domingo, 3 de janeiro de 2021

Estante de Livros (O Largo da Palma, de Adônias Filho) – 5 –

QUINTO EPISÓDIO: OS ENFORCADOS


Esta narrativa está localizada temporalmente. Através de um cego, a história da revolução dos alfaiates é contada numa perspectiva de pessoas que assistiram ao enforcamento dos revolucionários acusados.

O ceguinho do Largo da Palma, como era chamado, sentiu que o largo estava vazio, que a igreja tinha poucos fiéis e todos saíram apressados. Ficou sabendo que era o dia dos enforcados.

Como não recebe nenhuma esmola, vai para a Piedade, mas antes para na birosca do Valentim. É o Valentim que vai narrar o enforcamento para o ceguinho, ele que tinha uma voz de sermão, hoje fala baixo, tem medo fruto das prisões e das torturas. A cidade traz a marca da tragédia:

— A cidade parece triste.

— A Bahia nunca foi alegre — Valentim, abaixando a voz disse por sua vez. — Uma cidade com escravos é sempre triste. É muito triste mesmo.

Quando os quatro condenados estão chegando, a multidão se agita. O cego tudo tomava conhecimento pela voz de Valentim, voz emocionada, afinal era ele quem via. Quando a morte do último condenado aconteceu
Valentim sumiu, deixando o ceguinho só, tão só, apenas com o porrete na mão. Andou até reconhecer o Largo da Palma. Tudo o que queria era seu canto do pátio da igreja.

E ao aproximar-se, ao sentir o cheiro de incenso, pensou que naquele momento já cortavam as cabeças e as mãos dos enforcados. Colocadas em exposição, no Cruzeiro de São Francisco ou na Rua Direita do Palácio, até que ficassem os ossos. O Largo da Palma, porque sem povo e movimento, seria poupado. Ajoelhou-se, então, pondo as mãos na porta da Igreja.

E, única vez em toda a vida, agradeceu à Santa Palma ter ficado cego.

COMENTÁRIO

O cego da narrativa pode ser a representação do poeta itinerante, uma visão de renúncia às coisas externas fugidias. Para explicar o que o cego não vê é preciso falar: a narrativa se faz necessária. É a justificativa para uma história ser contada, no caso,“costurando a revolução”, tecendo os fatos.

O cego sem poder ver os fatos exteriores, tem a capacidade de ver a verdade interior.

A Revolta dos Alfaiates ou Inconfidência baiana ocorreu em 1798, cujos participantes pertenciam às camadas pobres. Dois soldados; Lucas Dantas e Luís Gonzaga das Virgens; dois alfaiates João de Deus do Nascimento e Manuel Faustino dos Santos, que tinha dezoito anos lutavam pela República. Eram todos mulatos. Os intelectuais e os ricos da Loja Maçônica Cavaleiros da Luz foram perdoados. O castigo aos pobres deveu-se ao medo de que houvesse uma rebelião dos negros como havia acontecido nas Antilhas.

O dia dos enforcados, na Piedade, 08/11/1799.

Na narrativa, o nome do governador D. Fernando José de Portugal e Castro, os atos que praticava para impor respeito: a chibata, os grilhões, a forca o esquartejamento, fazem parte do mundo de violência que não deve ser visto. Por isso o cego agradece à Santa.

Como dois dos revolucionários eram alfaiates, mulatos, vítimas de discriminação, pode-se relacionar este episódio com o filme Concorrência Desleal de Scola, quando há uma lição de solidariedade entre um alfaiate e seu concorrente, quando sofre a discriminação por ser judeu.

Fonte:
– ARAÚJO, Vera L. R. in Cultura, Contextos e Contemporaneidade. Disponível no Portal São Francisco.

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