Acordei cedo e me deu um branco total. Não é a primeira vez em que isto me acontece. Pelo contrário, quanto mais velho vou ficando, mais acontece. Onde estou, de que me trato, que horas são, que cama é esta, que cortinas são estas, que quarto é este, aonde eu fui ontem à noite, bebi alguma coisa estranha? Calma, respirar fundo, deve haver uma explicação, sempre há, não entrar em pânico. E, vagarosamente, as respostas me vão chegando. Não estou em casa, estou num quarto de hotel. Começo a fazer uma ideia vaga de meu paradeiro e a confirmo olhando pela janela. No edifício em frente, um cartaz anuncia em francês escritórios para alugar. Claro, estou em Paris e, pouco a pouco, os acontecimentos se encaixam.
O Salão do Livro deste ano está sendo realizado agora e vim como convidado, apresso-me em esclarecer que não à custa de vocês, como é tão frequente entre nós. O Salão é dedicado à literatura argentina, mas, minoritariamente, representantes de outros países também participam, o que é meu caso. Não sei se um Felipão das letras me selecionaria, mas, de qualquer forma, eis-me representando nossas cores novamente e novamente alimentando a esperança de não envergonhar vocês ou a pátria. Como diria um jogador de futebol, respeito os adversários e o alçapão da Sorbonne, mas darei tudo de mim para não decepcionar nossa grande torcida e trazer para casa o caneco.
Bem, não há concentração, treinamento, preleção, coletivas para a imprensa. Cabe apenas esperar a hora e mandar notícias ou comentários. Mas quais? Volta a assaltar-me a nostalgia dos velhos tempos, quando havia realmente novidades no exterior, desconhecidas pela maior parte dos brasileiros, e se podia mentir com desenvoltura, na secular e venerável tradição dos viajantes mais notáveis, desde Heródoto e Marco Polo, sem deixar de incluir o insuperável parente nosso Fernão Mendes Pinto. Sempre me queixo desta situação. Eu certamente não estaria à altura de meus grandes antecessores, mas sem dúvida seria capaz de engendrar algumas patranhas dignas de interesse, que pelo menos dessem para o gasto. Em Itaparica, a gente sempre aprendeu com os mais antigos a contar lorotas da melhor qualidade, Mas, hoje em dia, logo alguém na internet desmascararia a mentira e eu não teria como sustentá-la.
Num departamento semelhante, o dos segredos e pequenas histórias reveladores de estreita intimidade com Paris, o panorama tampouco é encorajador. Não acerto a discorrer sobre o tempo em que eu frequentava os mesmos cafés que os existencialistas e minhas discussões com Sartre às vezes levavam tardes inteiras, enquanto tomávamos o mesmo café a tarde inteira e experimentávamos drogas exóticas. Minhas reminiscências da Rive Gauche, alusões à minha grande familiaridade com a obra de Verlaine ou Baudelaire, o dia em que me enturmei com Juliette Greco, ou a ocasião em que Salvador Dalí me deu de presente um guardanapo usado e autografado que eu, depois de um porre de absinto na companhia de umas coristas do Crazy Horse, perdi não sei como. Tenho colegas capazes de fazer esse tipo de coisa com perfeição, mas eu mesmo não tenho jeito.
O hotel onde estou, bastante antigo, já hospedou brasileiros ilustres, como o mestre Villa-Lobos (que, por sinal, segundo me revelam, gostava de contar as suas historinhas também, envolvendo às vezes as diversas oportunidades em que, na companhia de outros canibais brasileiros, comeu carne de gente) e, principalmente, d. Pedro II. No começo, me animei um bocadinho e pensei em como talvez fosse possível avistar o fantasma de Sua Majestade Imperial, aqui no fim do corredor, e até fazer uma pequena entrevista com ele, mas também não consegui, em parte por causa do vexame que tem sido a república que o depôs. “E o Deodoro, hein?”, perguntaria ele, e eu não acertaria a responder.
E, lembrando os velhos tempos de viagem, como sou antigo, meu Deus, um dia destes acordo múmia. As senhoras mais elegantes compareciam ao Galeão às vezes de chapéu de viagem e invariavelmente elegantíssimas, desfilando para cima e para baixo de passaporte discretamente em punho. Na classe econômica, havia menu, talheres de metal e drinques de todo tipo, antes, durante e depois das refeições. E o passageiro não passava todo o percurso com os joelhos de um sueco enfiados nas costas da poltrona, pois cabia decentemente todo mundo e até dava para dormir deitado, quando sobravam alguns assentos vazios. No embarque, o viajante recebia de presente uma caixinha com quatro cigarros especialmente embalados para a companhia aérea, assim como capas especiais para canetas-tinteiro, que do contrário vazariam por causa da pressão do ar e manchariam a roupa.
No começo da viagem, as comissárias de bordo (aeromoças), todas lindas, indagavam se o passageiro já tinha feito aquele percurso antes. Se não tinha, era preparado o diploma de passagem pelo equador, conferido pelo deus Netuno e entregue ao felizardo sob aplausos dos circunstantes. E, depois de uma ou mais escalas em aeroportos exóticos que nunca mais seriam vistos, chegava-se finalmente à terra remota do destino, realmente longe e estrangeira. Era a hora de se acomodar no hotel e providenciar o indispensável telegrama de “cheguei bem”, que a família exigia. Telefonar, nem pensar, porque é mais fácil telefonar hoje para Marte do que então para o Brasil. É, não há mais emoções para o velho viajante. Mas, num último esforço de reportagem, talvez eu possa tentar falar com a dupla Montesquieu e Monet, recentemente lembrada pela presidente. Deve ser a zaga do Paris Saint Germain e vai ver que eles me dão umas declarações sobre a Copa, para eu enrolar mais os leitores.
Fonte:
RIBEIRO, João Ubaldo. Um brasileiro em Berlim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
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