segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Carolina Ramos (Noite Inesquecível!)


Para a meia noite faltava apenas um quase. Até Papai Noel já marcava presença, para alegria da criançada e dos adultos, também.

A ceia, quentinha, completava a mesa que, arrumada com requinte, encantava olhos e despertava sentidos, fazendo crescer água à boca.

À espera dos retardatários, a porta permanecia entreaberta, prova temerária de que as mais sumárias normas de segurança eram esquecidas.

O troco da imprudência não se fez esperar. Um pontapé brusco (pode um pontapé deixar de ser brusco?!) escancarou-a.

Eram cinco. Cinco malfeitores armados até os dentes!

— Ninguém se mexa... é um assalto!

E ninguém se mexeu mesmo! O grupo assustado foi confinado num canto. Mulheres à beira do chilique. Crianças choramingando, corações batendo a mil.

Dois dos bandidos permaneceram na guarda, arma na mão. Os outros três apressaram-se em tirar a barriga da miséria.

Apetitoso, o peru, pele dourada e reluzente, logo ficou sem uma das coxas. A outra também logo se foi... assim como o peito branco, úmido e macio. Saboroso! A farofa, sequinha, esparramou-se, farta, sobre a toalha decorada com motivos natalinos.

Consumidas, em sequência rápida e desordenada, as iguarias desapareciam ante os olhos perplexos e os estômagos vazios da família ultrajada.

Não demorou muito e a impaciência se fez presente entre os dois larápios que empunhavam as armas. Daí os protestos;

— Ei... chega, né?... Agora é a nossa vez! Também somos gente!

Mas, o apetite dos três gulosos não estava saciado, ainda. Da gula, nascia a sede, E as garrafas de vinho passaram a ser abertas com entusiasmo crescente. Libações e brindes não tinham mais fim! O tim-tim das garrafas, emborcadas diretamente nas bocas ávidas, dispensando taças e copos, levaram ao desespero os que estavam no aguardo. Na hora do basta, a dupla faminta mudou a mira das armas para as cabeças dos comilões.

— Agora chega! Chega mesmo!!! Todo mundo pra trás... ou vai sobrar chumbo como sobremesa!

Aos trambolhões, os três gulosos foram passados para retaguarda, cedendo espaço aos dois companheiros, cujo apetite a espera aguçara.

Quando afinal, o champanhe assumiu o comando da situação, a guarda foi abrandada e a família, vítima do assalto, que observava sem interferências sentiu, numa troca furtiva de olhares, que a hora propícia era chegada. O mais valentão deu um salto, tomando a arma do bandido mais próximo.

— Agora sou eu quem diz chega! Todo o mundo de mãos para cima e a cara virada para a parede.

A ordem foi seguida, sem protestos. Quem falava era um Papai Noel, agora com jeito de cowboy, que esquecia as banhas artificiais e engrossava a voz num repente autoritário que não admitia desobediências.

Ninguém reagiu! Na verdade, os bandidos, já fartos, a custo mantinham-se a prumo, empunhando as armas que lhes pesavam nas mãos! Fácil dominá-los! Como também aos outros três, ainda de boca cheia, mais preocupados em encher os bandulhos, do que propriamente em se defenderem.

Algum tempo depois, um camburão carregou, sem reações, cinco figurões eufóricos, de línguas enroladas e pernas mais enroladas, ainda.

Tio Homero, sempre o mais calado da família, despiu as vestes noelinas, livrando-se da barba e dos enchimentos que lhe davam mais uns quilos. Foi aplaudido com veemência!!! Era agora outra pessoa! Digno da maior admiração! Mesmo sem os enchimentos, crescera aos olhos de todos, virou herói... para sempre!

A ceia de Natal, naquela inesquecível e quase trágica noite, aconteceu, sem mais problemas, lá na Pizzaria da esquina.

Isso mesmo: "acabou em pizza…" Aliás... como tanta coisa, por aí!.. .

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

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