Um homem estava chegando ao fim de sua vida sem ter comprado uma casa. Na segunda-feira tivera um ataque de angina; perguntou ao médico se era grave e quanto tempo lhe restava de vida.
— Quem sabe? — disse o doutor secamente. — Talvez uma hora, talvez dez anos.
O homem se impressionou e pôs-se a pensar, o que não fazia há longo tempo. Porque estava aposentado. Levantava-se, lia o matutino, à tarde, o vespertino, e à noite olhava televisão, coisas que embalavam suavemente seu espírito, sem mobilizá-lo em excesso. Órfão e solteiro, não tinha maiores emoções, nem cuidados. Vivia num quarto, de pensão, e a senhoria — boa mulher — velava por tudo.
Mas então, vê o homem sua vida extinguir-se. Lavando-se, ele observa a água escoar pelo ralo e pensava:
“É assim.” Enxuga o rosto, penteia-se com cuidado. “Ao menos uma casa.” Qualquer coisa: um chalé, um apartamento minúsculo, um porão que seja. Mas morrer em casa. No seu lar.
O corretor imobiliário mostra-lhe plantas e fotografias.
O homem olha, impaciente. Não sabe escolher. Ignora se precisa de dois quartos ou de três. Uma tem até ar-condicionado, porém ele não está seguro de viver até o verão.
De repente, encontra: “Esta aqui. Fico com ela.” É um velho bangalô de madeira; um fóssil, com suas beiradas coloniais e a pintura desbotada.
“É longe...” — pondera o corretor. Longe!.. O homem sorri. Assina o cheque, pega as chaves, toma nota do endereço e sai.
A tarde vem caindo e o homem move-se entre pessoas. Caminha ligeiro e contente: vai mudar-se para a sua casa. Na praça estão os carroceiros. Conversa com um deles em voz baixa, acerta a hora e a paga.
O carroceiro ajuda-o a transportar malas e quadros. E já é noite fechada quando eles se põem a caminho. O homem está silencioso; nem sequer se despediu da dona da pensão. Limitou-se a dar o endereço ao carroceiro e não proferiu mais palavra.
A carroça avança rangendo pelas ruas desertas. Embalado pelo movimento, o homem cochila, e tem sonhos, visões ou lembranças. Canções da infância ecoam longínquas, ele ouve a mãe chamá-lo para o café. As estrelas cintilam na quieta noite de inverno.
— É aqui — resmunga o carroceiro. O homem olha: é a mesma casa que viu na fotografia. Levam as coisas para dentro. Num impulso, o homem agarra a mão do carroceiro, deseja-lhe felicidades. Tem vontade de convidá-lo para entrar, para que tomem juntos o chá; em casa.
Mas não há chá; nem luz. O carroceiro recebe o pagamento e parte, tossindo.
O homem fecha a porta e dá duas voltas à chave. Acende uma vela, estende o colchão no assoalho empoeirado e deita, cobrindo-se com o sobretudo.
As tábuas estalam, ele ouve sussurros. Estão todos aqui, pai, mãe, tia Júlia e até o avô, com seu risinho irônico.
O homem não tem medo; seu coração é um pedaço de couro seco, onde o sangue já não penetra. Bate automático no ritmo de sempre. E então a vela se apaga, ele dorme e já é manhã.
É manhã; mas o sol não surgiu. Ele abre a janela; uma luz fria e cinzenta infiltra-se na sala. Nem é luz de sol, nem é luz de lua. Mas clareia e ele pode ver.
Uma rua passa diante da casa. Um pedaço de rua, que surge do nevoeiro e termina nele. Não há casas; pelo menos, ele não consegue vê-las. Diante do bangalô há um terreno baldio, onde descansa, meio coberto pela vegetação, o esqueleto enferrujado de um velho Ford.
De repente, um animal pula do terreno baldio para a estrada. É um bicho estranho: parece um rato, mas tem quase o tamanho de um cavalo. “Que bicho será?” — pergunta-se o homem, irritado. No ginásio, gostara muito de zoologia. Estudara em detalhe o ornitorrinco e a zebra; os roedores também. Quisera ser zoólogo, profissão que, como o bom senso sobejamente demonstra, não existe.
Esquisita emoção tem o homem ao ver o curioso espécime. E nem bem se recuperara, quando ouve alguém assobiando. Da neblina vem saindo um homem. Um homem baixo e moreno, com cara de índio. Caminha devagar, batendo nas pedras com um cajado; e assobiando sempre.
— Bom-dia!
O nativo não responde; para, ficou olhando e sorrindo.
Um tanto desconcertado, o homem insiste:
— Mora por aqui?
O outro continua a sorrir; murmurou algumas palavras em idioma
bizarro e desaparece.
“É um idioma bizarro” — pensa o homem. Então, é outro país. Bem
que o corretor lhe avisara! Mas isso fora há longo tempo.
O homem corre para o bangalô, sobe as escadas velozmente (“E não me dá angina!”), galga os degraus do torreão e abre a janelinha. Já a névoa se dissipava e ele pode ver. Rios brilhando ao longo das planícies, lagos piscosos, florestas imensas, picos nevados, vulcões fumegantes. Nos portos, as caravelas atracadas, os marinheiros subindo pelos mastros e soltando as bujarronas. E o mar; muito longe.
Nem se escuta o bramir das vagas contra os rochedos.
O homem suspira.
“Sim, é outro país” — pensa — “e tenho de começar de novo”.
Seriam dez horas da manhã — se é que o tempo ainda existia — e a
temperatura estava agradável.
O homem começa tirando o sobretudo.
— Quem sabe? — disse o doutor secamente. — Talvez uma hora, talvez dez anos.
O homem se impressionou e pôs-se a pensar, o que não fazia há longo tempo. Porque estava aposentado. Levantava-se, lia o matutino, à tarde, o vespertino, e à noite olhava televisão, coisas que embalavam suavemente seu espírito, sem mobilizá-lo em excesso. Órfão e solteiro, não tinha maiores emoções, nem cuidados. Vivia num quarto, de pensão, e a senhoria — boa mulher — velava por tudo.
Mas então, vê o homem sua vida extinguir-se. Lavando-se, ele observa a água escoar pelo ralo e pensava:
“É assim.” Enxuga o rosto, penteia-se com cuidado. “Ao menos uma casa.” Qualquer coisa: um chalé, um apartamento minúsculo, um porão que seja. Mas morrer em casa. No seu lar.
O corretor imobiliário mostra-lhe plantas e fotografias.
O homem olha, impaciente. Não sabe escolher. Ignora se precisa de dois quartos ou de três. Uma tem até ar-condicionado, porém ele não está seguro de viver até o verão.
De repente, encontra: “Esta aqui. Fico com ela.” É um velho bangalô de madeira; um fóssil, com suas beiradas coloniais e a pintura desbotada.
“É longe...” — pondera o corretor. Longe!.. O homem sorri. Assina o cheque, pega as chaves, toma nota do endereço e sai.
A tarde vem caindo e o homem move-se entre pessoas. Caminha ligeiro e contente: vai mudar-se para a sua casa. Na praça estão os carroceiros. Conversa com um deles em voz baixa, acerta a hora e a paga.
O carroceiro ajuda-o a transportar malas e quadros. E já é noite fechada quando eles se põem a caminho. O homem está silencioso; nem sequer se despediu da dona da pensão. Limitou-se a dar o endereço ao carroceiro e não proferiu mais palavra.
A carroça avança rangendo pelas ruas desertas. Embalado pelo movimento, o homem cochila, e tem sonhos, visões ou lembranças. Canções da infância ecoam longínquas, ele ouve a mãe chamá-lo para o café. As estrelas cintilam na quieta noite de inverno.
— É aqui — resmunga o carroceiro. O homem olha: é a mesma casa que viu na fotografia. Levam as coisas para dentro. Num impulso, o homem agarra a mão do carroceiro, deseja-lhe felicidades. Tem vontade de convidá-lo para entrar, para que tomem juntos o chá; em casa.
Mas não há chá; nem luz. O carroceiro recebe o pagamento e parte, tossindo.
O homem fecha a porta e dá duas voltas à chave. Acende uma vela, estende o colchão no assoalho empoeirado e deita, cobrindo-se com o sobretudo.
As tábuas estalam, ele ouve sussurros. Estão todos aqui, pai, mãe, tia Júlia e até o avô, com seu risinho irônico.
O homem não tem medo; seu coração é um pedaço de couro seco, onde o sangue já não penetra. Bate automático no ritmo de sempre. E então a vela se apaga, ele dorme e já é manhã.
É manhã; mas o sol não surgiu. Ele abre a janela; uma luz fria e cinzenta infiltra-se na sala. Nem é luz de sol, nem é luz de lua. Mas clareia e ele pode ver.
Uma rua passa diante da casa. Um pedaço de rua, que surge do nevoeiro e termina nele. Não há casas; pelo menos, ele não consegue vê-las. Diante do bangalô há um terreno baldio, onde descansa, meio coberto pela vegetação, o esqueleto enferrujado de um velho Ford.
De repente, um animal pula do terreno baldio para a estrada. É um bicho estranho: parece um rato, mas tem quase o tamanho de um cavalo. “Que bicho será?” — pergunta-se o homem, irritado. No ginásio, gostara muito de zoologia. Estudara em detalhe o ornitorrinco e a zebra; os roedores também. Quisera ser zoólogo, profissão que, como o bom senso sobejamente demonstra, não existe.
Esquisita emoção tem o homem ao ver o curioso espécime. E nem bem se recuperara, quando ouve alguém assobiando. Da neblina vem saindo um homem. Um homem baixo e moreno, com cara de índio. Caminha devagar, batendo nas pedras com um cajado; e assobiando sempre.
— Bom-dia!
O nativo não responde; para, ficou olhando e sorrindo.
Um tanto desconcertado, o homem insiste:
— Mora por aqui?
O outro continua a sorrir; murmurou algumas palavras em idioma
bizarro e desaparece.
“É um idioma bizarro” — pensa o homem. Então, é outro país. Bem
que o corretor lhe avisara! Mas isso fora há longo tempo.
O homem corre para o bangalô, sobe as escadas velozmente (“E não me dá angina!”), galga os degraus do torreão e abre a janelinha. Já a névoa se dissipava e ele pode ver. Rios brilhando ao longo das planícies, lagos piscosos, florestas imensas, picos nevados, vulcões fumegantes. Nos portos, as caravelas atracadas, os marinheiros subindo pelos mastros e soltando as bujarronas. E o mar; muito longe.
Nem se escuta o bramir das vagas contra os rochedos.
O homem suspira.
“Sim, é outro país” — pensa — “e tenho de começar de novo”.
Seriam dez horas da manhã — se é que o tempo ainda existia — e a
temperatura estava agradável.
O homem começa tirando o sobretudo.
Fonte:
Moacyr Scliar. Melhores contos.
Moacyr Scliar. Melhores contos.
(Seleção de Regina Zilbermann) Edição digital: Global, 2012.
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