quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Carolina Ramos (O Banquete)


Vitrinas iluminadas. Noite azul, cheia de estrelas. Papai Noel, passos cansados, não tinha pressa nenhuma em voltar para casa.

Aspirou fundo o cheiro peculiar que diferenciava a Noite Santa das outras tantas noites perdidas nos calendários. Varreu com os olhos, pouco interessados, as vitrinas exuberantes e as janelas contornadas de luzes pequeninas, a cintilar como cacos de estrelas caídos do espaço. Era como se o homem, com sua tecnologia lírica, tivesse conseguido transportar para a terra a magia coruscante de um céu natalino.

Nos rumos do ganha-pão, o velho Papai Noel passara por inúmeros lares, arredondando olhos de crianças de tenra idade, felizes por nele acreditarem; olhos que nem o peso do sono conseguia fechar.

Era a figura máxima! Em sua mágica passagem, arrebatara atenções, em detrimento até do Pequenino, adormecido entre as palhas do presépio.

Encantadas, as crianças acreditavam mais na figura palpável do Bom Velhinho, do que no cenário espiritualizado da lapa de Belém, improvisado aos pés da Árvore de Natal — a matéria situando-se acima dos símbolos imponderáveis. A lenda, importada, sobrepondo-se ao misticismo da Fé.

Aquele Bom Velhinho, porém, era humano. Humaníssimo! Sentia a fome roer-lhe as paredes do estômago vazio, e ninguém, ninguém mesmo, lembrara-se de oferecer-lhe um mísero petisco, sequer uma perninha de frango — nem pensar nos perus luzidios, de papo estufado de farofa e sapatos de papel estanho recortado, completamente fora de suas cogitações. Mas, ninguém lhe oferecera uma guloseima, um copo de vinho, um copo de água, sequer!

Denunciado pelo ventre rotundo, ainda que acolchoado de algodão, negava-se ao Papai Noel comilão o direito de matar a fome em público. Seria a desmitificação absoluta! Seria sujeitá-lo a deslizes, ou pior que isso, ao vexame, pondo em risco a estabilidade ou a pulcridade da barba branquinha, que deveria continuar imaculada a qualquer custo, até o fim do desempenho de suas funções.

Bebida, então, nem pensar! Que tal imaginar um Pai Noel etilicamente "alegre", babando champanhe ou de barbas manchadas de vinho?

Degradante! Profundamente degradante! A decepção das crianças que tamanho teria?!

Sóbrio, sedento e faminto, assim teria de ser o Pai Noel que prezasse o nome.

E era sóbrio, sedento, faminto e cansado, que se sentia aquele homem de gorro e roupas vermelhas, botas negras, que trazia no ombro um saco cheio de caixas muito bem embrulhadas e... vazias... tão vazias quanto ele próprio.

Frente à apetitosa vitrina de um restaurante, parou. O pernil à Califórnia, cercado de frutas embebidas em calda e decorado de cerejas, fez-lhe brotar água à boca.

Contou as moedas, aqui e ali, pingadas nas algibeiras. No pernil inteiro, nem pensar! Também, era demasiado grande para o tamanho da fome. Algumas fatias bastavam. E sempre havia algumas delas à espera de comprador modesto.

Ao chegar a casa, o gato, ronronante, como ele, faminto, lustrou-lhe as botas com o pelo macio.

E o Bom Velhinho, cuja presença alegrara tanta gente, livre das botas e do gorro vermelho, dividiu, prazerosa mente com o gato vadio, o seu banquete de Natal!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

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