Desde que a nave espacial Viking amartissou (é isso mesmo?) Juvenal Ouriço e o Boca não descolam o ouvido do rádio. Parecem dois paraíbas de obra depois do expediente. Juvenal aguarda com a maior ansiedade a notícia de que há vida em Marte. E afirma que quando a informação chegar vai dar uma festa. Causa-lhe uma profunda ansiedade a ideia de que ”nós, terráqueos, somos os únicos seres viventes em trânsito pela Via-Láctea”.
- Já imaginou a sensação de solidão universal? – diz arregalando os olhos. - Eu já não gosto de me sentir só nem em casa, que dirá no planeta?
Haverá vida em Marte? Tudo indica que sim, pois ao mesmo tempo que enviamos daqui a Viking, os marcianos mandavam de lá a nave Gnikiv, movidos pela mesma curiosidade: haverá vida na Terra? As duas naves, por sinal, se cruzaram ali pelo quilômetro 46 milhões 578 mil 300 da estrada do Sol. A Viking viaja por instrumentos. A Gnikiv, porém, traz dois cosmonautas a bordo: Kni e Giv. Quando Kni olhou pela escotilha e viu a nossa nave passando, berrou para o companheiro: ”Ei, Giv, olhe. Que é aquilo? Um disco voador?”
- Disco voador o quê, rapaz! Que mania a sua de pensar que todo objeto que se move no espaço é disco voador. Disco voador não existe.
- Pra mim existe. E lhe digo mais: é tripulado por seres da Terra.
- Duvido muito.
- Duvida por quê? Você não acha possível que exista uma civilização adiantada na Terra?
- Não sei nem se há vida na Terra.
- Claro que há. Pode não ser muito antiga, mas há. Alguns cientistas suspeitam de que a vida na Terra começou em 1945. Foi a partir dessa época que eles passaram a observar a formação de gigantescos cogumelos luminosos.
- Deixa de bobagem. Aquilo eram explosões provocadas pelo choque de meteoritos com a superfície do planeta.
- Então esse negócio que passou por aí veio de onde?
- Sei lá. Olha aí no mapa. Qual é a outra estação depois da Terra?
- Vênus.
- Vênus não deve ser. Tem outra?
- Tem Mercúrio, uma estaçãozinha pequena.
- Também não creio que seja de lá. E depois? Vem o quê?
- Depois acaba. Mercúrio é o fim da linha.
Os dois ainda discutiam a procedência da Viking quando a Gnikiv trepidou um pouco, perdeu altura e surgiu sobre o céu do Rio de Janeiro. Kni observou lá de cima e comentou com Giv: ”Creio que nos distraímos e saímos da rota”.
- É mesmo? Por que você diz isso?
- Está cheio de crateras lá em baixo. Acho que estamos sobrevoando a Lua.
Os dois tornaram a consultar os mapas, refizeram os cálculos e constataram surpresos que estavam realmente sobre a Terra. ”Engraçado” - disse Kni - ”os nossos mapas estão todos errados, eu nunca soube que havia tanta cratera na Terra”.
- Quem sabe não são erupções vulcânicas que ocorreram após nossa saída de Marte?
- Não creio. Não daria tempo. É muita erupção pra pouca viagem. Você se esquece de que viemos praticamente ali da esquina. Foram apenas 384 milhões de quilômetros.
O módulo da Viking amartissou, auxiliado por três foguetes e um pára-quedas em 3h20min. A Gnikiv demorou menos. Pouco mais de meia hora. Bem verdade que já nos movimentos finais a nave foi auxiliada em terra por dois crioulos que orientavam as manobras: ”Dá ré, agora vira tudo pra direita, isso, chega um pouquinho à frente, tá bom aí”. Os marcianos saltaram e um dos crioulos logo perguntou:
”Posso tomar conta?”
A nave desceu num local ermo, próximo à Favela da Rocinha. Ao botar os pés na Terra, Giv farejou o ar, respirou fundo e observou: ”Estou sentindo um cheirinho de nitrogênio”.
- Eu também - disse Kni puxando ar - mas pra mim está misturado com oxigênio. E se você respirar na direção do vento ainda vai sentir um leve aroma de argônio. Sentiu?
- Senti. Acho que com essa composição é muito difícil haver vida na Terra.
A atmosfera em Marte é quase toda composta de anidrido carbônico. Sua temperatura é mais baixa que a nossa. Os marcianos estranharam o calor. Um crioulo ao lado sorriu e disse: ”Os senhores não são os primeiros, tudo quanto é gringo reclama do nosso calor”.
Kni virou-se para o crioulo e foi direto ao assunto: ”Será que você pode nos informar se existe vida na Terra?” O crioulo pensou alguns segundos, encavalou o lábio inferior no superior e balançou a cabeça negativamente: ”Não sei não senhor”.
- Ele não sabe de nada - aparteou o outro crioulo - é completamente analfabeto.
- E você sabe? Sabe se existe vida na Terra?
- Eu? - perguntou o outro crioulo que era meio folgado. - Eu acho que não tem não, mas não posso dar certeza.
Explicou que estava começando o Mobral agora, mas ”se os senhores quiserem a gente pode perguntar ao meu irmão que tem algum estudo”. Os três iniciaram então uma caminhada pelo atalho (o outro crioulo ficou tomando conta da nave) até o barraco. Enquanto andavam, Kni e Giv assediavam o crioulo com perguntas: ”Você sabe se há mais alguma coisa no ar, aqui, além de nitrogênio, oxigênio e argônio?”
- Não sei dizer, não senhor. Dizem que há muita poluição mas eu mesmo nunca vi.
- E de que é a camada que cobre a superfície da Terra?
- De que é? De asfalto.
- Isso que nós estamos pisando é asfalto?
- Não senhor. Aqui é terra.
- Que é a Terra eu sei. Vocês são quantos aqui? .
- Na Rocinha?
- Não. Na Terra.
- Toda? - perguntou o crioulo fazendo uma bola com os braços. - Não sei não senhor, mas deve ser mais de 2 milhões.
Os três chegaram ao barraco. O crioulo apresentou aquelas figuras (cada um imagina o seu marciano como quiser) ao irmão explicando antes que ”estes senhores acabaram de chegar de . . de onde mesmo? Nevoer quê?”
- Não. Nós viemos de Marte.
- Pois é - prosseguiu o crioulo na maior tranquilidade, provavelmente imaginando que Marte ficasse ali depois de Nova Iguaçu - esses senhores chegaram de Marte e estão querendo saber se existe vida na Terra. Eu não soube responder. Você sabe?
- Bem - disse o irmão do crioulo meio indeciso – eu acho que existe.
- De que forma? - perguntou Kni. - São moléculas?
- Isso eu não sei.
- Claro que são - intrometeu-se o crioulo folgado.
- Eu me lembro de quando era garoto as pessoas chegavam pra mim e diziam: ”Não faça isso, seu molécula”.
Kni e Giv se entreolharam e cheios de dúvidas pediram maiores explicações ao irmão do crioulo. Os quatro sentaram-se em volta de uma mesa (uma mesa de dois pés). O irmão do crioulo, então, foi desfiando toda a sua existência, desde o dia em que nasceu naquele mesmo barraco.
Ao terminar, Kni, incrédulo, perguntou-lhe: ”Isso que você acabou de contar: é essa a vida que existe na Terra?” O irmão do crioulo disse que sim.
- Não. Não é possível - disse Kni. - Você está brincando. Isso não é vida.
Os dois saíram. Voltaram à nave e de lá informaram a Marte que não havia vida na Terra.
Fonte:
Carlos Eduardo Novaes. O Quiabo Comunista. RJ: Nórdica, 1977.
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