sábado, 13 de março de 2021

Arquivo Spina 30

 


Fernando Sabino (Um pouco distraído)

Ando um pouco distraído, ultimamente. Alguns amigos mais velhos sorriem, complacentes, e dizem que é isso mesmo, costuma acontecer com a idade, não é distração: é memória fraca mesmo, insuficiência de fosfato.

O diabo é que me lembro cada vez mais de coisas que deveria esquecer: dados inúteis, nomes sem significado, frases idiotas, circunstâncias ridículas, detalhes sem importância. Em compensação, troco o nome das pessoas, confundo fisionomias, ignoro conhecidos, cumprimento desafetos. Nunca sei onde largo objetos de uso e cada saída minha de casa representa meia hora de atraso em aflitiva procura: quede minhas chaves? meus cigarros? meu isqueiro? minha caneta?

Estou convencido de que tais objetos, embora inanimados, têm um pacto secreto com o demônio, para me atormentar: eles se escondem.

Recentemente descobri a maneira infalível de derrotá-los. Ainda há pouco quis acender um cigarro, dei por falta do isqueiro. Em vez de procurá-lo freneticamente, como já fiz tantas vezes, abrindo e fechando gavetas, revirando a casa feito doido, para acabar plantado no meio da sala apalpando os bolsos vazios como um tarado, levantei-me com naturalidade sem olhar para lugar nenhum e fui olimpicamente à cozinha apanhar uma caixa de fósforos.

Ao voltar — eu sabia! — dei com o bichinho ali mesmo, na ponta da mesa, bem diante do meu nariz, a olhar-me desapontado. Tenho a certeza de que ele saiu de seu esconderijo para me espiar.

Até agora estou vencendo: quando eles se escondem, saio de casa sem chaves e bato na porta ao voltar; compro outro maço de cigarros na esquina, uma nova caneta, mais um par de óculos escuros; e não telefono para ninguém até que minha caderneta resolva aparecer. É uma guerra sem tréguas, mas hei de sair vitorioso.

Daí para me considerar um distraído, vai um grande passo. Esse passo quase dei outro dia, ao abrir a porta do quarto e ganhar calmamente o corredor. A empregada me olhava espavorida, mas logo pude considerar justificável a sua estranha reação, dado que me esquecera de vestir as calças.

Alarmado, confidenciei a um amigo este e outros pequenos lapsos que me têm ocorrido, mas ele me consolou de pronto, contando as distrações de um tio seu, perto do qual não passo de mero principiante.

Trata-se de um desses que põem o guarda-chuva na cama e se dependuram no cabide, como manda a anedota. Já saiu à rua com o chapéu da esposa na cabeça. Já cumprimentou o trocador do ônibus quando este lhe estendeu a mão para cobrar a passagem. Já deu parabéns à viúva na hora do velório do marido. Certa noite, recebendo em sua casa uma visita de cerimônia, despertou de um rápido cochilo e se ergueu logo, dizendo para sua mulher: “Vamos, meu bem, que já está ficando tarde.” O contrário se deu quando, recentemente, errou de porta e entrou em casa alheia, estirou-se na poltrona, abriu o jornal e tirou os sapatos, estranhando a empregada que o olhava estupefata: “Empregada nova, hein? Avise à patroa que já cheguei. E traga meus chinelos.”

Contou-me ainda o sobrinho do monstro que sair com um sapato diferente em cada pé, tomar ônibus errado, esquecer dinheiro em casa, são coisas que ele faz quase todos os dias. A mulher fica aflita, temendo que um dia ele esqueça definitivamente o caminho de casa. Perde, em média, um par de óculos por semana e nunca trouxe de volta o mesmo guarda-chuva com que saiu. Já lhe aconteceu tanto se esquecer de almoçar como almoçar duas vezes. Outro dia arranjou para o sobrinho um emprego num escritório de advocacia, para que fosse praticando, enquanto estudante.

— Você sabe — me conta o sobrinho: — O que eu estudo é medicina...

Não, eu não sabia: para dizer a verdade, só agora o estava identificando. Mas não passei recibo — faz parte de minha nova estratégia, para não acabar como o tio dele: dar o dito por não dito, não falar mais no assunto, acender um cigarro. É o que farei agora. Isto é, se achar o cigarro.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Mario Quintana em Prosa e Verso – 15 –


CANÇÃO DA PRIMAVERA
Para Erico Verissimo

Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas.
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.

Catavento enlouqueceu,
Ficou girando, girando.
Em torno do catavento
Dancemos todos em bando.

Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até
Não mais saber-se o motivo...

Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido!
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CANÇÃO DE UM DIA DE VENTO
Para Maurício Rosenblatt

O vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule.

As mãos da menina morta
Estão varadas de luz.
No colo, juntos, refulgem
Coração, âncora e cruz.

Nunca a água foi tão pura...
Quem a teria abençoado?
Nunca o pão de cada dia
Teve um gosto mais sagrado.

E o vento vinha ventando
Pelas cortinas de tule...

Menos um lugar na mesa,
Mais um nome na oração,
Da que consigo levara
Cruz, âncora e coração

(E o vento vinha ventando...)
Daquela de cujas penas
Só os anjos saberão!
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CANÇÃO DE OUTONO
Para Salim Daou

O outono toca realejo
No pátio da minha vida.
Velha canção, sempre a mesma.
Sob a vidraça descida...

Tristeza? Encanto? Desejo?
Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dorido
de carícia a contrapelo...

Partir, ó alma, que dizes?
Colher as horas, em suma...
Mas os caminhos do Outono
Vão dar em parte nenhuma!
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PEQUENA CRÔNICA POLICIAL

Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
A sua grave beleza...
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, da bebida...
Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriam, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no Céu?!
Lá continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldita sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada...
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos!
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CANÇÃO DE BARCO E DE OUVIDO
Para Augusto Meyer

Não quero a negra desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.

Ai esquinas esquecidas...
Ai lampiões de fins de linha...
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?

Que eu vou passando e passando.
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares...

No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.

Fonte:
Mário Quintana. Canções. Porto Alegre: Globo, publicado em 1946.

Ivan Lessa (Hamlet em mímica)

Uma das coisas boas da vida é não ter que ir ao teatro. Mas a gente só descobre isso quando tem de ir ao teatro. Mesmo sem gravata, teatro é muito chato. E depois não descobriram ainda uma solução para os intervalos. Fica todo mundo pelos corredores fazendo cara de quem está achando alguma coisa da peça e dos atores. Tudo porque se julgam na obrigação de ter uma opinião séria a respeito do teatro: as críticas são tão compenetradas, os atores tão sensíveis, ou autores dizem coisas tão sérias... Todo mundo tem medo de dizer: “Mas isso é uma besteirada horrível e não quer dizer absolutamente nada e nunca encontrei na minha vida quem falasse feito esse personagem e se encontrar viro a cara imediatamente!”. Basta uma coisa ocupar um espaço razoável nos jornais, durante determinado período, para todo mundo ter medo de rir. Agora experimente dizer isso para alguém de teatro. Ele é capaz de bater em você. O ator, por exemplo, fala de sua profissão como o dr. Schweitzer falava de seus hospitais na selva, como se houvesse algo de sagrado em se pintar todo e aparecer debaixo de um facho de luz dizendo coisas que ele não entende de uma maneira que todos entendam.

Aqui no Rio ‒ deve ser em todo Brasil ‒ o espetáculo-festinha continua, sem enredo, mas com texto, sem drama, mas com “ão” (todos terminam em “ão”: Opinião, Reação, Perversão). Descobriram que tá dando um dinheirão, embora se recusem a admitir que façam teatro para ganhar a vida, e encarem o dinheiro como uma espécie de moléstia diabólica, altamente contagiosa a necessitar urgentemente de extirpação. Quem sabe para o ano descobrem que o negócio é show (com um pouquinho de bossa nova aqui e ali para dar gosto) em “inho” ou “íssimo”. Os shows em “inho”, naturalmente, ficariam todos a cargo de Vinicius de Moraes; em “íssimo” seriam todos na cidade, bem fora da mão, com o mínimo de conforto possível e na sala de pingue-pongue de grêmios recreativos obscuros. Mas seriam feitos com um sorriso esperto trocado entre participantes e espectadores que em miúdos significaria: Brecht é fogo, hein? A gente ‒ eu e você ‒ mania Brecht, não é mesmo? E repare como ele tem coisas a dizer dentro da atualidade brasileira. Você vai se sentir lisonjeado com aquela intimidade, afinal os realizadores estão incluindo você ‒ dando parceria ‒ na sua sofisticada percepção dramático-sociológica. Você está mal sentado, é verdade, mas a rapadura do conhecimento humano está sendo dividida com você. A equipe é a mais profissional possível (os preços também) do contrário seria impossível montar esse espetáculo com grifos tão amadorísticos.

Ator é um camarada que fica em casa bolando algo inteiramente inútil feito montar Hamlet em mímica. Diretor é aquele outro que dirige esse espetáculo. Empresário é o que o financia. E o pato ‒ que vinha cantando alegremente coén, coén, o pato, meu amigo, é você.

Fonte original:
Diário Carioca.13 dez 1965. Disponível no Portal da Crônica Brasileira.

Dicas: Como Organizar uma Estante de Livros – 1

Organizar uma estante de livros pode ser algo divertido, tanto para o seu lado bibliotecário como para o lado decorador de interiores. Há diversos métodos práticos de classificação de livros, mas poucas alternativas permitem experimentar bastante em aparência e funcionalidade.


Organizando os livros

1. Doe livros que você não queira mais.

É mais fácil abandonar os livros indesejados antes de organizar a coleção inteira. Coloque em caixas aqueles títulos que nunca serão usados em uma nova leitura ou, ainda, pela primeira vez. Você pode vendê-los para livrarias de usados, sebos, casas de caridade, bibliotecas ou páginas da internet como a Estante Virtual.

2. Observe as restrições de tamanho.

Antes de elaborar um plano principal, conheça bem as suas limitações. Algumas estantes têm prateleiras com espaçamento diferente, podendo ser necessário colocar os livros de capa dura em um local e os de capa normal em outro. Livros didáticos ou de arte podem precisar ser empilhados para caber adequadamente.

Divida os seus livros para que se conformem às restrições existentes e trate a cada pilha como uma tarefa de organização isolada.

Livros grandes e pesados devem ser guardados em prateleiras resistentes, geralmente as mais baixas. Evite colocá-los acima da altura da cabeça.

3. Divida as seções de ficção e não ficção.

Tire todos os livros dos lugares e divida-os em grupos de acordo com a natureza dos assuntos. Você geralmente estará com o desejo de ler uma dessas duas categorias e, assim, essa classificação facilitará a sua escolha para uma leitura imediata.

4. Classifique as ficções por gênero ou autor.

Divida uma coleção grande e variada por gênero, mantendo cada livro em uma ou em um grupo separado de prateleiras. Em cada gênero, separe os livros alfabeticamente, pelo último nome do autor. Se você tem apenas duas ou três prateleiras de ficção ou, ainda, se a maior parte dos livros de ficção pertence a um mesmo gênero, classifique-os pelo último nome do autor, sem dividi-los.

Alguns gêneros comuns de ficção incluem mistério, obras literárias, infantojuvenil, fantasia e ficção científica.

5. Classifique os livros de não ficção por tema.

Faça-o em prateleiras separadas.

Observe o quanto você tem, de modo geral, em cada categoria.

Idealmente, você deve manter de uma a três prateleiras por categoria. Pode ser necessário pensar em temas mais amplos ou restritos para chegar a esse resultado:

Há diversos temas de não ficção, incluindo jardinagem, culinária, história, biografia, biologia e livros de referência.

Uma coleção especializada pode ser classificada com diversos subtemas. Por exemplo, uma coleção de história pode ser dividida por continente, a seguir por país e, finalmente, por período.

Se a sua residência tiver muitos livros de não ficção, opte por um método de classificação decimal.

Continua…

Fonte:
Wikihow

sexta-feira, 12 de março de 2021

A. A. De Assis (Como é o céu?)


Para quem não crê na eternidade da alma, ao fim do último suspiro a história acaba, e ponto. Segundo, porém, as estatísticas, mais de noventa por cento das pessoas acreditam que a vida prossegue após a despedida do corpo. Eu acredito.

A questão é saber para onde vamos, e como. Cada qual dá um nome: paraíso, glória, infinito, casa do Pai, reino de Deus. Para a maioria, no entanto, pelo menos na cultura ocidental, o nome mais frequente é céu mesmo. Mas como é o céu?

Difícil achar alguém que em algum momento não tenha dado uma paradinha para pensar nisso. A ideia que geralmente se tem é de que o derradeiro minuto de nossa estada neste planetinha tenha como sequência o imediato ou quase imediato ingresso na vida eterna. Cessam as batidas do coração, começam os voos da alma.

Simples assim? Ou haverá uma triagem para selecionar quem vai para onde?

Cá comigo, penso que a população do céu seja imensa. Do jeito que Deus é bom, sempre dará um jeitinho de abrir as portas do paraíso para o máximo de almas. A gente é que tem mania de condenar. A alegria de Deus é perdoar.

Sim, mas por que o céu se chama céu? Em latim céu é “coelum”, que originalmente significava “brilhante” e depois passou a significar “posição superior”, “localização em cima”. Da mesma família é “excelso” (“Gloria in excelsis Deo” – Glória a Deus nas alturas). O oposto é “inferno” (“infernus”), que significa “inferior”. Se interno é o que está inter (dentro) e externo é o que está exter (fora), inferno é o que está infer (abaixo).

Assim, ir para o “infernus” significaria inferiorizar-se, sofrer um rebaixamento, uma degradação; enquanto ir para o “coelum” (céu) corresponderia a ganhar uma promoção – a plena e eterna alegria, a felicidade máxima. Não se trata, portanto, de ir para um determinado lugar no sentido físico. A alma é imaterial.

“Ir para o inferno” – imagino então – seria morrer em estado de profunda tristeza, sentindo a alma pesada, o coração cheio de culpa, a consciência ardendo de medo e remorso, com o risco de passar toda a eternidade em permanente angústia. Almas amarguradas, sofridas, que precisam de muitas orações. Só a misericórdia de Deus pode curá-las, mediante o perdão.

“Ir para o céu”, por sua vez, seria morrer com a alma limpa, levinha, o coração sereno, a consciência em paz, e assim alcançar uma qualidade superior de existência, angelizar-se, passando a viver, espiritualmente, em estado de graça, na plenitude do amor.

Ninguém sabe quem receberá tal bênção. Só Deus sabe. Porém acredito e repito: Deus é generoso demais e certamente levará para junto dele uma multidão de filhos e filhas.

Pode ser que nem todos os eleitos, ao serem chamados, já estejam tão puros de coração a ponto de entrar diretamente no céu; muitos terão talvez de cumprir algum estágio intermediário. Mas a fé é forte e a esperança é enorme.

Quem sabe a gente um dia se encontre lá?...
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 11-3-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Caldeirão Poético XXXIX

Gustavo Adolfo do Amaral Ornellas

Rio de Janeiro/RJ, 1885 – 1923

IDÍLIO


Sentamo-nos os dois à beira-mar. As brumas
pardacentos dragões que o sol vai devorando –
trepavam pelo céu; e o oceano, calmo e brando,
calçava-nos os pés de alvíssimas espumas.

Várias conchas de cor ele arrastava, em bando,
pela cauda de arminho e de nevadas plumas;
muitas – frações de aurora – iam-se abrindo, e algumas,
quais pedaços do céu, iam na areia entrando.

E enquanto ela, sorrindo, o olhar pousava em tudo,
na alva cauda do mar, nas conchas, no veludo
na arcada celestial cheia de negros véus,

via-lhe o mar na veste, a espuma nos seus folhos,
e ficava admirando a concha dos seus olhos
que vive a enclausurar dois pequeninos céus.
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Divenei Boseli
São Paulo/SP

LUZ


Se a vida fosse apenas um brinquedo
e o medo fosse apenas ilusão,
se o amor fosse despido de segredo
e a dedo se encolhesse uma emoção,

se a voz tivesse a força de um torpedo,
a pena fosse um traço de união
e as deusas, num telúrico bruxedo,
tornassem verdadeira a compreensão,

seriam não apenas operárias
da indústria, do comércio e mesmo agrárias
as tochas geradoras dessa luz

que eu penso poder ver quando a mulher
dispensa “Cirineus” e, como quer,
carrega sem ajuda a própria cruz!
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Djalma Mota
Caicó/RN

SONETO DA REGENERAÇÃO


Sabemos que tem gente para tudo…
Tem até quem não goste de poesia!
Este, certamente de alma vazia,
tem no seu peito um coração miúdo

Poesia é sentimento de alegria.
É a força da expressão e, sobretudo,
transmissora eficaz do conteúdo
da essência que o poeta sempre cria.

Quem se opõe a poesia é desalmado!
Não merece amar e nem ser amado!
É um ser tristonho, de amargor profundo…

Porém, nem sempre é tarde a fazer parte
deste movimento que expressa a arte,
capaz de congraçar o amor no mundo.
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Henriques do Cerro Azul
Fortaleza/CE, 1936 – 2015, Brasília/DF

CONTRASTE

 
Longe de ti, eu te imagino perto:
Vejo esse teu sorriso a todo instante;
Qual se te visse, o coração amante
É um doce ninho ao teu amor aberto.

Perto de ti, te julgo tão distante…
Nem mesmo vejo o teu sorriso incerto;
Com saudade de ti o peito aperto
Relembrando o fulgor do teu semblante.

Também tu és como eu: –  os teus sentidos
Se enganam, como os meus, pelos caminhos…
E assim passamos desapercebidos

Do erro de nossos múltiplos carinhos:
– Quanto mais longe tanto mais unidos,
– Quanto mais juntos tanto mais sozinhos !
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Maria Nascimento S. Carvalho
Rio de Janeiro/RJ

CONTRADIÇÃO


Hoje, mais uma vez, desesperada
por ser injustamente preterida,
vejo que já nasci predestinada
a amar sem nunca ser correspondida …

Mas o que mais me dói, na despedida,
é saber que fui sempre desprezada
porque foste o anjo bom da minha vida
e eu da tua jamais pude ser nada.

Se me pudesse ver da eternidade,
chorando de tristeza e de saudade
pelo amor que no tempo se perdeu,

Carlos Drummond de Andrade me diria :
“ E agora “, como vais viver Maria,
sem o José que achavas que era teu?!
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Oscar Macedo
Santana do Matos/RN, ????

COMPADECIDO…


Não tendo a quem contar as minhas dores,
ao velho mar me dirigi um dia.
Para aumentar porém meus dissabores,
reconheci que ele também sofria.

Confidente dos homens sofredores,
cobriu-se, ao ver-me, de uma espuma fria
e num gesto de quem confidencia
pôs-se a escutar tranquilo os meus clamores.

Contei-lhe tudo, confessei as mágoas,
mais profundas, talvez, que suas águas,
mostrei-lhe enfim meu coração dorido.

E o mar que até então ficara mudo,
ouvindo a triste narração de tudo,
pôs-se a chorar de mim compadecido.

Fontes:
Ademar Macedo. Mensagens Poéticas.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 9: Quase um gesto brusco


DEPOIS DO JANTAR, o Linguado Cara Mal lavada, se acomoda, mais a esposa Mimice, num sofá de canto da sala enorme (um retrátil recentemente adquirido que fica, evidentemente, numa rebarba da peça) e ligam a televisão tela plana na Netflix. Ali, agarradinhos, ambos passam a assistir, ora a uma série nova que acabara de entrar no ar, ora para terminarem os episódios derradeiros de uma trama antiga que ficara pela metade. Era praxe, esta mudança repentina de diversão.

Mandam a Zefa (Zefa é a empregada) para seus aposentos descansar por algumas horas, só voltando à cozinha tempos depois, para o preparo de uma baciada de pipocas regada a copos de refrigerantes estupidamente gelados. Todo santo dia, a mesma cena comum se repete. Mimice, nos braços do amado, aos beijos e dezenas de outras mimosidades, de quando em sempre, renova os carinhos mais acentuados.

Nestes momentos apimentados, ela fecha os olhos, abre os lábios, murmura palavras melosas e, novamente, se prende e se perde, as atenções voltadas à tela do aparelho. De súbito, entretanto, assim do nada, um fato estranho e alheio ao clima, cotidiano se faz gigantesco. Linguado muda os hábitos costumeiros sem prévio aviso e, ato contínuo, pula, como um tarado, na garganta da esposa e começa a lhe apertar o cachaço, ao tempo em que manda, cheio de ira, um aviso à infeliz, coitadinha, totalmente desprevenida e pega de surpresa:

— Meu amor, preste atenção no que vou lhe falar. Se um dia você resolver me trair, se achar um carinha mais novo e melhor que eu, pelo amor de Deus, me avisa. Me avisa, entendeu? Não vou suportar viver com um par de chifres enfeitando a minha testa. Estamos de acordo?

Mimice, num primeiro ímpeto, consegue dar um grito de espanto e terror e custa a se livrar, por mais que tente, das mãos fortes do companheiro. Ele quase a leva às raias do desespero, em face do modo como segue lhe pressionando a frágil goela. Depois de se refazer do susto repentino, e do medo de passar o resto de seus dias comendo capim pela raiz, aos prantos, a metade abundante do Linguado consegue encarar o seu pé de chinelo faltoso e, ainda segurando a cervical, balbucia, quase afônica:

— Que foi que houve, amor? Está desconfiada de mim? Só temos seis meses de casados e já está me tratando como se eu fosse uma rameira vagabunda? Que é isto, amor? Por que trairia você?

Linguado, de repente, volta a apertar, ainda com mais pressão o cangote da sua linda e adorada:

— Só lhe dei um aviso. Passei a visão... Você sentiu a visão? Se ligou na visão? Se um dia resolver me enfeitar a testa, me avisa, me avisa...

Libertada, finalmente dos modos raros e extravagantes do encolerizado e encarniçado cidadão com o qual se unira em matrimônio, a infeliz responde quase num fio de voz:

— Meu bem, por que está agindo assim?

O sujeito, com ar de quem está disposto a levar avante o que dissera e, à sério, no tocante a repetir os carinhos desamorosos e inopinados na gasnate da inimitável criatura, suspira e vocifera:

— Só lhe dei um aviso, minha querida. Fica, portanto, ligada.

Mimice, as vistas arregaladas, o medo ainda tomando conta do rosto, segurando a gorja (nesta altura, mais vermelha que olho de pinguço), solta a voz, ou o que restou dela, e o faz claro, literalmente embargada:

— Amor... Por... Por que... Não me... Por que... Não me disse... Isto mais... Mais cedo?!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (A Intrusa, de Júlia Lopes de Almeida)


Artigo Júlia Lopes de Almeida: O Discurso do Outro, de Elódia Xavier (UFRJ)


O tema da sucessora, isto é, da mulher que substitui a primeira esposa falecida, foi introduzido na literatura brasileira por José de Alencar, em 1877, sob o título sugestivo de “Encarnação”. Trata-se do último romance do painel alencarino e reflete, até certo ponto, as  precárias condições de saúde do autor, que morreria pouco  depois.

Tem, porém, o mérito de revelar um Alencar  "psicólogo", preocupado com o mundo mental de seus personagens. Hermano, o protagonista, é um caso patológico: seu amor por Julieta, a primeira esposa, chega às raias da obsessão e contra isso, Amália, a heroína, empreende uma luta sem tréguas, onde entra, em grande dose, a perspicácia das personagens femininas de Alencar. Amália encarna, para conquistar o marido, os atributos físicos de Julieta, chegando a confundi-lo e acaba salvando-o do incêndio que destrói o passado, tornando possível a plena realização  seu casamento. Alencar, fiel ao princípio romântico do primeiro e único amor, "encarna" Julieta em Amália e, como garantia de fidelidade, dá à filha do novo casal o nome de Julieta.

Carolina Nabuco, em 1934, vai trabalhar este mesmo tema em “A sucessora”, solucionando o conflito entre Marina, a segunda esposa, e Alice, a inesquecível, através da maternidade. A presença atuante de Alice, representada por um retrato pintado a óleo, ameaça a relação de Roberto e Marina, que só se salva graças à gravidez desta; a procriação que a torna superior à outra, mascada pela esterilidade. Carolina Nabuco reduplicou, aqui, os valores dominantes, enaltecendo a mulher pela sua função procriadora, promovida, assim, à "rainha do lar".

Júlia Lopes de Almeida também se ocupou deste tema e o fez bem antes de Carolina Nabuco, com “A intrusa”. É uma obra instigante, porque se presta a mais de uma leitura, como teremos oportunidade de ver; e, embora escrita em 1908 (foi publicada em folhetim no Jornal do Comércio em 1905), pertence ainda ao século XIX, pela visão de mundo apresentada.

Trata-se da história de Argemiro, viúvo, que contrata uma governanta para cuidar da casa e fazer companhia à filha, quando vier visitá-lo, pois a menina Maria mora com os avós numa chácara afastada da cidade. O protagonista conserva-se fiel à primeira esposa, a quem jurou amor eterno no leito de morte. Com a chegada da governanta, conseguida através de um anúncio no jornal, cria-se o conflito, pois a sogra, guardiã da promessa do genro, considera Alice uma ameaça perigosa e entra num processo alucinatório, imaginando sua filha traída e a situação doméstica desestabilizada pela presença da intrusa. Para evitar desastre, muda-se com o marido e a neta, para a casa do genro e, aproveitando a ausência deste, expulsa Alice.

Quando Argemiro retorna, ansioso por usufruir as benesses de sua casa, agora bem administrada pela governanta, que ele não conhece e nem faz questão de conhecer, mas que aprecia através dos benefícios que sua presença lhe proporciona, encontra a situação em pé de guerra. Alice está para partir expulsa pela Baronesa e Feliciano, remanescente da escravidão, pronto a reassumir suas funções, de que fora destituído com a chegada da governanta.

Na trama, destaca-se, ainda, o padre Assunção - é ele que desvela o passado de Alice pondo em evidência todas as suas virtudes - como também pelo segredo que ele esconde - seu amor pela primeira esposa de Argemiro, razão de ser da opção pela batina. Como era de se esperar, a entrevista de Argemiro com Alice para o acerto de contas é o momento decisivo para o desenlace feliz. É a primeira vez que o patrão vê, de fato, a governanta e, estando já cativado pelos serviços prestados, acaba se casando com ela, para alegria da filha e infelicidade da sogra.

Se a trama privilegia o personagem Argemiro e, até certo ponto, o padre Assunção, gira o tempo todo em torno da mulher; é ela que está em questão. A cena inicial apresenta uma reunião semanal em casa de Argemiro: quatro amigos jogam, conversam e, diante da decisão do dono da casa de contratar uma governanta, surgem opiniões diversas sobre a mulher, todas enfatizando o perigo que ela representa. "Feia ou bonita, a mulher é sempre perigosa" diz um dos amigos.

A alta burguesia, aliada a remanescentes aristocráticos, ocupa o espaço social do universo romanesco. Feliciano, criado pela família da Baronesa, é o empregado revoltado com sua condição social e Alice, embora dependa do trabalho para viver, pertence à média burguesia de formação liberal. Os conceitos sobre a mulher fazem parte, portanto, da ideologia dominante, uma vez que Feliciano pouco fala e Alice se resume no tema das conversas, no motivo do conflito. É enaltecida por Argemiro, que usufrui dos serviços prestados, pela menina Maria, que aproveita suas lições, pelo padre Assunção, que conhece sua história e abominada pela Baronesa, que tem ciúmes de seus poderes.

O narrador, frequentemente, se posiciona diante da condição feminina, aceitando e recusando, ao mesmo tempo, os valores vigentes. Pertence à classe dominante uma personagem feminina - a Pedrosa, cuja característica é a determinação com que manipula as pessoas para atingir seus objetivos. Dirige a carreira do marido fazendo-o de deputado, senador e, finalmente ministro. Quando o narrador diz - "Vingava-se do Destino a ter feito mulher" -, revela uma certa revolta pela inferioridade da condição feminina, mas encara esta situação como uma fatalidade. A mulher, como não pode atuar diretamente sobre a realidade, usa estratagemas e pessoas para atingir seus objetivos.

Fica tudo muito ambíguo, pois a personagem é negativa, forçando as pessoas a fazerem o que não querem. De fato, o que predomina é o status quo, onde o "destino de mulher" (para usar uma expressão de Simone de Beauvoir incorporada por Clarice Lispector no conto "Amor") é limitado pelas paredes do lar. A Pedrosa é hospitalizada pelos seus estratagemas e Alice é valorizada pelas virtudes domésticas.

A educação da mulher é outro aspecto abordado pela narrativa, através da formação da menina Maria. Entregue aos descuidados dos avós, morando na chácara, tem uma vida livre e natural, sem as repressões do processo de domesticação. O resultado é uma menina "selvagem" sem instrução; mas, sobretudo, sem o aprendizado das convenções que farão dela uma mulher. Argemiro, preocupado com a formação da filha, concorda com a Baronesa: "A avó tem razão; minha filha já está muito crescida para aqueles modos de rapaz..." (p.28) Ao final da narrativa, domesticada por Alice, a menina Maria terá não só uma boa dicção francesa, mas caberá preparar arranjos florais, fazer crochê e outras prendas consideradas, então, importantes na formação da mulher. Aliás, a narrativa está toda pontuada por preconceitos relativos à condição feminina. O sogro de Argemiro, homem cordato e pacífico, tentando controlar o ciúme doentio da mulher, lhe diz: "Mas és mulher, e vives mais do sentimento que da razão", repetindo um lugar comum da ideologia dominante. Argemiro também incorre neste tipo de preconceito, quando se surpreende diante das contas feitas por Alice: "Os seus cadernos estão numa ordem admirável. Realmente eu nunca imaginei que uma senhora  desse tanto de contas... é um guarda-livros! (p.298)

Concluindo: a partir desta leitura de “A Intrusa”, o que é ser mulher? O modelo a ser tomado é Alice, que aceita passivamente as regras do jogo (anulando-se como pessoa, pois não deve ser vista pelo patrão), zelando pela casa e pela menina Maria quando em visita ao pai. O resultado do seu trabalho torna-se logo evidente criando uma atmosfera acolhedora, que envolve Argemiro e o seduz inapelavelmente.

Como se trata de um viúvo, preso à falecida por uma promessa de amor eterno, o casamento com Alice, ao final, tem um significado especial: representa o prêmio por tantos cuidados. Alice ganha um marido pelos serviços prestados, pois ele mal a conhece; desempenhando a contento o papel de governante, ela se tornou dona da casa e viveram felizes para sempre! Será?

Se esta leitura pela ótica da condição feminina apresenta certas ambiguidades, decorrentes, talvez, do fato de se tratar de uma narrativa de autoria feminina que fala sobre a mulher dentro da perspectiva do século XIX, uma leitura de natureza político-social revela um mundo mais ordenado. Lembrando que a República, decretada há apenas dezesseis anos, ainda vivia uma fase de acertos e desacertos, sobretudo no plano social, pode-se ler A intrusa como uma metáfora deste momento da vida brasileira.

A classe nobre aí representada pela Baronesa e seu marido, muito zelosa de seus poderes já bem desgastados; a Igreja, na figura do padre Assunção, todo bondade e compreensão, além de fiel a seu grande amor pela filha da Baronesa (a aliança nobreza/clero fica patente no final); Feliciano, remanescente do sistema escravocrata, produto espúrio da nobreza, vivendo às custas de um trabalho mal feito e mal pago; Alice, a recém-chegada, representante de uma classe emergente que faz do trabalho serio um instrumento de ascensão social; e, finalmente, Argemiro (de argentum -- prata, metal), o poder econômico, senão cobiçado, pelo menos motivo dos cuidados de todos. Deve se manter fiel á nobreza com quem conviveu durante tanto tempo; mas a incapacidade da Baronesa em educar a menina Maria e a negligência de Feliciano levam o dono da casa a procurar uma governanta, que satisfaça suas necessidades de conforto e tranquilidade. É, portanto, Alice, a "intrusa" sob a ótica da nobreza, quem vai se apossar do poder econômico, pelas virtudes do caráter e do trabalho.

O trabalho é um dado importante dentro da narrativa; e ele que possibilita a ascensão social de Alice  de governanta a dona de casa. No contexto político-social, a República vai favorecer as profissões liberais, valorizando o trabalho ate então restrito às classes desfavorecidas. No contexto feminino, sob a ótica atual, a atividade de Alice é redutora: seu trabalho doméstico a mantém no plano da imanência, não lhe dando possibilidades de transcender. Simone de Beauvoir, no “Segundo Sexo”, aponta para o caráter redutor do trabalho doméstico, sempre voltado para si mesmo. Mas, dentro da perspectiva do século XIX, a realização da mulher estava limitada ao espaço doméstico; por isso, não surpreende que Alice conquiste Argemiro enfeitando a casa, cuidando do jardim e educando sua filha.

A narrativa de Júlia Lopes de Almeida conserva os valores dominantes, apesar de certa consciência feminista latente. Ainda não havia chegado o momento em que a narrativa de autoria feminina se põe a questionar o papel da mulher. Vimos como Carolina Nabuco, em “A sucessora”, soluciona o drama de Marina; ora, nada mais anti-feminista do que valorizar a mulher pela sua capacidade procriadora.

Clarice Lispector, no conto "Uma galinha", aponta, ironicamente, para esta situação, quando a ave fugitiva, após por um ovo', se transforma na "rainha da casa", escapando da panela. De fato, é a obra de Clarice que rompe com o discurso do outro, na narrativa de autoria feminina; ela problematiza o "destino de mulher", evidenciando o que há de convencional e de socialmente condicionado.

Júlia Lopes de Almeida é autora de uma obra rica variada, onde a mulher ocupa sempre o primeiro plano; e “A intrusa” é apenas um exemplo da sua capacidade  criadora, onde a condição feminina é tematizada, respeitando os valores dominantes.

Bibliografia
ALENCAR, José de. Encarnação. In: Romances ilustrados de José de Alencar. v.7. Rio de Janeiro: Jose Olympio; Brasília: INL, 1977.

ALMEIDA, Júlia Lopes de. A intrusa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1908.

LISPECTOR, Clarice. Uma galinha. In: Laços de família. São Paulo: Francisco Alves, 1960.

NABUCO, Carolina. A sucessora. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

Fonte:
Periódicos da UFSC.

quinta-feira, 11 de março de 2021

Adega de Versos 2: Aldenira Silva de Oliveira (Natal/RN)

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 17, 18 e 19

A MUDANÇA


O homem voltou à terra natal e achou tudo mudado. Até a igreja mudara de lugar. Os moradores pareciam ter trocado de nacionalidade, falavam língua incompreensível. O clima também era diferente.

A custo, depois de percorrer avenidas estranhas, que se perdiam no horizonte, topou com um cachorro que também vagava, inquieto, em busca de alguma coisa. Era um velhíssimo animal sem trato, que parou à sua frente.

Os dois se reconheceram: o cão Piloto e seu dono. Ao deixar a cidade, o homem abandonara Piloto, dizendo que voltaria em breve, e nunca mais voltou. O animal inconformado procurava-o por toda parte. E conservava uma identidade que talvez só os cães consigam manter, na Terra mutante.

Piloto farejou longamente o homem, sem abanar o rabo. O homem não se animou a acariciá-lo. Depois, o cão virou as costas e saiu sem destino. O homem pensou em chamá-lo, mas desistiu. Afinal, reconheceu que ele próprio tinha mudado, ou que talvez só ele mudara, e a cidade era a mesma, vista por olhos que tinham esquecido a arte de Ver.
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ANDORINHAS DE ATENAS

As andorinhas de Atenas são descendentes em linha direta daquelas que viviam no tempo de Anacreonte e que pousavam no ombro do poeta quando ele libava nas tavernas.

Esta informação, ministrada ao turista pelo guia, não mereceu crédito. Anacreonte (ponderou o visitante) não era de frequentar tavernas. Sentava-se à mesa dos poderosos e gozava de alta cotação social.

O guia não se impressionou com os conhecimentos biográficos:

— Pois olhe. Essas andorinhas foram trazidas de Samos pelo próprio Anacreonte, que por sinal selecionava as mais gordinhas para almoço.
Era doido por andorinha no espeto.

— Como pode saber disto? — objetou o turista.

— Bem se vê que o senhor não conhece a Antologia palatina.

— Conheço-a, foi objeto da minha tese de mestrado, e não vi no texto uma linha que conte essa fábula.

— Meu caro senhor, peço licença para me retirar. Quem não acredita nas minhas histórias dificilmente levará uma boa impressão de Atenas.

E afastou-se com a maior dignidade.
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A NOITE

Há tantas coisas germinando na noite, que nem sei como enumerá-las. À noite nascem as revoluções, tanto as que vão triunfar como as que só se realizam em pensamento, e são quase todas. Os revolucionários viram-se, inquietos, na cama. E também os que se converterão, pela manhã, a religiões novas. E os amorosos. Análises emocionais levadas ao extremo da tortura arrastam-se pelas horas lentas da noite. Como a noite é rica! A noite é o tempo de não dormir; é o de velar e procurar; de criar mundos.

Demétrio quis prolongar a noite obturando todas as frestas do quarto, para que não entrasse a luz. Luz não entrou. Demétrio gozou da noite plena, continuada, e todos os pensamentos lhe floresciam. Construiu sistemas filosóficos. A escuridão era propícia a teorias políticas. Nenhum crítico foi mais perspicaz do que Demétrio, na literatura e nas artes. Aquela noite era fantástica. Demétrio quis experimentar as sensações de horror, êxtase, humilhação, glória, poder e morte. Morreu, mesmo, no escuro. Tendo sentido a morte em seu interior físico, não pôde mais tirá-la de si. É o único morto, conscientemente morto, de que já ouvi falar nesta vida. A noite é Fantástica.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 2

CLARISSE

 
“Não sei o que é tristeza,” ela me disse...
E a sua boca virginal sorria:
Ninho de estrelas, concha de ambrosia
Cheia de rosas que do Céu caísse!
 
E eu docemente murmurei: Clarisse,
Será possível que tu’alma fria
Ouvindo o choro da Melancolia
O ressábio do fel nunca sentisse?
 
Será possível que o teu seio, rosa,
Nunca embalasse a lágrima formosa?
Ah! não és rosa, pois não tens espinho!
 
E os olhos teus, dois templos de esperança,
Nunca viram sofrer uma criança,
Nunca viram morrer um passarinho!
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NEVER MORE
                                                 A uma falsa amiga

I

Não te perdoo, não, meu tristes olhos
Não mais hei de fitar nos teus, sorrindo:
Jamais minh’alma sobre um mar de escolhos
Há de chamar por ti no anseio infindo.
 
Jamais, jamais, nos delicados folhos
Do coração como n’um ramo lindo,
Há de cantar teu nome entre os abrolhos
A ária gentil de meu sonhar já findo.
 
Não te perdoo, não! E em tardes claras,
Cheias de sonhos e delícias raras,
Quando eu passar à hora do Sol posto:
 
Não rias para mim que sofro e penso,
Deixa-me só neste deserto imenso...
Ah! se eu pudesse nunca ver teu rosto!
 
II
 
Ah! se eu pudesse nunca ver teu rosto!
E nem sequer o som de tua fala
Ouvir de manso à hora do Sol posto
Quando a Tristeza já do Céu resvala!

 Talvez assim o fúnebre desgosto
Que eternamente a alma me avassala
Se transformasse n’um luar de Agosto,
Sonho perene que a Ventura embala.
 
Talvez o riso me voltasse à boca
E se extinguisse essa amargura louca
De tanta dor que a minha vida junca...
 
E, então, os dias de prazer voltassem
E nunca mais os olhos meus chorassem...
Ah! se eu pudesse nunca ver-te, nunca!
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NOITES AMADAS
 
Ó noites claras de lua cheia!
Em vosso seio, noites chorosas,
Minh’alma canta como a sereia,
Vive cantando n’um mar de rosas;
 
Noites queridas que Deus prateia
Com a luz dos sonhos das nebulosas,
Ó noites claras de lua cheia,
Como eu vos amo, noites formosas!
 
Vós sois um rio de luz sagrada
Onde, sonhando, passa embalada
Minha Esperança de mágoas nua...
 
Ó noites claras de lua plena
Que encheis a terra de paz serena,
Como eu vos amo, noites de lua!
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NUNCA MAIS

Que é feito de meu sonho, um sonho puro
Feito de rosa e feito de alabastro,
Quimera que brilhava, como um astro,
Pela noite sem fim do meu futuro?

Que é feito deste sonho, o cofre aberto
Que recebia as gotas de meu pranto,
Bagas de orvalho, folhas de amaranto,
Perdidas na solidão de meu deserto?

Ele passou como uma nuvem passa,
Roçando o azul em flor do firmamento...
Ele partiu, e apenas o tormento,
Sobre minh’alma triste, inda esvoaça.

Meu casto sonho! Lá se foi cantando,
Talvez em busca de uma pátria nova.
Deixou-me o coração como uma cova,
E dentro dele, o meu amor chorando.

Nunca mais voltará... Pois, que lhe importa
Esta morada lúgubre e sombria?
Não pode agasalhar uma alegria
Minh’alma, pobre morta!
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SAUDADE
                       
A ela, a Eugênia, a doce criatura que me chama irmã.
 
Ah! se soubesse quanto sofro e quanto
Longe de ti meu coração padece!
Ah! se soubesses como dói o pranto
Que eternamente de meus olhos desce!
 
Ah! se soubesses!... Não perguntarias
De onde é que vem esta sombria mágoa
Que traz-me o peito cheio de agonias
E os tristes olhos arrasados d’água!
 
Querem que a lira de meus versos cante
Mais esperança e menos amargura,
Que fale em noites de luar errante
E não invoque a pobre noite escura.
 
Mas... como posso eu levar sonhando
A vida inteira n’um anseio infindo,
Se choro mesmo quando estou cantando
Se choro mesmo quando estou sorrindo!
 
Ouve, ó formosa e doce e imaculada,
Visão gentil de eterna fantasia:
Minh’alma é uma saudade desfolhada
De mãe querida sobre a cova fria.
 
Ah! minha mãe! Pois tu não sabes, santa,
Que Ela partiu e me deixou no berço?
Desde esse dia a minha lira canta
Toda a saudade que lhe inspira o verso!
 
Depois que Ela se foi a Mágoa veio
Encher-me o coração de luto e abrolhos.
Eu sofro tanto longe de seu seio,
Eu sofro tanto longe de seus olhos!
 
Ó minha Eugênia! Estrela abençoada
Que iluminas o horror deste deserto...
De teu afeto a chama consagrada
Lança à minh’alma como um pálio aberto.
 
Quando beijares teus filhinhos, pensa
O que seria d’eles sem teus beijos;
E, então, compreenderás a dor imensa,
A amargura cruel destes harpejos!
 
Junta as mãozinhas dos pequenos lírios,
Das criancinhas que tu’alma adora,
E ensina-os a rezar sobre os martírios
E a saudade infinita de quem chora.

Fonte:
Auta de Souza.  Horto. (prefácio de Olavo Bilac). Publicado em 1900.

Moacyr Scliar (Estranhas afinidades)


Poderiam descobrir-se mutuamente, poderiam constatar que haviam sido feitos um para o outro.

Casal se divorcia após descobrir que flertava pela internet. Um casal residente na cidade de Zenica, na Bósnia-Herzegóvina, estava com problemas no casamento. Por causa disto, os dois iniciaram contatos pela internet, e, sem saber de suas identidades, trocaram mensagens e acabaram se apaixonando. Quando a relação se tornou séria, decidiram se encontrar, e então descobriram quem eram. O casal decidiu se separar. Folha Online

QUANDO DESCOBRIRAM QUE, sem saber, estavam se correspondendo pela internet, ficaram, marido e mulher, surpresos, e chocados. Aquilo era algo mais que uma simples coincidência. Era um sinal. Um sinal de que alguma coisa, em ambos, estava profundamente errada. E esta coisa os levara, durante um tempo que não havia sido pequeno, a viver uma dupla existência. Daí as interrogações. Quem sou eu, perguntava-se ele.

Com razão. No cotidiano (não confundir com o nome deste caderno da Folha), ele era uma pessoa nervosa, irascível, de gestos bruscos. Relacionava-se mal com os amigos e conhecidos e costumava descarregar suas frustrações na esposa. Quem sou eu? perguntava-se ela.

Com razão. No cotidiano (não confundir com o nome deste caderno da Folha), ela era uma pessoa nervosa, irascível, de gestos bruscos. Relacionava-se mal com os amigos e conhecidos e costumava descarregar suas frustrações no marido.

Quem sou eu? perguntava-se ele. Com razão. Nas mensagens que enviava pela internet revelava-se, para sua própria surpresa, uma pessoa afetiva, dotada de rica imaginação e capaz de construir uma relação amorosa mesmo à distância, mesmo sem ver aquela a quem se dirigia. Um milagre da internet?

Talvez, mas ele suspeitava que a internet nada mais fizera do que liberar o seu lado bom, o seu lado positivo, o lado que amava a vida e que buscava compartilhar tais sentimentos com alguém. Quem sou eu? perguntava-se ela.

Com razão. Nas mensagens que enviava pela internet revelava-se, para sua própria surpresa, uma pessoa afetiva, dotada de rica imaginação e capaz de construir uma relação amorosa mesmo à distância, mesmo sem ver aquele a quem se dirigia. Um milagre da internet?

Talvez, mas ela suspeitava que a internet nada mais fizera do que liberar o seu lado bom, o seu lado positivo, o lado que amava a vida e que buscava compartilhar tais sentimentos com alguém.

Como é possível, indagava-se ele, inquieto, que eu tenha, por assim dizer, duas vidas? Como é possível que estas duas partes de mim sejam tão diferentes, tão incompatíveis?

O que eu poderia fazer para me tornar uma pessoa só? A quem deveria recorrer para isso? Como é possível, indagava-se ela, inquieta, que eu tenha, por assim dizer, duas vidas? Como é possível que estas duas partes de mim sejam tão diferentes, tão incompatíveis?

O que eu poderia fazer para me tornar uma pessoa só? A quem deveria recorrer para isso? Estas eram as perguntas que se faziam. Claro, poderiam fazer as mesmas perguntas um para o outro. Poderiam descobrir-se mutuamente, poderiam, quem sabe, constatar que, ao fim e ao cabo, haviam sido feitos um para o outro.

Mas um diálogo destes não é fácil. Preferem continuar na internet para ver se encontram o príncipe encantado, a princesa encantada.

Fonte:
Folha de S. Paulo (SP) 29/10/2007, in Academia Brasileira de Letras.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Varal de Trovas 485

 


Leon Eliachar (A vizinha)


Ricardo conheceu Rosita na janela: ela morava no quinto andar, ele no sexto, bem em frente. Toda vez que ele chegava, ela baixava a persiana. Depois de algum tempo, não baixou mais, começou até a sorrir e a cumprimentá-lo. Ricardo fazia sinalzinho com a mão, ela respondia, conversavam por mímica durante horas. À noite, trancava a janela e sumia. Nunca havia uma luz acesa, Ricardo vivia intrigado, não sabia se ela era casada ou solteira, ou viúva ou lá o que fosse. No verão ela ficava de short o dia inteiro e muitas vezes chegou a mudar de roupa e só depois fechava a janela, fingindo ignorar que estava aberta.

Ricardo não resistia: seus olhos eram hóspedes permanentes da vizinha. Fez tudo pra transferir o namoro da janela para a porta, mas não conseguiu. Rosita era muito esquiva, muito enigmática, embora soubesse que ele costumava vê-la completamente nua.

Uma noite, Ricardo decidiu bater à porta, tomou-se de coragem e foi até lá.

Quando tocou a campainha, sentiu que o olho mágico estava se mexendo. Quis desistir, mas a porta se entreabriu e ouviu uma voz de homem:

— Quem é?

Ricardo ficou imobilizado. A porta foi se abrindo, devagarinho, e surgiu o rosto de Rosita. Tomou fôlego.

— Sou eu. Tem alguém aí?

Ela falou:

— Não, estou sozinha.

Ricardo insistiu, meio incrédulo:

— Ouvi uma voz de homem.

Ela esclareceu:

— Sou eu mesma, minha voz é assim.

Ricardo saiu correndo, desceu as escadas de quatro em quatro lances, passou três meses sem aparecer na janela.

Fonte:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. (desenhos e paginação de Fortuna). Publicado em 1965.

Álvares de Azevedo (Poemas Escolhidos) – 5 –


XVI
 
Toda a mortal fadiga adormecia
No silêncio, que a noite convidava;
Nada o sono suavíssimo alterava
Na muda confusão da sombra fria:

Só Fido, que de amor por Lise ardia,
No sossego maior não repousava;
Sentindo o mal, com lágrimas culpava
A sorte; porque dela se partia.

Vê Fido, que o seu bem lhe nega a sorte;
Querer enternecê-na é inútil arte;
Fazer o que ela quer, é rigor forte:

Mas de modo entre as penas se reparte;
Que à Lise rende a alma, a vida à morte:
Por que uma parte alente a outra parte.
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XVII

Deixa, que por um pouco aquele monte
Escute a glória, que a meu peito assiste:
Porque nem sempre lastimoso, e triste
Hei de chorar à margem desta fonte.

Agora, que nem sombra há no horizonte,
Nem o álamo ao zéfiro resiste,
Aquela hora ditosa, em que me viste
Na posse de meu bem, deixa, que conte.

Mas que modo, que acento, que harmonia
Bastante pode ser, gentil pastora,
Para explicar afetos de alegria!

Que hei de dizer, se esta alma, que te adora,
Só costumada às vozes da agonia,
A frase do prazer ainda ignora!
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XVIII

Aquela cinta azul, que o céu estende
A nossa mão esquerda, aquele grito,
Com que está toda a noite o corvo aflito
Dizendo um não sei quê, que não se entende;

Levantar me de um sonho, quando atende
O meu ouvido um mísero conflito,
A tempo, que o voraz lobo maldito
A minha ovelha mais mimosa ofende;

Encontrar a dormir tão preguiçoso
Melampo, o meu fiel, que na manada
Sempre desperto está, sempre ansioso;

Ah! queira Deus, que minta a sorte irada:
Mas de tão triste agouro cuidadoso
Só me lembro de Nise, e de mais nada.
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XIX

Corino, vai buscar aquela ovelha,
Que grita lá no campo, e dormiu fora;
Anda; acorda, pastor; que sai a Aurora:
Como vem tão risonha, e tão vermelha!

Já perdi noutro tempo uma parelha
Por teu respeito; queira Deus, que agora
Não se me vá também est’ outra embora;
Pois não queres ouvir, quem te aconselha.

Que sono será este tão pesado!
Nada responde, nada diz Corino:
Ora em que mãos está meu pobre gado!

Mas ai de mim! que cego desatino.
Como te hei de acusar de descuidado,
Se toda a culpa tua é meu destino!
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XX

Ai de mim! como estou tão descuidado!
Como do meu rebanho assim me esqueço,
Que vendo o trasmalhar no mato espesso,
Em lugar de o tornar, fico pasmado!

Ouço o rumor que faz desaforado
O lobo nos redis; ouço o sucesso
Da ovelha, do pastor; e desconheço
Não menos, do que ao dono, o mesmo gado:

Da fonte dos meus olhos nunca enxuta
A corrente fatal, fico indeciso,
Ao ver, quanto em meu dano se executa.

Um pouco apenas meu pesar suavizo,
Quando nas serras o meu mal se escuta;
Que triste alívio! ah infeliz Daliso!

Fonte:
Álvares de Azevedo. Poesias. 
Livro publicado em 1853.

Monteiro Lobato (As fitas da vida)


PERAMBULÁVAMOS AO SABOR DA FANTASIA, noite adentro, pelas ruas feias do Brás, quando nos empolgou a silhueta escura duma pesada mole tijolácea, com aparência de usina vazia de maquinismos.

— Hospedaria dos Imigrantes — informa o meu amigo.

— É aqui, então...

Paramos a contemplá-la. Era ali a porta do Oeste Paulista, essa Canaã em que o ouro espirra do solo; era ali a antessala da Terra Roxa — essa Califórnia do rubídio, oásis cor de sangue coalhado onde cresce a árvore do Brasil de amanhã, uma coisa um pouco diferente do Brasil de ontem, luso e perro; era ali o ninho da nova raça, liga, amálgama, justaposição de elementos étnicos que temperam o neobandeirante industrial, antijeca, antimodorra, vencedor da vida à moda americana.

Onde pairam os nossos Walt Whitmans, que não veem estes aspectos do país e os não põem em cantos? Que crônica, que poema não daria aquela casa da Esperança e do Sonho! Por ela passaram milhares de criaturas humanas, de todos os países e de todas as raças, miseráveis, sujas, com o estigma das privações impresso nas faces — mas refloridas de esperança ao calor do grande sonho da América. No fundo, heróis, porque só os heróis esperam e sonham.

Emigrar: não pode existir fortaleza maior. Só os fortes atrevem-se a tanto. A miséria do torrão natal cansa-os e eles se atiram à aventura do desconhecido, fiando na paciência dos músculos a vitória da vida. E vencem.

Ninguém, ao vê-los na Hospedaria, promíscuos, humildes, quase muçulmanos na surpresa da terra estranha, imagina o potencial de força neles acumulado, à espera de ambiente propício para explosões magníficas.

Cérebro e braço do progresso americano, gritam o Sésamo às nossas riquezas adormecidas. Estados Unidos, Argentina, São Paulo devem dois terços do que são a essa varredura humana, trazida a granel para aterrar os vazios demográficos das regiões novas. Mal cai no solo novo, transforma-se, floresce, dá de si a apojadura farta com que se aleita a Civilização.

Aquela Hospedaria... Casa do Amanhã, corredor do futuro...

Por ali desfilam, inconscientes, os formadores duma raça nova.

— Dei-me com um antigo diretor desta almanjarra — disse o meu companheiro —, ao qual ouvi muita coisa interessante acontecida cá dentro. Sempre que passo por esta rua, avivam-se-me na memória vários episódios sugestivos, e entre eles um, romântico, patético, que até parece arranjo para terceiro ato de dramalhão lacrimogêneo. O romantismo, meu caro, existe na natureza, não é invenção dos Hugos; e agora que se fez cinema, posso assegurar-te que muitas vezes a vida plagia o cinema escandalosamente.

“Foi em 1906, mais ou menos. Chegara do Ceará, então flagelado pela seca, uma leva de retirantes com destino à lavoura de café, na qual havia um cego, velho de mais de sessenta anos. Na sua categoria dolorosa de indesejável, por que cargas-d’água dera com os costados aqui? Erro de expedição, evidentemente. Retirantes que emigram não merecem grande cuidado dos prepostos ao serviço. Vêm a granel, como carga incômoda que entope o navio e cheira mal. Não são passageiros, mas fardos de couro vivo com carne magra por dentro, a triste carne de trabalho, irmã da carne de canhão.

“Interpelado o cego por um funcionário da Hospedaria, explicou sua presença por engano de despacho. Destinavam-no ao Asilo dos Inválidos da Pátria, no Rio, mas pregaram-lhe às costas a papeleta do ‘Para o eito’ e lá veio. Não tinha olhos para guiar-se, nem teve olhos alheios que o guiassem. Triste destino o dos cacos de gente...

“— Por que para o Asilo dos Inválidos? — perguntou o funcionário. — É
voluntário da Pátria?

“— Sim — respondeu o cego —, fiz cinco anos de guerra no Paraguai e lá apanhei a doença que me pôs a noite nos olhos. Depois que ceguei caí no desamparo. Para que presta um cego? Um gato sarnento vale mais.

“Pausou uns instantes, revirando nas órbitas os olhos esbranquiçados.
Depois:

“— Só havia no mundo um homem capaz de me socorrer: o meu capitão. Mas, esse, perdi-o de vista. Se o encontrasse — tenho a certeza! —, até os olhos me era ele capaz de reviver. Que homem! Minhas desgraças todas vêm de eu ter perdido meu capitão...

“— Não tem família?

“— Tenho uma menina — que não conheço. Quando veio ao mundo, já
meus olhos eram trevas.

“Baixou a cabeça branca, como tomado de súbita amargura.

“— Daria o que me resta de vida para vê-la um instantinho só. Se o meu capitão...

“Não concluiu. Percebera que o interlocutor já estava longe, atendendo ao serviço, e ali ficou, imerso na tristeza infinita da sua noite sem estrelas.

“O incidente, entretanto, impressionara o funcionário, que o levou ao conhecimento do diretor. O diretor da Imigração era nesse tempo o major Carlos, nobre figura de paulista dos bons tempos, providência humanizada daquele departamento. Ao saber que o cego fora um soldado de 70, interessou-se e foi procurá-lo. Encontrou-o imóvel, imerso no seu eterno cismar.

“— Então, meu velho, é verdade que fez a campanha do Paraguai?

“O cego ergueu a cabeça, tocado pela voz amiga.

“— Verdade, sim, meu patrão. Fui soldado do 33.

“— O 33 de São Paulo? Como isso, se você é do Norte? — objetou o major.

“— Verdade, sim, meu patrão. Vim no 13, e logo depois de chegar ao império do Lopes entrei em fogo. Tivemos má sorte. Na batalha de Tuiuti nosso batalhão foi dizimado como milharal em tempo de chuva de pedra. Salvamo-nos eu e mais um punhado de camaradas. Fomos incorporados ao 33 paulista para preenchimento dos claros, e nele fiz o resto da campanha.

“O major Carlos também era veterano do Paraguai, e por coincidência servira no 33. Interessou-se, pois, vivamente pela história do cego, pondo-se a interrogá-lo a fundo.

“— Quem era o seu capitão?

“O cego suspirou.

“— Meu capitão era um homem que se eu o encontrasse de novo até a vista me era capaz de dar! Mas não sei dele, perdi-o — para mal meu...

“— Como se chamava?

“— Capitão Boucault.

“Ao ouvir esse nome o major sentiu eletrizarem-se-lhe as carnes num arrepio intenso; dominou-se, porém, e prosseguiu:

“— Conheci esse capitão. Foi meu companheiro de regimento. Mau homem, por sinal, duro para com os soldados, grosseiro...

“O cego, até ali vergado na atitude humilde do mendigo, ergueu altivamente o busto e, com indignação a fremir na voz, disse com firmeza:

“— Pare aí! Não blasfeme! O capitão Boucault era o mais leal dos homens, amigo, pai do soldado. Perto de mim ninguém o insulta. Conheci-o em todos os momentos, acompanhei-o durante anos como sua ordenança e nunca o vi praticar o menor ato de vileza.

“O tom firme do cego comoveu estranhamente o major. A miséria não conseguira romper no velho soldado as fibras da lealdade, e não há espetáculo mais arrebatador do que o de uma lealdade assim vivedoira até aos limites extremos da desgraça. O major, quase rendido, sobresteve-se por um instante.

Depois, friamente, prosseguiu na experiência.

“— Engana-se, meu caro. O capitão Boucault era um covarde...

Um assomo de cólera transformou as feições do cego. Seus olhos anuviados pela catarata revolveram-se nas órbitas, num horrível esforço para ver a cara do infame detrator. Seus dedos crisparam-se; todo ele se retesou, como fera prestes a desferir o bote. Depois, sentindo pela primeira vez em toda a plenitude a infinita fragilidade dos cegos, recaiu em si, esmagado. A cólera transfez-se-lhe em dor, e a dor assomou-lhe aos olhos sob forma de lágrimas. E foi lacrimejando que murmurou em voz apagada:

“— Não se insulta assim um cego...

“Mal pronunciara estas palavras, sentiu-se apertado nos braços do major, também em lágrimas, que dizia:

“— Abrace, amigo, abrace o seu velho capitão! Sou eu o antigo capitão Boucault...

“Na incerteza, aparvalhado ante o imprevisto desenlace e como receoso de insídia, o cego vacilava.

“— Duvida? — exclamou o major. — Duvida de quem o salvou a nado na passagem do Tebiquari?

“Àquelas palavras mágicas a identificação se fez e, esvanecido de dúvidas, chorando como criança, o cego abraçou-se com os joelhos do major Carlos Boucault, a exclamar num desvario:

“— Achei meu capitão! Achei meu pai! Minhas desgraças se acabaram!...”

“E acabaram-se de fato.

“Metido num hospital sob os auspícios do major, lá sofreu a operação da catarata e readquiriu a vista.

“Que impressão a sua quando lhe tiraram a venda dos olhos! Não se cansava de ‘ver’, de matar as saudades da retina. Foi à janela e sorriu para a luz que inundava a natureza. Sorriu para as árvores, para o céu, para as flores do jardim. Ressurreição!...

“— Eu bem dizia! — exclamava a cada passo. — Eu bem dizia que se encontrasse o meu capitão estava findo o meu martírio. Posso agora ver minha filha! Que felicidade, meu Deus!...

“E lá voltou para a terra dos verdes mares bravios onde canta a jandaia. Voltou a nado — nadando em felicidade. A filha, a filha!...

“— Eu não dizia? Eu não dizia que se encontrasse o meu capitão até a luz dos olhos me havia de voltar?

Fonte:
Monteiro Lobato. Negrinha. 
Conto publicado em 1920

Dicas para Escritores (Como Conhecer os Personagens de Sua História) – 2, final

arte de Robin Wethe Altman (EUA)

(artigo do Portal Wikihow)


‘Entreviste’ seus personagens

1. Escreva cenas curtas que envolvam cada um de seus personagens.

Essas cenas não precisa necessariamente entrar na história; são voltadas apenas para ajudá-lo a conhece-los melhor.

Elas podem envolver outro personagem fazendo perguntas ao personagem que você está tentando conhecer.

Você também pode criar cenas onde é apresentada uma situação interessante a um personagem.

Seu objetivo é determinar o que o personagem faria em seguida, dada sua personalidade.

2. Crie uma "entrevista" com seu personagem.

Uma cena que poderia ser criada é uma em que você (ou um personagem diferente) começa a entrevistar o personagem que você está tentando conhecer.

Por exemplo:

Você pode criar um personagem jornalista para entrevistar o personagem que você está aprendendo mais sobre.

Represente perguntas para o personagem no papel (diretamente ou através da voz de outro personagem).

Responda a estas perguntas na voz e no estilo do personagem o qual
você estiver tentando compreender.

Faça anotações e adicione detalhes a página da biografia conforme você expande mais o personagem.

3. Crie uma situação interessante para o personagem.

Imagine como ele reagiria em diferentes situações.

O que essa reação diz sobre ele ou ela?

Inclua essas características na página do personagem.

É possível usar uma cena de sua vida cotidiana, encontrar uma online ou simplesmente inventar algo, como por exemplo:

"Seu personagem entra em um bar e encontra uma mulher totalmente
nua sentada ao balcão. Ninguém está dando nenhum atenção à ela. O que seu personagem faz a
seguir?".

Outra ideia é:

"Seu personagem está sentado sozinho em um banco. Um carro passa lentamente, e algo é jogado para fora do carro. O que seu personagem faz a seguir?".

Ou:

"Seu personagem está sozinho à noite e ouve um barulho do lado de fora. Ele encontra um gatinho sentado na varanda, obviamente desnutrido. O que seu personagem faz com o gatinho?".

Dicas

Lembre-se, quanto mais reais os personagens parecerem para você, mais facilmente será possível convencer seus leitores que eles são reais.

Peculiaridades e características interessantes tornam seu personagem mais adorável.

Se você for uma pessoa visual, tente desenhar o personagem.

terça-feira, 9 de março de 2021

Arquivo Spina 29 - Ronnaldo de Andrade

 


Rubem Braga (A mulher esperando o homem)


O tema da mulher esperando o homem há muito, muito tempo me fascina. Sei que é velho, já serviu para sonetos, contos, páginas de romance, talvez quadro de pintura, talvez música. E eu que não sei fazer nada disso, sou, entretanto, perseguido por histórias de sua mulher esperando homem, das mais banais às mais terríveis.

Agora mesmo, quando passou o aniversário da revolução húngara, eu me lembrei que entre todos os relatos, alguns dolorosos, horríveis, de gente que fugiu da Hungria, havia o de uma mulher que contou com simplicidade a sua história. E foi o que mais me impressionou quando o li, de madrugada, no meu quarto de hotel em Nova York.

O marido saíra para a revolução e lhe disse que ela não saísse de casa de maneira alguma, esperasse sua volta. Chegou a noite e ele não veio. No outro dia entraram na rua tanques russos atirando, e veio outra vez a noite, e veio outro dia, e veio outra noite, e ela esperando. Cochilava um pouco sentada, acordava assustada julgando ouvir os passos ou a voz dele, até que chegou por um parente a noticia de que ele morrera.

Ela então saiu de casa e – “como eu não tinha mais nada que esperar”, segundo disse – fugiu para a fronteira da Áustria.

Não sei por quê, achei que essa mulher sentiu um alívio ao saber que não devia esperar mais. Acontecera, naturalmente, o pior. Mas a angústia de esperar cessara.

O homem ausente era como um carcereiro que a prendia no lar transformado em câmara de torturas. Ela agora estava desgraçada, mas livre.

Mas não é preciso haver guerra nem nenhum perigo. Nesta madrugada em que escrevo, em Ipanema, quantas mulheres não estarão esperando os maridos? Aquela pequena luz acesa em um edifício distante é talvez o apartamento da mulher insone que já telefonou meio envergonhada para várias casas amigas perguntando pelo marido, que já olhou o relógio vinte vezes e tomou comprimido para dormir, ligou a Rádio Relógio, tentou ler uma revista velha, fumou quase um maço de cigarros.

Não importa que seja a esposa vulgar de um homem vulgar, e que no fim a história do atraso dele seja também completamente vulgar. Neste momento ela é a mulher esperando o homem, e todas as mulheres esperando seus homens se parecem no mundo, e se ligam por invisível túnel de solidariedade que atravessa as madrugadas intermináveis.

Todas: a mulher do pescador, a mulher do aviador, e a do revisor de jornal, a do milionário e a do ministro protestante…

Devia haver um santo especial para proteger a mulher esperando o homem, devia haver uma oração forte para ela rezar; ela está desamparada no centro de um mundo vazio.

Ela começa a odiar os móveis e as paredes. A torneira da pia lhe parece antipática. A geladeira, que aliás precisa ser pintada, é estúpida, porque ronca de repente e depois o silêncio é mais quieto. A cama é insuportável.

Devia haver um número de telefone especial para a mulher que está esperando o homem chamar, reclamar providências, ouvir promessas, insistir, tocar outra vez, xingar, bater com o fone. Devia haver funcionários especiais, capazes de abastecer essa mulher de esperança de quinze em quinze minutos, jurar que todas as providências já foram tomadas, “estamos seguros que dentro de poucos minutos teremos alguma coisa a dizer à senhora…”

E diria que pelo menos no necrotério ele não está, nem no pronto-socorro, nem em delegacia nenhuma, mas não diria isso de uma só vez, e sim através de informes espaçados, que fossem formando etapas de ansiedades, que quadriculassem lentamente a insônia.

A mulher que está esperando o homem está sujeita a muitos perigos entre o ódio e o tédio, o medo, o carinho e a vontade de vingança.

Se um aparelho registrasse tudo o que ela sente e pensa durante a noite insone, e se o homem, no dia seguinte, pudesse tomar conhecimento de tudo, como quem ouve uma gravação numa fita, é possível que ele ficasse pálido, muito pálido.

Porque a mulher que está esperando o homem recebe sempre a visita do Diabo, e conversa com ele. Pode não concordar com o que ele diz, mas conversa com ele.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. 
Publicado em 1960.

Professor Garcia (Quintilhas Decassilábicas Agalopadas) II


Este mundo padece, com certeza,
pela força brutal da rebeldia;
se os humanos pensassem mais um pouco,
este mundo seria menos louco,
mais feliz e sem tanta tirania!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

No meu belo cavalo a galopar
pela estrada, na noite enluarada...
Vou cantando modinhas para a lua
namorando com ela até a rua
onde mora a primeira namorada.
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Quando o orvalho da noite suaviza
o calor, eu começo a perceber,
que uma iua no céu viva e garbosa
tira a roupa e se torna mais formosa
íica linda esperando o amanhecer.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Sou um ponto perdido neste espaço
cujo tempo de mim se distancia,
mas enquanto houver luz lá no horizonte,
certamente o gemido de uma fonte
há de vir consolar-me todo dia.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Toda noite é um bonito fogaréu
com as estrelas mostrando o seu semblante,
uma vai, outra vem, outra rabisca
na fogueira do céu faz pisca-pisca
cada uma mais bela e mais brilhante.

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. 
Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Chico Anysio (Telefonema)


— Eu vou matar a minha mulher.

O detetive pensou ter ouvido errado o que lhe dizia a voz ao telefone. Pediu que repetisse.

— Estou dizendo que vou matar a minha mulher — repetiu a voz, calma demais, para a notícia que dava.

— Quem fala? — inquiriu o detetive.

— Meu nome é Felinto. Acho que o senhor está desacreditando o que ouve, mas garanto que é verdade.

— Bem.. .

— Eu estou telefonando para o distrito porque resolvi matar a minha mulher. Entendeu agora?

Não era admissível o que acontecia. O detetive teve vontade de dizer que não aborrecesse, que deixasse de ser idiota, fosse cuidar de outra coisa, em vez de ficar passando trotes para o distrito.

— Isso pode lhe custar caro — advertiu o policial.

— Não esqueça que eu avisei. Não gostaria de matar minha mulher sem que ela tivesse uma chance. A oportunidade que lhe dou é esta: avisar a polícia meia hora antes. Dentro de trinta minutos ela estará morta.

Antes de desligar, apresentou-se:

— Meu nome é Felinto. Escutou?

— Felinto, Felinto — repetiu o detetive. — Mas por que é que o senhor...

Ele desligara.

Um colega ao lado quis saber do que se tratava. Ao tomar conhecimento se riu à beça. Achou que era brincadeira.

— Mas, e se for verdade?

— Se for verdade é simples. Em 30 minutos você terá, apenas, que localizar, no Rio de Janeiro, um cara chamado Felinto. Como há muitos, você reunirá aqui todos os Felintos que encontrar e fará uma pesquisa. Depois de descobrir quais os Felintos que apresentam motivos para matar a mulher, você...

O detetive concordou que era bobagem tentar qualquer coisa. Mas era evidente que acreditava no telefonema.

A noite, até aquela hora, tinha corrido calma. Seriam onze, de uma segunda-feira, dia de poucos delitos. O detetive foi ao botequim ao lado, tomar um café. Comentou com um amigo o telefonema insólito, e que não conseguia esquecer.

— Deve ter transa de mulher no meio. Só um problema de marido e mulher pode gerar uma atitude assim.

A cabeça do detetive estalou. O colega notou sua palidez. Correu ao distrito e, aflito, discou o número da zona norte que sabia de cor. Aguardou um minuto. Ninguém atendeu.

— Será que ela saiu?

Ficou um tempo sem saber o que fazer. Lembrou de uma amiga de Violeta, a mulher casada com quem tinha encontros vespertinos. Ligou. A amiga respondeu.

— Lúcia?

— Ela. Quem fala?

— Paraíso. Olha...

Contou. Lúcia não sabia de Violeta. O nome do marido dela, sim, sabia: Felinto.

Desligou, lívido. Agora já localizara o Felinto que ia matar e, pior, sabia quem era a mulher que seria morta. Comunicou ao delegado.

— Problema seu. Quem mandou se meter com mulher casada?

Como encontrar Violeta àquela hora? Podia ter ido ao cinema, perto de casa. Não dava tempo de ir ao Cine Melo, fazer suspender a sessão, procurá-la entre os espectadores...

Telefonou mais uma vez pra casa dela. Atendeu um homem.

— Três — zero — quatro — sete — oito...

— Quem fala? — perguntou, antes que ele dissesse o número completo.

— O dono da casa.

— Seu nome, por favor.

— Não interessa o meu nome. Quer falar com quem?

— Dona Violeta, por favor.

— Saiu. Quem quer falar com ela?

Desligou. Tinha 20 minutos para chegar à Penha e ficar na porta do prédio, evitando que Violeta entrasse. O delegado cedeu uma viatura. Com a sirene ligada, a RP zuniu, cantando os pneus.

O homem, do outro lado, sorria. Esperou novo telefonema, que não houve.

— Que pena... não dá mais tempo...

O homem não estava nervoso. Bateram na porta. Era a vizinha.

— Boa noite, Seu Felinto. Dona Violeta está?

— Foi ao cinema.

— Quando ela chegar o senhor pede pra ela dar uma chegada na minha casa? É urgente.

— Se for possível, ela irá, Dona Lúcia.

Ela saiu. Ele abriu a gaveta e tirou um revólver. Um Smith & Wesson, 38. Verificou se as balas estavam no tambor. Fechou o tambor com cuidado. Espalhou no sofá as fotografias que tinha da mulher com o detetive.

Calmo como nunca, ficou sentado, arma apontada para a entrada. Dez minutos depois a porta foi aberta. Dona Violeta entrava, com um sorriso fingido. Não viu a arma, fechava a porta.

— O filme foi péssimo. Alguma novidade?

— Dona Lúcia quer falar com você, mas eu acho que não vai dar tempo.

A viatura da polícia freou, gritante, na rua. um detetive desceu e entrou correndo no prédio. Também não dava tempo.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão (contos). 
Publicado em 1973.