O nosso correligionário vinha vindo pelo saguão do aeroporto com um grande sorriso lhe clareando o rosto magro e, mal deu bom dia, foi logo dizendo:
― Felizmente chegou o 15 de março, que alívio!
Era de estranhar a exclamação, porque como nós, “golpista histórico”, o homem atravessara os três anos revolucionários como castellista irredutível. Será que agora ia na onda do tempo das falas novas?
― Sim, que alívio! ― Dois amigos mais tinham chegado, formara-se um pequeno círculo em torno do correligionário, que agora explicava:
― Eh, não me olhem assim de lado, que eu não estou renegando nada. Pelo contrário, nunca fui mais amigo do homem do que sou hoje. (A roda respirou, aliviada.) Estivesse em mim, andava com uma banda de música atrás dele, tocando o Hino Nacional. Não, meu alívio é outro. O que eu comemoro é o fim da minha função oficiosa de amigo particular do presidente. Vocês sabem lá o que é isso! Não se dá um passo, não se vê uma cara, ninguém fala com a gente pela gente mesmo...
― É mesmo, os pedidos de emprego são terríveis ― comentou alguém.
― Bem, os pedidos de empregos e vantagens são um capítulo à parte. Eles confundem amigo com valido; e acham que pelo fato de você poder de vez em quando falar cordialmente com o homem, isso lhe dá condições de a toda hora estar importunando, pedindo coisas ― promoções, remoções, empregos, pensões. E para se explicar que nada nos autoriza a fazer os pedidos, e nada garante que ele faça o que se pede, é um drama. Mas, esses que pedem, ao menos tentam satisfazer um direito, ou curar uma necessidade; ainda não são os piores. Os danados são os conselheiros, os entendidos, os assessores espontâneos... internacionalistas amadores, militares amadores, economistas amadores.... Mal você vai botando um salgadinho na boca, num coquetel, eles lhe puxam para um canto e começam: “Escute aí, assim não é possível! Diga ao seu amigo que essa alteração nas letras de câmbio é um absurdo! A medida só se justificava se a taxa do dólar em relação ao cruzeiro etc, etc.” Ou então: “Meu caro, numa das suas conversas com o presidente, você precisa fazer uma advertência muito séria a ele. Esse caso no Ministério do Trabalho foi realmente clamoroso...”
E os especialistas em política internacional? “Olhe, meu velho, dê um conselho a esse homem: a nossa posição nessa questão do Vietnã foi uma vergonha... E do Paraguai, então! O presidente não pode deixar o Itamarati seguir esse caminho!” Há os que têm um plano rodoviário pronto, inteiramente oposto a “essa besteira que o presidente está deixando o Juarez fazer...” E os que são contra a erradicação dos cafezais e querem que você explique direitinho ao homem o crime que se está cometendo contra o nosso principal produto; e há o que lhe entrega um memorial de cem páginas “para o homem ler”, onde se prega a total diversificação da lavoura. E depois ficam cobrando: “Você entregou? Que é que ele disse?” E a verdade é que, naturalmente, o homem nunca me pediu conselhos para governar...
― Deve ser chato.
― Ah, mas ainda tem piores. E os provocadores? Esses, justamente porque sabem que você é amigo do homem, mal lhe avistam, entram logo na ignorância. Pode até ser uma pessoa bem-educada — mas em matéria de política ninguém tem educação. “Ah, meu caro, esse tal de seu amigo é mesmo de arder!” E sentam a ripa. Normalmente, jamais ocorreria àquele camarada insultar um amigo nosso, mas quando esse amigo é o presidente, até fica bem, é sinal de independência de caráter... E os que sabem de fonte limpa as piores falcatruas, a que o homem, se não participou, pelo menos fechou os olhos? E os que querem que a gente vá denunciar fabulosas negociatas; e os dedos-duros que exigem que a gente desmascare certos corruptos e subversivos, enquanto eles se mantêm corajosamente anônimos: “Eu lhe digo isso em particular, para você abrir os olhos do homem, mas por favor não cite o meu nome...”
Nesse instante aproximou-se da roda uma senhora gorda, comboiando uma moça magra, e se dirigiu ao nosso correligionário:
― Dr., esta minha nora tem um assunto muito sério para tratar. E como sei que o senhor é muito chegado ao governo, amigo do presidente...
O correligionário ficou inteiramente histérico:
― Fui, minha senhora, fui! Isto, sou amigo do presidente que foi! Esse agora só conheço de retrato ― e nem de retrato direito, só retrato impresso, retrato de jornal! Com esse eu nunca falei, graças a Deus!
Fonte:
O Cruzeiro. RJ: 22 abr 1967.
Nenhum comentário:
Postar um comentário