quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 9 e 10

MILAGRE


— Não se faça de besta — disse o sacristão da igreja do Divino Salvador à insólita figura que se postara à sua frente, na noite de quinta-feira, quando ele varria a capela-mor. — Para mim você não é mula sem cabeça, pois tem cabeça e é simplesmente mula fugida do pasto do coronel. Saia imediatamente daqui.

— Coloquei cabeça para falar com ele, pois mula sem cabeça não tem língua. Seja compreensivo e peça ao senhor vigário para me desencantar, ouvindo-me em confissão.

— O senhor vigário não pode ouvir em confissão nem mula sem cabeça nem simples mula. Vá dando o fora.

O sacristão ia pegar da vassoura para brandi-la contra a visita inconveniente, quando uma luz se acendeu no candelabro principal do altar-mor, e a essa luz o corpo do animal se foi convertendo gradativamente no de uma bela mulher arrependida.

O sacristão perdeu a fala. Que é mesmo que ele podia falar, depois disto?
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NASCEU UMA NINFA

Ao nascer a menina, os pais debateram longamente o nome que iriam dar-lhe. Como não chegassem a entendimento, decidiram abrir ao acaso o dicionário, e a palavra mais bonita que fosse encontrada na página seria a eleita.

Por isso ela se chamou Oréade. Os pais explicaram às pessoas curiosas que se tratava de ninfa, habitante dos bosques, talvez de Viena, e das montanhas, possivelmente do Sul de Minas. E todos acharam lindo este nome.

Oréade cresceu igualmente linda, mas sua beleza tinha alguma coisa de vegetal, que começava nos olhos verdes, de um verde-musgo, e continuava na doce penugem dos braços, característica de certas folhas amáveis ao tato. Oréade tinha jeito de árvore e de água; seu sorriso era úmido, lembrava a transparência das fontes.

A moça não tinha mor encanto por festas, embora a alegria se estampasse em suas feições. Preferia caminhar a esmo pelas estradas em torno da cidade, subir aos morros, e lá em cima se quedava escutando a música dos passarinhos e outras vozes naturais.

Uma tarde ela não voltou do passeio. Por mais que a procurassem noite afora, e nos dias seguintes, não foi encontrada. Apareceu meses depois de manhãzinha, para uma visita que disse ser breve, e apresentou um fauno a seus pais:

— Meu marido.

Eles compreenderam imediatamente que o nome da filha não fora escolhido por força do dicionário, mas de um destino impreterível.

Abençoaram a união, e o casal voltou para a serra do Encantamento.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

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