quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Mensagem na garrafa – 13 -

CAROLINA RAMOS

Santos/SP

O homem e o cão

Já que o assunto abraça a figura do "melhor amigo do homem", um continho, ainda inédito, fareja aqui por perto à espera de um chamado para saltar no meu colo. Que venha:

O HOMEM E O CÃO

Não era um homem bom, nem mau. Se pendia mais para lá do que para cá, difícil saber. As opiniões dividiam-se. Era antes de tudo um solitário. Um ser estranho. Embora residisse há largo tempo no mesmo local, muito pouco se sabia dele.

“– No fundo, é bom!" - diziam os puros, ao vê-lo acariciar a cabeça de uma criança, ao passar por ela em suas idas e vindas diárias. “– Quem é capaz de sentir ternura pelos pequeninos não pode sertão mau assim!"

Por outro lado, os mais pessimistas e menos crédulos classificavam-no de "coisa ruim", porque não gostava de animais e porque os cachorros mostravam também não gostar dele.

E não dava outra! Cada vez que dobrava a esquina, começava a zoeira. Apareciam cachorros de todos os lados como se a esperar pela sua chegada para dar início à barulheira. Obediente à batuta de um maestro invisível, mal o via, a cachorrada, indócil e impertinente, começava a latir como se Ali-Babá e seus quarenta ladrões resolvessem adentrar o bairro pacato, com disposição de tripudiar sobre a tranquilidade dos moradores.

Vicente, ou Vicentão, decididamente, não gostava de cães. Nem tampouco os cães gostavam dele - premissa que ninguém conseguiria negar. Ele mesmo não fazia questão de disfarçar a idiossincrasia. Era só pôr o pé na rua, para que todo o quarteirão ficasse em polvorosa. Um número crescente de vira-latas logo fazia questão de provar a antipatia canina que o cercava. Quem entenderia? - Um começava a latir. Outro o acompanhava. Mais outro... E assim ia num crescendo até que aquilo acabava num coral onde não faltavam sopranos, contraltos, tenores e nem barítonos, numa gama ensurdecedora de latidos, uivos e grunhidos difíceis de serem calados. Sua chegada, ou saída do bairro, jamais era pacata e despercebida, questão de adrenalina liberada de ambos os lados.

E diariamente a cena se repetia por mais de uma vez.

Enfurecido, Vicentão abaixava-se, apanhava um seixo ou pedra, e acertava o focinho dos mais afoitos que recuavam a respeitável distância, sem deixar de emitir seus impropérios caninos.

O pior de todos eles era aquele cão pastor alemão, belo capa preta, que vinha sempre à frente, latindo mais alto que os demais e acatado como líder.

Um dia, a coisa extrapolou. Um descuido e um vira-latas mais atrevido, abocanhou-lhe a mão. E a raiva incontida daquele homem acuado lançou estilhaços para todos os lados.

Vicentão furioso, a amparar a mão que pingava sangue, abriu violentamente a porta da casa. Saiu dela portando uma espingarda. Visou a malta que ladrava ao portão. Atirou a esmo, mas atirou para acertar.

Num segundo, apenas o líder restava. Os demais, atemorizados, fugiram logo após o primeiro estampido, rabo entre as pernas. O capa preta gania junto à sarjeta, com a pata esfacelada pelo tiro.

Encararam-se - vítima e agressor.

Não havia mágoa nem raiva nos olhos do cão, apenas dor. Vicentão ergueu a arma para tirar uma segunda vez. O ódio acumulado não era mais difuso. Concentrava-se agora, por inteiro, naquele jovem cão de presas alvas e ameaçadoras que agora se arrastava sem agressividade até seus pés como a pedir ajuda.

Sem aparentar ressentimentos, a vítima lambia-lhe os sapatos, ganindo baixinho, dolorosamente. O rastro de sangue da vítima mesclou-se ao sangue que pingava da mão ferida do agressor.

A visão daquele cão rastejante, que sequer fugia à mira tangeu as cordas mais sensíveis daquele homem. Baixou a arma.

Seria fácil... tão fácil liquidar aquele animal, encostando-lhe a arma diretamente na cabeça sem possibilidade de erro. Mas... a coragem deu de ré. Duas lágrimas rolaram pelo rosto curtido daquele homem que ninguém sabia se era bom ou se era mau.

Vicentão voltou-se rápido, retornando sem a arma e trazendo consigo um estojo de primeiros socorros.

O cão deixou-se medicar lambendo, dócil e agradecido, a mão que lhe amenizara a dor.

Por algum tempo, Vicentão teve hóspede em casa, tratado com carinho e regalias. Afeiçoou-se a ele. Afeição recíproca. Chamava-o de amigão e era atendido com efusivos abanos de cauda e lambidelas profusas.

Doía-lhe saber que o cão raçudo teria de ser logo devolvido. Era um exemplar de exposição, com "pedigree", ganhador de algumas medalhas, como afirmavam os anúncios dos jornais que prometiam recompensas a quem o encontrasse.

A nenhum desses anúncios Vicentão dera resposta. Só devolveria o cão quando estivesse perfeitamente restabelecido. Ponto de Honra!

Os cuidados apressaram a cura. O momento da entrega do animal ao legítimo dono, inadiável.

Nem tudo, porém, sairia dentro do desejável. Aquele tiro deixara inevitáveis sequelas.

Sem perda do porte altivo e o olhar de campeão, o capa preta não podia evitar de mancar - a pata ferida perdera altura e uma certa mobilidade.

Em poucas palavras, Vicentão relatou o acontecido ao proprietário do animal, desculpando-se pela demora em devolvê-lo.

- "De que me serve esse cão manquitola?! Acha que gastei pouco para adquiri-lo?! Já que o inutilizou, leve-o de volta. Se o deixar por aqui, mandarei sacrifica-lo. Chega de despesas!"

Vicentão ouvia perplexo. Sentia as proporções do egoísmo humano. O pobre cão, apesar das credenciais, não passava de um objeto descartável, inútil e desprezível, tão só por ser defeituoso. Nada de afeto, nada de considerações, nem mesmo pelas vitórias anteriores.

Graças às circunstâncias, Vicente viera preparado para enfrentar qualquer reação menos branda, já que atentara contra a vida do animal, sendo responsável pelo aleijão. Porém, não contava com o repúdio! Coisa que feria sua sensibilidade de homem, ainda que rude! Concluiu com desgosto que seu amigão bem que merecia outro dono.

Sem conter a emoção, abaixou-se abraçando com ternura o pescoço fidalgo. Levou-o, agora, de volta para casa - todo seu e de alma em festa!

Sim... Agora pertenciam-se. Completavam-se. O nome ligado ao "pedigree" foi relegado. Substituído, simplesmente por Amigão, agora definitivo e com maiúscula.

Vicentão por sua vez, passou a não mais odiar os cães. Nem havia motivos para tal, os demais eram conservados à distância pelas presas ameaçadoras daquele cão pastor manco, mas ainda líder. Aos poucos, todos se integraram à nova família.

Não mais hostilizado, nem solitário, agora mais Vicente do que Vicentão, aquele homem passou a ser aguardado com latidos festivos e escoltado por uma alvoroçada matilha de vira-latas das mais variadas cores e tamanhos.

O amor bem pode levar ao ódio. Por sua vez, poderá o ódio levar ao amor? Personagens espontâneos de um poema já nascido rimado, Vicentão e Amigão por aí andam, e, provam que sim!

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

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