhor, como se pronuncia? Adegesto ou Adeusgesto?

—  Audeusgeusto.

—  Ok. Seu Audeusgeusto, pelo que entendi, seu amigo não está mais detido ai na delegacia, correto?

—  Grauças à Deus, nãu.

— Confesso ao senhor que não entendi uma coisa. Como se chama, afinal, este seu amigo: Souto ou Solto?

—  Ourlaundo!

—  Mas o senhor disse à minha funcionária, ainda a pouco,  que seu amigo Souto foi... Solt... E...  

— ...Nãu, nãu diusse. Fui beum clauro com eula. Faulei  o seuguiunte: que o meu aumiugo Ourlaundo... De onde o senhour tiurou euste taul de Souto?

— Calma, vamos recapitular: o que o senhor falou, afinal, para minha subordinada quando ela o interpelou na recepção ai da delegacia?

—  Queu meu aumiugo Orlaundo esteuve, mas augoura nãu está mais...

—  Mais o quê?

—  La deuntro da deuleugaucia, com o doutour deuleugaudo.

—  Então ele foi realmente solto?

— Foui. Diaunte diusso eu vium auté auqui augraudecer, pois nãu vou mauis preuciusar de seus serviuços. Taumbém sauber se deuvo aulguma couisa coum reulaução a hounouraurios. Aufiunaul de countas a sua ausseussoura foi muito euducauda...

— Tudo bem, o  senhor não me deve nada. Apenas gostaria de um pequeno esclarecimento. Estou, ainda pra lá de confuso. Desculpe a insistência, seu Adeusgesto: seu amigo é o Souto?

— Nãu, doutour. Pour tudo quaunto é mais saugraudo. Meu noume é Audeusgeusto...  

— Realmente acho que não estamos conseguindo nos entender.  O Souto, ou melhor, o Orlando  veio preso e agora está solto?

—  Euste taul de Soulto nunca eusteuve preuso. Se nãu eusteuve preuso, jaumais poudeuria ter siudo soulto. O Ourlaundo sim... De preuso, passou a soulto... E soulto, pourtaunto, eule eustá augoura.

Risos:

— Por acaso isto é algum tipo de brincadeira?

— Nãu senhour. Clauro que nãu.

— Então?

— O Ourlaundo, coumo eu diusse, está soulto. Enteunde o que diugo? Eule augoura está souto. Fuoi aupenas um maul enteundiudo. Coumo poude ver, tudo se  feuz deuviudaumente esclaureuciudo. Miunha preusença auqui no seu euscriutóurio  se deuve  aupeunas paura vuer se eu lhe deuvo aulgum vaulour e, soubreutudo augraudeucer a sua iunterveunção e, clauro, a da sua aumaubilíssiuma beuldaude que fiuca  na meusinha da sua aunteusaula.

Para descomplicar a vida, ou melhor, a conversação e o entendimento entre seu cliente, o jurista ‘porta de cadeia’ procurou falar no mesmo linguajar dele:

— Iusto nous leuva a councluir que eule, o Ourlaundo  eustauva preuso e augoura grauças a Deus, foui soulto?

Audeusgeusto Fumoso, se sentindo imitado, e pior, zombado, perdeu as estribeiras. Fechou o semblante. Gritou, colérico:   

— O seinhour pour aucauso reusoulveu gouzar da miunha caura?

— De forma alguma, seu Adegesto. Por tudo quanto é sagrado. Longe de mim esta ideia absurda.

— Audeusgeusto. Meu nome é Audeusgeusto...

Em seguida se levantou da cadeira mais irritado e furioso. Passou a mão no boné ensebado, virou as costas e saiu definitivamente da sala.

Fonte:
Do livro “Comédias da vida na privada” – de Aparecido Raimundo de Souza, pela Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro.
Texto enviado pelo autor.

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