sábado, 28 de outubro de 2023

Carolina Ramos (O meu Sanhaço)

Outro momento emblemático a ser lembrado, foi aquele do encontro com o "Meu sanhaço". Fato descrito no texto que se segue, publicado, sob o mesmo título, no jornal santista - "A Tribuna",

O MEU SANHAÇO

Vez ou outra, até que é bom fechar os olhos ao panorama atual, com suas crises e cataclismos que nos puxam para baixo, e abrir o cofre das lembranças, deixando aflorar aquilo que vier de mais leve.

Desta vez, foi um sanhaço que saiu voando do baú, em forma de crônica escrita há algum tempo, em apoio à surpreendente repercussão alcançada por outra, publicada, e na qual o autor falava de um sanhaço em sua vida. Crônica que acabou por levar-me à tentação de também dizer algo a respeito daquele que eu costumo chamar de o "meu sanhaço".

O interesse demonstrado pela publicação, a enfocar essa avezinha silvestre, veio provar que a sensibilidade humana, mesmo embotada pelas calamidades divulgadas todos os dias, ainda não está de todo morta, admitindo algumas fugas pelas janelas da alma.

Assim sendo, permitam que eu diga que também existiu um sanhaço em minha vida. Azul como um retalho de céu! Foi meu, por espaço mínimo, mas valeu a pena... Como, também, valerá a pena contar o porquê:

Era amplo, o quintal da casa de meus pais. Coisa rara em nossos dias. Casa com pomar, no qual não faltavam galhos acolhedores a permitir escalada. Casa com galinheiro - mais raro ainda! Portanto, com direito a clarinadas de galo pela manhã e pintinhos a bicar o ovo pelo lado de dentro - o milagre da vida!

Coisas que poucas crianças têm hoje o privilégio de testemunhar, fora da área rural. A tal clarinada dos galos talvez que ainda possa ser ouvida nas vizinhanças, vinda de uma dessas casas velhas que paulatinamente cedem espaço aos espigões de concreto, vítimas das pressões financeiras que levam as famílias a se empoleirarem em prédios espigados - alguns tortos, como os da orla santista.

Naquela tarde distante, em que o irrequieto sanhaço entra nesta história, eu chegava ao amplo quintal de minha antiga casa, a meia quadra da praia, onde agora um prédio moderno exibe o garbo. Levava almoço para dois gatos, cujos miados festivos me aguardavam, quando, a meus pés, abate-se um punhado de penas azuis e asas agitadas a despertar pronto interesse dos bichanos ronronantes.

O sanhaço debatia-se em desespero, bico aberto, garganta trancada por um grão de milho, a exigir ação imediata.

Voei atrás de uma pinça! Com a ajuda de Deus, foi extraído o grão assassino que, sem matar a fome, quase matara o faminto.

Bem grande seria aquela fome, uma vez que sanhaços, (frugívoros), alimentam-se de frutas, não de grãos.

Segundos depois, asas ligeiras arrebatariam de mim aquele pássaro renascido, devolvendo-o ao espaço, tão azul quanto ele, num maravilhoso voo de redenção!

Por ter resgatado da asfixia a avezinha indefesa e por tê-la livrado das garras ávidas dos gatos, prontos para saboreá-la como sobremesa, guardo dupla e gratificante sensação de ter salvado, não só uma, mas por duas vezes, aquela preciosa joia emplumada.

Assim sendo, embora nunca mais o tenha visto ou reconhecido, creio ter todo direito de chamar o pequenino herói desta crônica, muito afetivamente, de: - O "Meu sanhaço".

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

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