O TELEFONE TOCOU e Glorinha, a empregada, atarefada passando o café, gritou lá da cozinha para que o Chico, motorista de seu patrão, o magnata das saborosas sardinhas Tuti, sentado na sala, fizesse a gentileza de ver quem era. Obediente, e prestativo, o Chico foi:
— Alô, bom dia!
— Bom dia.
— Com quem falo?
— Quer falar com quem?
— Com o Tuti.
— O senhor Tuti não está.
— Sabe a que horas posso encontrá-lo?
— Glorinha me passou a informação que só depois das oito da noite.
— Quem é a Glorinha?
— A Glorinha é a empregada dele.
— E o senhor, quem é?
— Não sou o senhor Tuti.
— Ok. Qual seu nome, por obséquio?
— Prefiro não me identificar. Não vejo necessidade.
— Estou propensa a acreditar que o senhor é o Tuti e está tentando me enganar. Acertei?
— Asseguro-lhe que não. Conhece o senhor Tuti?
— Não tive ainda o prazer.
— Acaso falou com ele alguma vez?
— Na verdade nunca tivemos nenhum contato. Esta é a primeira vez que ligo para a sua casa.
— Minha não, a casa é dele. Se nunca falou com o senhor Tuti, como ousa afirmar que eu sou ele, se jamais conversou comigo?
— Tá vendo só? Na mosca. O senhor é o Tuti.
— Não, não sou.
— Claro que é.
— Prove que sou o senhor Tuti.
— Repetirei o que o senhor acabou de dizer: “Como ousa afirmar que sou ele se nunca conversou comigo?”.
— E daí...?
— Se o senhor não fosse o Tuti diria: “Como ousa afirmar que sou ele, se nunca conversou com o cara, ou com o sujeito?”. Ao contrário, o senhor foi categórico. O senhor disse com todas as letras: “Como ousa afirmar que sou ele se nunca conversou comigo?”.
— Basta. Não precisa repetir.
— E para completar ficou nervoso. Aliás, está nervoso. Uma prova insofismável de que é o próprio.
— Que próprio?
— O Tuti em carne e osso.
— Senhora, o senhor Tuti realmente saiu. Só depois das oito da noite...
— A que horas ele saiu?
— Não sei ao certo.
— Sabe dizer onde foi?
— A Glorinha não me disse. Afinal de contas, a senhora é de onde? Deixe o nome e o número do telefone que farei o favor de anotar e repassar para a moça que trabalha aqui na residência dele.
— Vamos esclarecer uma coisinha?
— Que coisinha?
— Não sou casada.
— E o que eu tenho a ver com o fato da senhora não ser casada?
— Às pessoas casadas o senhor se dirige usando a tal da senhora. Às solteiras...
— Por acaso tenho bola de cristal?
— Senhor...
— Também não sou senhor.
— O tratamento diferenciado faz parte da educação, cavalheiro.
— Não quero saber.
— Seu Tuti, preste atenção. Eu...
— Senhora, quero dizer... Moça, não sou o senhor Tuti, por gentileza, não insista. Está começando a me tirar do sério.
— Sabia que é feio mentir?
— Quem está mentindo aqui?
— Só vejo uma pessoa berrando no meu ouvido.
— Berrando? Quem está berrando?
— O Tuti. Só pode ser o senhor. Pois bem, seu Tuti. Vamos ao que realmente nos interessa, ou seja, ao real motivo que ensejou o presente telefonema para a sua residência. O Senhor é o Tuti. Tuti de quê?
— Dona, não sou Tuti de nada.
— O senhor não tem sobrenome?
— Não vou responder. Aliás, não quero mais prolongar esta lenga-lenga. Passe bem.
— Pretende continuar insistindo na brincadeira? Fale sério!
— Por que não desliga e vai até a esquina fumar um cigarro ou tomar um refrigerante bem geladinho no canudinho?
— Não fumo mais. Parei faz exatamente dois anos. Refrigerante dá estrias. E o canudinho... Bem o canudinho...
— Esquece o canudinho. Tenha um bom dia.
— Calma, seu Tuti. Só confirme para mim o seu nome completo e seu endereço.
— Simpática, não sou o senhor Tuti. Ele saiu...
— Vamos supor que realmente o seu Tuti esteja ausente . O senhor, quem é?
— Um colega e um amigo.
— E esse colega e amigo não tem nome?
— Senhora, eu...
— Senhorita. Lembre-se: não sou casada.
— Que seja. Atendi ao telefone para fazer uma gentileza à Glorinha que está passando o café. Tenho mais o que fazer. Pela última e derradeira, tenha um bom dia.
— Calma, calma. Percebo, por sua voz, que o senhor está muito nervoso.
— E não é para estar com você torrando meu saco?
— São quase dez horas da manhã. Estamos no horário comercial. Apenas tento fazer meu trabalho.
— Vamos colocar um ponto final nesta parlenda. Não sou o senhor Tuti. Ligue depois das oito da noite e se entenda com ele diretamente. Ou deixe seu nome e número. Ele lhe retornará a ligação.
— Insisto: quem é o senhor?
— Um colega e amigo do senhor Tuti.
— Colega e amigo do senhor Tuti em sua casa, assim tão cedo?
— Vim resolver um problema. Passei para pegar os documentos do carro dele. Coincidentemente, como a Glorinha está preparando um café, estou esperando pela bebida. Meu Deus, o que estou fazendo? Não tenho que lhe dar satisfações.
— Ora, seu Tuti, fique à vontade.
— Tuti é a sua mãe.
— Não me ofenda. Minha mãe se chama Umbelina. Umbelina sem o agá. E não tem Tuti.
— Vá para o inferno.
— Irei. Antes de me pôr a caminho, me diga seu nome todo. Tuti de quê?
— Querida, vá para o raio que a parta.
— Cavalheiro, colabore. Quero seu nome para constar aqui na minha ficha de atendimento ao cliente. Tenho que anotar o nome da pessoa com quem falei neste número.
— Se lhe der meu nome me deixará em paz?
— Juro por tudo quanto é mais sagrado.
— Pois bem. Sou o Chico. Chico Média. Satisfeita?
Risos:
— O que foi agora? Qual a graça?
As hilaridades continuaram:
— Vou desligar...
— Então o senhor é o famoso Chico Média?
— Sou. Contudo, não tenho nada de famoso. Por que continua gargalhando? Tenho cara de palhaço?
— Me lembrei de um fato curioso. Mamãe fala todo mês no senhor...
— Sua mãe? Ela não me conhece! Que patranha é essa agora?
— Se minha mãe não lhe conhecesse, não teria motivos para ficar uma arara. Uma arara. Principalmente quando o senhor chega...
— Deve haver algum engano neste falatório todo. Sua mãe nunca me viu nem mais gordo, nem mais magro. E eu... Eu nunca cheguei...
— Agora que declinou seu nome, tenho cá minhas dúvidas...
— Que dúvidas? Como sua mãe poderia me conhecer?
— Vou provar que o senhor a conhece. E a incomoda, literalmente, todos os meses.
— Eu a incomodo? Como? De que forma? Não sei quem é você, moça, que dirá a sua mãe, esta tal de dona Umbelina.
— Lembrando, para que não esqueça: sem o agá.
— Que diferença isto faz, com ou sem o agá?
— Seu Tuti —, quero dizer —, seu Chico, o senhor me faria um imenso favor?
— Favor, que favor?!
— Saia de uma vez por todas da vida da minha mãe. Quero dizer, desgarre da minha querida genitora. Todo mês o senhor a incomoda. Mamãe fica uma fera com a sua presença. Que droga, que coisa feia, seu Média... Digo, seu Chico...
Chico Média ia retrucar mas a engraçadinha se abriu novamente numa estrondosa chalaceação desligando o aparelho na cara dele.
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
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