segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Nilto Maciel (O Veneno da Cobra)


A morte do sábio Salomão. Ou João Paulo, Juan Pablo, Jean-Paul. Charles, Karl ou Carlos Magno. Joseph ou José de Anchieta. Alejandro, Alexandre, Alexander. Ignora-se seu nome verdadeiro, sua nacionalidade. Pode ter nascido russo, Alexey Maykov, Konstantin Ostrovsky, Fiodor Saltikov. Francês, inglês, chinês, brasileiro. Ninguém faz caso disso. Vale contar sua morte. Há algum tempo, porém, não se conta a morte de heróis, mitos, eminências. Quando muito, se a noticia. Virou moda esse medo da morte. Não do fato, mas da sua metafísica.

No entanto, Salomão (?) não é um homem da moda. É raro. Antigo como os deuses e novo como os astronautas, sem nunca ter sido de ontem e sem ser de hoje. Se é do futuro, ninguém sabe.

Não importa, ele é morto.

Segundo os cronistas mais famosos, tão imprevisível era que, se tivesse escrito versos, seria o maior de todos os poetas; se tivesse se dedicado à conquista amorosa, não se falaria mais em donjuanismo; se houvesse tomado a dianteira de algum partido ou grupo, agora o poder brilharia em suas mãos. Nada disso fez, porém. Jamais se interessou por poesia, sexo e política. Nem sequer escreveu versos de amor aos 15 anos. Não se casou, não teve amantes, nunca frequentou o infindável abismo do prazer. Um dia leu Marx e toda a nata de pensadores burgueses. Apenas. Não levantou uma palha pelos operários, nem tirou o chapéu para os banqueiros. Manteve-se sempre longe de tudo. Ou perto, à sua maneira.

Ninguém o chamou de menino prodígio, a não ser alguns biógrafos de meia tigela.

Às vésperas de morrer, revelou sua grande descoberta: as fórmulas da vida e da morte, os componentes de seus vírus.

Nas universidades, academias, parlamentos expôs suas conclusões. Chamaram-no de feiticeiro, embusteiro, louco. As igrejas o condenaram. Certa imprensa o promoveu a semideus. Pagavam-lhe a fábula do ouro por um programa dominical. Grupos extremistas sequestraram-no e exigiram, como resgate, milhões de dólares. Ninguém deu ouvidos a nada. Se o matassem, seriam perdoados por todos os seus atos pretéritos e futuros. As editoras propuseram-lhe contratos escandalosos pela publicação de sua obra. Mil impostores escreveram porcarias em seu nome.

Esteve fugido pelos quatro cantos do mundo, até morrer quase anonimamente. Ao lado do cadáver encontraram seu único escrito:

O vírus da morte é o antídoto do vírus da vida. Os dois existem na natureza infinitamente. Em constante luta. Em condições normais, o vírus da vida vence seu inimigo durante determinado tempo. Aos poucos, porém, um e outro ocupam o mesmo “espaço” e finalmente o da morte sai vencedor.

Um animal qualquer é picado por cobra venenosa. Como explicar isso? É simples: o vírus da morte contido no animal conduziu-o à serpente. Num átimo de segundo esse vírus se desenvolveu de forma progressiva no interior do corpo da vítima. Poderia ter ocorrido uma reviravolta, uma brusca reação do vírus da vida e o animal passar a um centímetro da cobra sem ser picado. Ou dar meia volta e regressar. Ou conseguir matar a serpente.

Se conseguirmos produzir o vírus da vida e injetá-lo nos seres vivos, chegaremos a retardar a morte e até a eliminá-la. E não seria um trabalho eterno, porque, à medida que as pessoas e os animais se enriquecessem de vírus de vida, conseguiriam transmiti-lo a seus contemporâneos e descendentes. Algumas gerações depois teríamos reduzido a zero o vírus letal da face da terra.

Porém, cometi um erro fatal. Não, cometer não é o verbo exato. Talvez fosse melhor dizer que não me afastei da tentação de desconfiar de minha própria descoberta. Se tivesse me injetado uma poção que fosse do vírus da vida, agora não estaria diante da morte. Mas nem sequer o produzi, dedicado que permaneci a divulgar minhas teorias. Ao chamado instinto de conservação sobrepunha-se em mim o vedetismo. A morte vencia a vida.

A partir daí, o vírus letal se apoderou do meu ser: frequentei universidades, academias, parlamentos; me apavorei diante da morte; fugi dos homens. Até que – cheio de dúvidas – me fiz solitário e pus-me a imaginar o meu fim. E eu me indagava: se tudo fosse diferente, se eu não estivesse aqui, se eu não fosse esse homem desprotegido...

Quando decidi deixar uma palavra escrita aos homens, esse anúncio de morte, já não havia como retroceder e o abismo se cavava diante de mim, inevitável.

Vou morrer.


Fonte:
Nilto Maciel. Itinerário: contos. Fortaleza, CE: Ed. do Autor, 1974.
Livro enviado pelo autor.

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