sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Fernando Sabino (Macacos me Mordam)


Morador de uma cidade do interior de Minas me deu conhecimento do fato: diz ele que há tempos um cientista local passou telegrama para outro cientista, amigo seu, residente em Manaus:

“Obséquio providenciar remessa um ou dois macacos”.

Necessitava ele de fazer algumas inoculações em macaco, animal difícil de ser encontrado na localidade. Um belo dia, já esquecido da encomenda, recebeu resposta:

“Providenciada remessa 600 restante seguirá oportunamente”.

Não entendeu bem: o amigo lhe arranjara apenas um macaco, por seiscentos cruzeiros? Ficou aguardando, e só foi entender quando o chefe da estação veio comunicar-lhe:

– Professor, chegou sua encomenda. Aqui está o conhecimento para o senhor assinar. Foi preciso trem especial.

E acrescentou:

– É macaco que não acaba mais!

Ficou aterrado: o telégrafo errara ao transmitir “um ou dois macacos”, transmitira “1.002 macacos”! E na estação, para começar, nada menos que 600 macacos engaiolados aguardavam desembaraço. Telegrafou imediatamente ao amigo:

“Pelo amor de Santa Maria Virgem, suspenda remessa restante!”

Ia para a estação, mas a população local, surpreendida pelo acontecimento, já se concentrava ali, curiosa, entusiasmada, apreensiva:

– O que será que o professor pretende com tanto macaco?

E a macacada, impaciente e faminta, aguardava destino, empilhada em gaiolas na plataforma da estação, divertindo a todos com suas macaquices. O professor não teve coragem de aproximar-se: fugiu correndo, foi se esconder no fundo de sua casa. À noite, porém, o agente da estação veio desentocá-lo:

– Professor, pelo amor de Deus vem dar um jeito naquilo.

O professor pediu tempo para pensar. O homem coçava a cabeça, perplexo:

– Professor, nós todos temos muita estima e muito respeito pelo senhor, mas tenha paciência: se o senhor não der um jeito eu vou mandar trazer a macacada para sua casa.

– Para minha casa? Você está maluco?

O impasse prolongou-se ao longo de todo o dia seguinte. Na cidade não se comentava outra coisa, e os ditos espirituosos circulavam:

– Macacos me mordam!

– Macaco, olha o teu rabo.

À noite, como o professor não se mexesse, o chefe da estação convocou as pessoas graduadas do lugar: o prefeito, o delegado, o juiz.

– Mandar de volta por conta da Prefeitura?

– A Prefeitura não tem dinheiro para gastar com macacos.

– O professor muito menos.

– Já estão famintos, não sei o que fazer.

– Matar? Mas isso seria uma carnificina!

– Nada disso – ponderou o delegado: – Dizem que macaco guisado é um bom prato...
*

Ao fim do segundo dia, o agente da estação, por conta própria, não tendo outra alternativa, apelou para o último recurso – o trágico, o espantoso recurso da pátria em perigo: soltar os macacos. E como os habitantes de Leide durante o cerco espanhol, soltando os diques do Mar do Norte para salvar a honra da Holanda, mandou soltar os macacos. E os macacos foram soltos! E o Mar do Norte, alegre e sinistro, saltou para a terra com a braveza dos touros que saltam para a arena quando se lhes abre o curral – ou como macacos saltam para a cidade quando se lhes abre a gaiola. Porque a macacada, alegre e sinistra, imediatamente invadiu a cidade em pânico. Naquela noite ninguém teve sossego. Quando a mocinha distraída se despia para dormir, um macaco estendeu o braço da janela e arrebatou-lhe a camisola. No botequim, os fregueses da cerveja habitual deram com seu lugar ocupado por macacos. A bilheteira do cinema, horrorizada, desmaiara, ante o braço cabeludo que se estendeu através das grades para adquirir uma entrada.

A partida de sinuca foi interrompida porque de súbito despregou-se do teto ao pano verde um macaco e fugiu com a bola sete. Ai de quem descascasse preguiçosamente uma banana! Antes de levá-la à boca um braço de macaco saído não se sabia de onde a surrupiava. No barbeiro, houve um momento em que não restava uma só cadeira vaga: todas ocupadas com macacos. E houve também o célebre macaco em casa de louças, nem um só pires restou intacto. A noite passou assim, em polvorosa. Caçadores improvisados se dispuseram a acabar com a praga – e mais de um esquivo notívago correu risco de levar um tiro nas suas esquivanças, confundido com macaco dentro da noite.
*

No dia seguinte a situação perdurava: não houve aula na escola pública, porque os macacos foram os primeiros a chegar. O sino da igreja badalava freneticamente desde cedo, apinhado de macacos, ainda que o vigário houvesse por bem suspender a missa naquela manhã, porque havia macaco escondido até na sacristia.

Depois, com o correr dos dias e dos macacos, eles foram escasseando. Alguns morreram de fome ou caçados implacavelmente. Outros fugiram para a floresta, outros acabaram mesmo comidos ao jantar, guisados como sugerira o delegado, nas mesas mais pobres. Um ou outro surgia ainda de vez em quando num telhado, esquálido, assustado, com bandeirinha branca pedindo paz à molecada que o perseguia com pedras. Durante muito tempo, porém, sua presença perturbadora pairou no ar da cidade. O professor não chegou a servir-se de nenhum para suas experiências.

Caíra doente, nunca mais pusera os pés na rua, embora durante algum tempo muitos insistissem em visitá-lo pela janela.

Vai um dia, a cidade já em paz, o professor recebe outro telegrama de seu amigo em Manaus:

“Seguiu resto encomenda”.

Não teve dúvidas: assim mesmo doente, saiu de casa imediatamente, direto para a estação, abandonou a cidade para sempre, e nunca mais se ouviu falar nele.

Fonte:
Fernando Sabino. O Homem Nu. RJ: Record, 1984.

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