sábado, 7 de novembro de 2020

Rachel de Queiroz (História Alegre)


Era um arigó de cara larga, largo de ombros, largo de passos, riso mais largo ainda. Vestia uma roupa surrada, as calças remendadas no joelho, tamanco no pé. Mas a sua alegria não era apenas a famosa alegria do homem sem camisa: era mais complexa, de causa mais filosófica. Ele não gozava a simples satisfação animal de viver, sentia-se um predestinado, um querido dos deuses.

“Homem, não vê, dona, ― eu sempre fui pessoa de sorte. Desde o começo. Minha mãe teve onze filhos: veio o garrotilho e matou três num dia só, depois mais três foram morrendo de um em um, de doença de criança, e quando apareceu o paratifo no 32, matou o resto. Quero dizer, matou o resto menos eu. Fiquei sozinho com os velhos. Continuei vivendo nem sei como, que por esse tempo era esmirrado, amarelo, comedor de terra. Lá pelos quinze anos foi que comecei a botar corpo de homem; também comia tanto que até fazia vergonha. E mode não ver a velha ralhar, acabado o almoço eu ia na bodega escondido e comprava de bolacha o tostão que tinha no bolso, pra poder confortar o estômago. Comendo em casa alheia, saía sempre com fome.

“Sim, por esse tempo o velho meu pai já tinha morrido de uma dor que lhe deu, bem aqui no vazio ― lá nele. Minha mãe foi lavar roupa na casa duma gente rica, e eu tive que ir trabalhar à distância de dez léguas, num açude do governo. Porque me esqueci de dizer que era seca brava, nesse ano em que meu pai morreu. Ai a velha também deu para ficar doente, ― era uma dor, era um cansaço, uma falta de fôlego ― com pouco foi-se embora também, dizia ela que pra junto do finado e dos dez anjos que tinha no céu. Isso ela falava quando já estava variando, a bem dizer de vela na mão.

“Eu fui, acabou-se o serviço do açude, houve um inverninho escasso, me encostei nuns tios, trabalhando com eles. Mas sempre com esta minha sorte esquisita, quando dei fé morreu o tio, a família se espalhou, a viúva minha tia, foi morar com um genro. Dessa vez fiquei mesmo só no mundo. Me meti com uns tangerinos, levando gado do Quixeramobim para a cidade. Trabalho ingrato, porque com esses anos ruins o gado não engorda nem bota força, cai à toa, é raro se chegar com o lote de reses inteiro. Sempre morre um bocado em caminho.

“Com a idade de vinte e dois anos fiquei noivo de uma moça. E lá vem a sorte de sempre. Quero dizer...”

(Ele aí fez uma pausa e sorriu meio envergonhado, como se fosse contar que trapaceara com a sorte.)

“... eu ia dizer que ela também morreu e não mentia; mas a verdade é que morreu porque eu furei ela de faca. Descobri que andava de namoro com o cunhado, marido da própria irmã dela. E nem namoro não era só, coisa pior ainda, que o desgraçado tinha era feito mal à criatura. Deus que lhe perdoe, a todos os dois. Se bem que ele não morreu, a facada pegou muito embaixo, furou só a tripa e o doutor da Santa Casa costurou outra vez.

“No júri só peguei seis anos e assim mesmo me soltaram com quatro, porque teve uma revolta na cadeia e eu ajudei os guardas a pegarem os presos; tive uma pendenga com o chefe fujão, nos pegamos mesmo na hora e atrapalhou-se tudo.

“Quando saí da cadeia, isso foi em 47 ― fui trabalhar na estrada de ferro e tornei a ficar noivo e me casei. Mas não digo à senhora que minha sina é de sempre acabar só? Minha mulher morreu nos nove meses de casada, e com ela morreu a criancinha, na hora de nascer. Dessa vez fiquei desgostoso. Não é por ser minha mulher, mas era uma moça boa, trabalhadeira, me fez muita falta, que eu lhe tinha amizade e ela a mim.

“Continuei uns tempos na estrada e por duas vezes escapei de morrer de desastre; primeiro foi um trole que virou com todos os meus companheiros, justamente no dia em que eu tinha faltado ao serviço. Depois foi um trem doido que apareceu fora do horário, pegou a turma toda num corte da linha, escapamos por milagre, com as costas enterradas na barreira e os carros passando, tirando fogo no peito da gente.

“Chegou 50, 51, cada vez pior, trabalho acabou-se, a necessidade atacou todo o mundo, acabei resolvendo me chegar para cá, arrumei o dinheiro da passagem e embarquei num pau-de-arara desses. A senhora não viu falar num caminhão que virou na serra, com quarenta e seis pessoas dentro? Pois eu vinha nele. Saiu gente ferida, uns morreram, outros aleijaram ― mas eu escapei sem quebrar uma unha que fosse”.

(Deu a sua gargalhada clara e feliz.) “Não é uma sorte engraçada? Acho que pessoa mais feliz que eu, neste mundo não há. Agora trabalho numa pedreira; lido com dinamite, que é objeto perigoso danado. Os outros todos têm medo, menos eu. Sei que se aquele diabo estourar de mau jeito, pode pegar os companheiros, a mim não pega. Não é corpo fechado, não é reza, nunca fui homem de usar patuá; é sorte mesmo, sorte feliz. Dizia a finada minha mãe que era o anjo da guarda; quando eu era menino talvez fosse; mas hoje em dia, Deus que me perdoe se for pecado, não acredito que o anjo da guarda fosse andar atrás dum bicho feio e ruim que nem eu...

“E hoje estou por aqui, rolando... Por ora me dou bem, neste Rio de Janeiro. Mas casar não me caso mais, nem mesmo sigo esta moda de ajuntar, que aqui se usa muito. Gosto duma moça, mas falar a verdade, tenho medo... com essa sorte que eu tenho... A gente afinal de contas não gosta de ver os outros morrer... mormente se tem amizade, não é mesmo, dona? Deixa a pobrezinha continuar vivendo”...

Fonte:
O Cruzeiro. Coluna Última Página. RJ.

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