sábado, 13 de abril de 2013

Orlando Woczikosky (Livro de Trovas)

A cantar, a minha vida,
eu canto em qualquer cidade,
mas minha terra querida,
eu não canto sem saudade!

Agora sou nau sem rumo,
Que zarpou da mocidade,
Para encalhar, eu presumo,
No banco duma saudade.

A mãe da gente é uma luz
que brilha, brilha e rebrilha:
dá-nos vida e nos conduz
pela mais sagrada trilha.

Amor que não tem saudade,
é planta que não dá flora;
amor que é amor de verdade,
na saudade é mais amor.

A mulher é diferente
no terreno da emoção:
- O homem diz sim e consente,
ela consente e diz não!

A nossa UBT querida
é meu verdadeiro amor,
faz parte da minha vida
como a um jardim, uma flor.

Às vezes, na multidão,
estou só sem ver ninguém,
porque a maior solidão
é estar longe do meu bem.

A vagar pela cidade
Hoje, bem longe de ti,
Vejo, através da saudade,
O tesouro que perdi.

Beba água mineral
e viva despeocupado,
porque água só faz mal
para quem morre afogado.

Cônscio de que nada valho,
quando te beijo, formosa,
eu sou uma gota de orvalho
que tremeluz numa rosa.

Convidei a minha sogra
pra passear no Butantã:
a velha mordeu a cobra,
e a cobra ficou tantã!

Curitiba, paraíso
Que mil encantos encerra,
Linda Cidade-Sorriso:
– Sorriso da minha terra!

Dezoito anos de idade
Completei no fim da guerra,
No fim da calamidade
Que tingiu de sangue a terra.

Dentro de certas pessoas
há duas forças latentes:
uma que as trona tão boas,
outra que as vira serpentes.

Desde que cedo me acordo,
Até que à noite me deito,
Com saudade te recordo,
Meu único amor perfeito!

Em noites de lua cheia,
no tênue alvor que se espraia,
minha alma foge e vagueia,
perambulando na praia.
 

É nobre quem não exalta
vitória já conquistada,
pois a nobreza mais alta
é vencer sem dizer nada.

É nos olhos que a pimenta
quando toca nos magoa:
quem tem sogra não a aguenta,
quem não tem diz que ela é boa.

Esta saudade é uma luz,
Na noite da minha vida,
O guia que me conduz
À tua imagem, querida.

Eu fui a tua metade
E foste a minha, porque,
Agora, só na saudade
Inteiro a gente se vê!

Eu não gosto de sorteio
Porque a sorte é contra mim:
Talvez porque eu seja feio,
De uma feiura sem fim.

Eu não troco uma jazida
De ouro puro e refinado,
Por uma hora vivida
Na saudade do passado.

Eu nasci pobre na vida,
no entanto sei quanto valho,
pois conheço a dor sentida
dos que tombam no trabalho.

Felicidade é a esperança
que está sempre em nós presente,
mas a gente não a alcança
e ela não alcança a gente!

Flavo sol que as flores pintas
com doce tonalidade,
empresta-me as tuas tintas,
quero pintar a saudade.

Minha avó, que já está morta,
queria tudo perfeito:
até fazendo uma torta,
fazia torta direito.

Não fosse a necessidade
De tanto, tanto te amar,
Sufocaria a saudade
Nas profundezas do mar.

Não me comove a riqueza,
E nem lhe adoro a conquista,
Pois, em saudade e pobreza
Também sou capitalista.

Não te incomodes, querida
Se o meu peito a dor invade,
Pois, são temperos da vida
A dor, o amor e a saudade.

Não vim para te dar um beijo,
vim pra te dar muito mais,
vim dizer que te desejo
O melhor dos teus Natais!

Natal é uma festa linda,
festa de luz e esplendor,
que nos rememora a vinda
De Jesus, Nosso Senhor.
 

Nesta vida de percalços
todo mundo tem defeitos,
mas entre honestos e falsos
todos se julgam perfeitos.

Neste ano, peça a Deus,
que a todos, como a você,
os mesmos tesouros seus,
aos seus semelhantes dê.

Ninguém proíbe que morras
nas tuas loucuras andanças,
mas dirigindo não corras
para não matar as crianças.

No dia dos namorados
fico triste, simplesmente,
por ver que há muitos coitados
sem ter a quem dar presente.

O amor é a coisa mais bela
deste mundo encantador!
E é você quem me revela
toda a beleza do amor!

O amor é igual à comida:
demais, não se dá valor;
quando falta em nossa vida,
dá-se a vida pelo amor!

Oh! doce mundo da infância,
todo em saudade tecido,
a recordar-te a distância,
eu choro por ter crescido.

Para trovar, certamente,
não bastam apenas rimas;
trovador inteligente
faz das trovas obras-primas.

Pela guerra não há glória:
- Perder, vencer, tanto faz!
- A verdadeira vitória,
só se alcança pela paz!

Por mais que hoje louve a vida
dos que fazem bem por lei,
trago n'alma a dor sentida,
dos males que pratiquei.

Pra me esquecer de você,
Tenho rezado à vontade!
Mas não te esqueço, porque
A minha reza é saudade.

Quando a trova justifica
sobejamente a valia,
- Rima pobre ou rima rica -
sempre é grande poesia.

Quando em meus braços te aperto,
todo o infinito sorri,
porque a vida é um céu aberto
quando estou perto de ti.

Quando tu fores velhinha
E eu também, da mesma idade,
Sentirás saudade minha,
Sentirei de ti saudade.

Quem diz que não tem saudade
e se é verdade o que diz,
não teve a felicidade
de já ter sido feliz.

Quem pratica a Medicina
espelhando-se em Jesus,
por certo Deus ilumina
com sua divina Luz.

Quem se afunda na bebida,
para afogar sua mágoa,
descobre, no fim da vida,
que a melhor bebida é água.

Que não valha a minha trova
por nada do que ela exiba,
senão por tudo o que prova
do valor de Curitiba.

Revivendo, na saudade,
a minha casa paterna,
Choro! Mas tenho vontade
que a saudade seja eterna.

Saudade é a lembrança viva
Daquilo que já morreu;
É fogo que inda se ativa
Das cinzas do escombro seu.

Saudade é coisa que nasce
À tona do pensamento,
E, por mais que o tempo passe,
Paramos nesse momento.

Saudade é lua que vaga
Nas sombras do sol do amor;
Quanto mais o sol se apaga,
Mais a lua traz langor.

Saudade é luz matutina
no crepúsculo da gente.
Sol que o passado ilumina
quando escurece o presente.

Se, à noite, chega o negror
E todo o meu ser invade,
Clareia-se o meu amor,
Dentro da luz da saudade.

Se eu de você fico ausente
e alguém os meus olhos vê,
lendo os meus olhos pressente,
no fundo deles, você!

Se partes, fica o desgosto
da minha alma sem a tua,
e eu pareço um rei deposto
perambulando, na rua.

Ser Presidente de Honra
da UBT, é, para mim,
mais do que uma simples honra,
é uma lisonja sem fim.

Sou feliz por te dizer,
em palavra comovida,
que minha vida é um prazer
se há prazer na tua vida.

Trocando sempre teus ares,
foges de mim com prazer;
mas apesar dos pesares
eu não te posso esquecer.

Tudo que é bom, nesta vida,
foge-nos celeremente,
somente a dor mais sentida
fica na vida da gente.

Vermelho igual ao tomate,
meu coração é um bife:
quanto mais alguém lhe bate,
mais amolece o patife.

Fonte:
José Feldman (org, sel, ed.). Trova Brasil numero 10 - abril de 2013

Olivaldo Júnior (Último Lampejo)

Quando se atravessa um deserto, espera-se encontrar um oásis. Ou não.

Uma lâmpada

Ficou acesa, quando devia ter ficado apagada.
Apagou-se, quando devia ter ficado candente.

Uma lâmpada, uma lâmina, uma luz guardada,
não uma busca, uma augusta chance presente.

Ficou à mesa, quando devia ter ficado velada.
Revelou-se, quando devia ter virado semente.

Uma lâmpada, uma lança, não uma luz parada,
mas uma luz, mas uma lua, grande e plangente.

Virou a presa, quando devia ter virado caçada.
Escondeu-se, quando devia ter virado nascente.

Uma lâmpada, uma lã, mina de luz, mais nada.

Moji Guaçu, SP, dezenove de março de 2013.

Cláudia Dimer (Não Serei Fim)

Fonte:
Facebook

Adelto Gonçalves (Ramalho Ortigão: vencido e vencedor da vida)

RAMALHO ORTIGÃO: UM MARCO NA LITERATURA PORTUGUESA, de Ednilo Soárez. 
Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 382 págs., 2008.

I

No Brasil, entre os autores clássicos da Língua Portuguesa, Eça de Queirós (1845-1900) talvez só perca em popularidade para Machado de Assis (1839-1908). Já Ramalho Ortigão (1836-1915), que foi professor de Francês de Eça no Colégio da Lapa, no Porto, e deixou uma obra tão importante quanto a do ex-aluno, ainda é bem pouco conhecido.

Foi para ajudar a reparar esse desconhecimento e “por uma questão de justiça” que Ednilo Soárez, de 69 anos, diretor acadêmico da Faculdade Sete de Setembro, de Fortaleza, e membro da Academia Fortalezense de Letras, escreveu Ramalho Ortigão, um marco na literatura portuguesa (Fortaleza, Expressão Gráfica Editora, 2008), que traz ainda prefácio assinado pelo professor doutor Ernesto Rodrigues, do Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e textos de apresentação de Linhares Filho e Dimas Macedo.

José Duarte Ramalho Ortigão nasceu no Porto e estudou Direito na Universidade de Coimbra. De regresso ao Porto, dedicou-se ao ensino, dando aulas de Francês no Colégio da Lapa, do qual seu pai era diretor. Estabeleceu-se em Lisboa ao ser nomeado oficial da secretaria da Academia das Ciências, começando a colaborar em vários jornais e revistas. Fez várias viagens ao estrangeiro, idas que influenciaram o seu modo de ver Portugal, mas residiu durante a maior parte de sua vida na Calçada dos Caetanos, na freguesia da Lapa, em Lisboa.

Ortigão e Eça foram amigos da vida inteira e, inclusive, escreveram As Farpas, opúsculos de capa alaranjada que começaram a aparecer nas bancas e quiosques de Lisboa a 17 de junho de 1871. Na verdade, a publicação teve a colaboração de Eça de Queirós pelo menos até o número de setembro-outubro de 1872, quando o escritor partiu como cônsul para as Antilhas espanholas.

Já a de Ramalho estender-se-ia ao longo de 11 anos. Para quem quiser conhecer o que foi esta colaboração a quatro mãos dos escritores, diga-se que saiu em 2004 uma nova edição de As Farpas - crônica mensal da política, das letras e dos costumes, de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, livro editado sob coordenação-geral de Maria Filomena Mônica (Cascais, Principia).

Em Ramalho Ortigão, um marco na literatura portuguesa, Soárez traça um retrato da vida literária portuguesa do século XIX, indo do Romantismo, de Alexandre Herculano (1810-1877), ao Realismo, de Eça de Queirós, além de abordar as três principais obras do autor, A Holanda, John Bull e As Farpas, na impossibilidade de analisar uma obra imensa que reúne pelo menos 21 livros, dos quais três em dois volumes. Para o autor, esta obra é um reconhecimento pelo que o povo português fez pela nação brasileira, pois “foi graças a Portugal que temos essa dimensão territorial, essa miscigenação característica e essa diversidade de religiões no Brasil”.

II

Como observa Dimas Macedo num dos textos de apresentação, Ramalho Ortigão, um marco na literatura portuguesa não constitui uma biografia no sentido clássico de uma descrição cronológica dos fatos de uma vida, mas “um tributo à historiografia das ideias que determinaram a formação e a autonomia de voo de Ramalho Ortigão”. É, acrescente-se, mais uma “viagem sentimental”, um pouco à maneira de Laurence Sterne (1813-1868), em que o ensaísta percorre de maneira figurada o Portugal dos séculos XVIII e XIX para explicar como o país caiu na chamada “questão coimbrã” que resultou da reação de uma plêiade de jovens intelectuais, insatisfeitos com a situação de inferioridade à que estava reduzida a nação.

A essa época, Ramalho Ortigão surge, ao lado de Eça de Queirós, Antero de Quental (1842-1891), Teófilo Braga (1843-1924), Oliveira Martins (1845-1894) e Guerra Junqueiro (1850-1923), formados em Coimbra, como um dos espíritos mais lúcidos e representativos deste momento da literatura portuguesa. Foi contra a paralisia à que estaria relegado Portugal que esta geração turbulenta, a chamada Geração de 70, revoltou-se, voltando os olhos especialmente contra Antonio Feliciano de Castilho (1800-1875), que representava todo o status de tradição e autoridade que os jovens de então não queriam mais aceitar. Por isso, o grupo começou a idealizar um programa de reforma social e política.

Como disse Antero de Quental numa das famosas conferências do Cassino, em duzentos anos, a Península não produzira um só único homem superior, que se pudesse colocar ao lado dos grandes criadores da ciência moderna. Para Antero e para os seus companheiros de geração, enquanto as grandes nações européias fixaram sua riqueza na indústria e na agricultura, portugueses e espanhóis, com a conquista, teriam arruinado seu comércio, indústria e agricultura, propiciando as condições para o surgimento de gerações que haviam condenado Portugal ao atraso.

Como mostra Soárez, se essas conferências inflamadas serviram para incendiar o ambiente cultural e político de Lisboa, o foi por pouco tempo porque logo, com a passagem dos anos, esses jovens veriam que não seria possível, por meio da literatura, devolver a Portugal as glórias (ainda que hiperbólicas) das grandes navegações do século XVI. Frustrados, os antigos jovens de Coimbra formaram o grupo dos Vencidos da Vida, fixado em onze componentes porque Eça de Queirós, por pura superstição, não queria que fossem treze nem doze (para evitar qualquer associação com o número considerado fatídico).

III

Munido de vasta bibliografia, Soárez recupera os caminhos cruzados de Ortigão e Eça, detendo-se especialmente no ódio que ambos devotavam à classe política portuguesa do tempo que, como no Brasil, ainda não é muito diferente da de hoje– é bem provável que, tanto lá como cá, seja ainda pior. Lembra o autor que Ortigão criticava os políticos porque usavam frases de efeito, sem consistência prática, além de cometer muitos erros. “O plebeísmo da palavra torna rasteira a opinião. Uma Câmara que fala mal é impossível que proceda bem”, dizia.

Quem quiser, por exemplo, usar esta frase, ao se referir ao Congresso brasileiro, por certo, não agirá mal. Ou ainda esta desta Eça de Queirós: “O corpo legislativo há muitos anos que não legisla. (...) vem apenas a ser uma assembléia muda, sonolenta, ignorante, abanando com a cabeça que sim”.

Soárez, porém, não só louvaminha Ortigão e Eça, pinçando as suas melhores frases aqui e ali. Destaca também que Ortigão não escapou aos preconceitos de seu século, embora tivesse sido um dos espíritos mais lúcidos de uma geração brilhante, deixando-se trair pelo espírito machista, quando afirma: “(...) Nada a prende ao colégio: nem a serenidade da vida – porque é o sangue buliçoso e sacudido dos seus quatorze anos que aspira a repousar: nem o estudo – porque a mulher pela constituição de seu cérebro não adere aos interesses do estudo e da ciência”.

Para Soárez, a vida e a obra de Ramalho Ortigão representam uma síntese perfeita do que foi o século XIX, especialmente com As Farpas, que ocupam um capítulo especial no conjunto de sua produção literária, tal a mestria com que maneja a ironia. Um exemplo pinçado por Soárez é a maneira sarcástica como pinta os diplomatas portugueses de seu tempo, que passariam apertados em razão da pouca disponibilidade do erário régio para sustentá-los no exterior. “(...) E se eles não podem alcançar bons tratados para o país – é porque andam ocupados em arranjar mais roast-beef para o estômago. Se não fossem os jantares da corte e as ceias dos bailes, a posição de diplomata português era insustentável. Lá fora sabe-se isto: e é sempre com terror que os donos da casa vêem entrar o embaixador português, à frente do seu pessoal esfomeado”.

IV

O livro de Soárez foi apresentado no dia 8 de novembro de 2008 na Reitoria da Universidade de Lisboa, em sessão que contou com a participação do professor Ernesto Rodrigues, autor do prefácio, e com a presença do reitor António Nóvoa, e do embaixador do Brasil, Celso Marcos Vieira de Sousa, abrindo o ano acadêmico da instituição.
Soárez é ainda membro da Academia Cearense de Retórica e sócio-efetivo do Instituto do Ceará e da Associação Brasileira de Bibliófilos. Escreveu o livro didático Idéias gerais para uma sala de aula feliz, a biografia Edilson Brasil Soárez, um marco na Educação, o romance A brisa do mar e o ensaio Miscigenação nos Trópicos.

Fonte:
Revista Storm

Alphonse Daudet (A Mula do Papa)

Entre todos os ditados, provérbios ou adágios com que os nossos camponeses da Provença entremeiam suas frases, não conheço nenhum outro mais pitoresco, nem mais original do que este. Numa extensão de quinze léguas ao redor do meu moinho, quando alguém se refere a um homem rancoroso, vingativo, costumam observar-lhe: “Cuidado com esse homem! É como a mula do papa, que guarda sete anos o seu coice”.

Durante muito tempo procurei a origem de tal provérbio, a fim de saber o que significava aquela mula papal e o coice guardado durante sete anos. Ninguém aqui soube esclarecer-me, nem mesmo Francet Mamai, tocador de pífaro, que conhece a fundo o legendário provençal. Francet supõe, como eu, que deve existir, envolvendo o ditado, alguma antiga crônica da região de Avinhão; mas não ouvira falar dela a não ser através do provérbio.

— O senhor só encontrará a explicação na biblioteca das Cigarras — observou o velho tocador de pífaro, rindo-se.

A idéia pareceu-me boa, e como a biblioteca das Cigarras fica perto de casa, lá me encerrei durante oito dias.

É uma maravilhosa biblioteca, admiravelmente instalada, aberta aos poetas dia e noite, e atendida por pequenos bibliotecários munidos de címbalos, que tocam música o tempo todo. Lá passei alguns dias deliciosos. Após uma semana de incessantes buscas, acabei descobrindo o que desejava, isto é, a história da mula e do famoso coice guardado durante sete anos. É um bonito conto, embora um tanto ingênuo, e vou experimentar narrá-lo tal como o li ontem de manhã num manuscrito cor do tempo, que rescendia a alfazema seca e tinha grandes fios da Virgem [1] como sinetes.

Quem não viu Avinhão no tempo dos papas, nada viu. Não havia cidade que se lhe comparasse em animação, no esplendor das festas. De manhã à noite eram procissões, peregrinações, ruas juncadas de flores, forradas com longas tapeçarias, recepções de cardeais que chegavam pelo Ródano, flâmulas ao vento, galeras embandeiradas, soldados do papa que cantavam nas praças em latim, matracas dos irmãos mendicantes; depois, nas casas que se comprimiam, zumbindo em redor do grande palácio papal como abelhas em torno da colméia, ressoavam, de cima a baixo, o tique-taque dos teares de renda, o vaivém das lançadeiras tecendo o ouro das casulas, os pequenos martelos dos cinzeladores de galhetas, as pranchas de cordas afinadas nas oficinas dos fabricantes de instrumentos musicais, os cânticos das fiandeiras; e, acima de tudo, o badalar dos sinos e o rumor dos tamborins que vinha lá do outro lado da ponte. Pois entre nós, quando o povo está satisfeito, precisa dançar; e como nesse tempo as ruas da cidade eram demasiadamente estreitas para servir de palco à farândola, tocadores de pífaros e de tamborins postavam-se na ponte de Avinhão, e à fresca aragem do Ródano o povo dançava.

Ah! que bons tempos! que ditosa cidade! Alabardas que não feriam, prisões do Estado onde o vinho era colocado para refrescar. Nem carestia, nem guerra! Aí está como os papas do condado sabiam governar o povo; e aí está por que o povo tanto lamentou a ausência deles!

Havia sobretudo um, o bom velho chamado Bonifácio... Oh! quantas lágrimas foram derramadas em Avinhão, quando ele morreu! Era um príncipe tão amável, tão agradável! De cima de sua mula ele sorria para todos. E quando alguém passava a seu lado — fosse um pobre e insignificante apanhador de garança ou o importante juiz da cidade — dava-lhe a bênção com tanta cortesia! Um verdadeiro papa de Yvetot [2], mas de um Yvetot provinciano, com algo malicioso no riso, um galhinho de manjerona no barrete e nenhuma Jeanneton [3]. A única preferência que se lhe conhecia era por sua vinha — uma pequena vinha que plantara com suas próprias mãos, a três léguas de Avinhão, entre as murtas de Châteauneuf.

Todos os domingos, ao sair das vésperas, o digno homem ia prestar-lhe homenagem; e lá, sentado ao sol, ao lado da mula, rodeado pelos cardeais estendidos junto aos troncos, ele mandava desarrolhar uma garrafa de vinho recente, do belo vinho cor de rubi, que foi chamado mais tarde Châteauneuf-du-Pape, e saboreava-o aos pequenos goles, fitando a vinha com ternura. Ao declinar do dia, esvaziada a garrafa, ele regressava alegremente para a cidade, seguido pelo capítulo. Quando passava pela ponte de Avinhão, no meio dos tambores e das farândolas, a mula, animada pela música, tomava uma andadura miúda e saltitante, enquanto ele marcava o compasso da dança com o barrete, o que muito escandalizava os cardeais, mas fazia o povo exclamar: “Ah! que bom príncipe! Ah! que ótimo Papa!”

Depois da vinha de Châteauneuf, o que o papa mais amava no mundo era a sua mula. Bonifácio era louco pelo animal. Todas as noites, antes de deitar-se, ia verificar se o estábulo estava bem fechado, se faltava alguma coisa na manjedoura, e nunca se levantava da mesa sem que mandasse preparar sob as suas vistas uma grande tigela de vinho, à francesa, com bastante açúcar e drogas odoríferas; e malgrado as observações dos cardeais, ele mesmo a levava para a mula.

É preciso observar que o animal merecia tais cuidados. Era uma bonita mula negra, mosqueada de vermelho, passo firme, pêlo brilhante, ancas largas e cheias, que sabia erguer altivamente a cabecinha fina, toda ajaezada de borlas, de laços, de guizos de prata e de fitas. Além disso, mais mansa do que um anjo, com olhos ingênuos e duas longas orelhas sempre em movimento, que lhe davam um ar bonacheirão. Avinhão inteira a respeitava, e quando ela passava pelas ruas não havia cortesias que não recebesse; pois todos sabiam que era a maneira mais segura de obterem favores na corte, e que, com o seu ar inocente, a mula do papa conduzira mais de uma pessoa aos braços da fortuna; aí estão Tistet Védène e sua prodigiosa aventura, para prová-lo.

No início, Tistet Védène era um rapazinho atrevido, a quem o próprio pai, o ourives Guy de Védène, fora obrigado a expulsar de casa, porque se recusava a trabalhar e desencaminhava os aprendizes. Durante seis meses viram-no perambular por todos os cantos de Avinhão, mas principalmente pelos lados do palácio papal; pois havia muito tempo que o patife deitara as vistas sobre a mula do papa, e veremos com que intenções malignas. Certo dia, quando Sua Santidade passeava sozinho no seu animal, sob os muros do pátio, Tistet Védène aborda-o e observa, juntando as mãos num gesto de admiração:

— Ah, meu Deus! Grande papa, que bela mula vós possuís! Permiti que a olhe um pouco... Ah! meu papa, que linda mula! nem o imperador da Alemanha tem outra igual!

E Tistet acariciava o animal e falava-lhe suavemente, como se fosse uma moça:

— Minha jóia, meu tesouro, minha pérola preciosa.

E o bom papa, comovido, dizia consigo mesmo: “Que bom rapazinho! Como é amável com a minha mula!”

E sabem o que aconteceu no dia seguinte? Tistet Védène trocou o velho paletó amarelo por uma alva de rendas, uma opa de seda violeta, sapatos de fivelas, e entrou no coro papal, onde antes dele só os filhos dos nobres e os sobrinhos dos cardeais tinham sido recebidos. Vejam só quanto pode a intriga!

Mas Tistet não se deu por satisfeito. Depois de entrar no serviço do papa, o malandro continuou a fazer o seu jogo, que tão bons resultados produzira. Insolente com todos, só reservava suas atenções e cortesias para a mula. Era sempre visto nos pátios do palácio, tendo nas mãos um punhado de aveia ou um molho de feno, cujas pencas cor-de-rosa delicadamente ele sacudia, enquanto fitava o balcão do Santo Padre, como se dissesse: “Então? Para quem é isso?”

Tanto fez, que finalmente o bom papa, que se sentia envelhecer, lhe deu a incumbência de cuidar do estábulo e de levar a tigela de vinho à francesa para a mula. Mas dessa vez os cardeais não acharam graça.

Também a mula não achou graça... Agora, à hora do vinho, ela assistia à chegada de cinco ou seis pequenos sacristães do coro papal, que se metiam no meio da palha com suas opas e suas rendas. Pouco depois, um cheiro gostoso de caramelo e de especiarias enchia o estábulo, e Tistet Védène surgia trazendo com precaução a tigela de vinho à francesa. Então começava o martírio do pobre animal.

Tinham a crueldade de levar à sua manjedoura o vinho perfumado, que ela tanto apreciava, e de fazê-la cheirá-lo; depois, quando as suas narinas se impregnavam do aroma — adeus! O belo líquido cor de chamas rosadas descia inteirinho pela garganta daqueles patifes. Se apenas se limitassem a roubar-lhe o vinho... Porém, depois de terem bebido, os pequenos sacristães se transformavam em verdadeiros demônios: um lhe puxava as orelhas; o outro, a cauda; Quiquet montava-lhe nas costas; Béluguet punha-lhe o barrete na cabeça. E nenhum desses malandros imaginava que com um golpe de flanco, ou um coice, o pacífico animal poderia enviá-los à Estrela Polar, e até mais longe. Nada disso! Nunca se esquecia de que era a mula do papa, a mula das bênçãos e das indulgências.

Por mais que a atormentassem, ela não se zangava. Se guardava rancor, era apenas contra Tistet Védène. Quando percebia que este se encontrava à sua retaguarda, sentia cócegas no casco, e na verdade sobravam-lhe motivos para tanto. Aquele tratante Tistet pregava-lhe bem boas peças. Tinha invenções cruéis depois de beber... Pois não se resolveu um dia a obrigá-la a subir ao pequeno campanário do coro, lá em cima, bem em cima, no alto do palácio?

O fato que lhes relato não é anedota, dois mil provençais presenciaram-no. Imaginem o terror da desgraçada mula quando, após ter dado voltas durante uma hora inteira numa escada de caracol, quase às cegas, e tendo subido não sei quantos degraus, subitamente se encontrou numa plataforma ofuscante de luz. A mil pés abaixo, avistou um Avinhão fantástico, onde as barracas do mercado não eram maiores do que avelãs; os soldados do papa, postados diante da caserna, pareciam formigas vermelhas; e lá longe, sobre um fio de prata, equilibrava-se uma ponte microscópica, cheia de gente que dançava, dançava... Ah! Pobre animal! que pânico!

Todos os vidros do palácio tremeram com o berro que soltou.

— Que aconteceu? que lhe fizeram? — exclamou o bom papa, precipitando-se para o balcão.

Tistet Védène, que já regressara ao pátio, fingiu que chorava e arrancava os cabelos:

— Ah! Grande papa, o que aconteceu! Aconteceu que a vossa mula... Meu Deus! que será de nós?... Aconteceu que a vossa mula subiu ao campanário.

— Sozinha?!

— Sozinha, sim, grande papa... Vede! Olhai para cima. Não vedes aparecendo lá a ponta de suas orelhas? Dir-se-iam duas andorinhas!

— Misericórdia! — exclamou o pobre papa, erguendo os olhos. — Mas ela enlouqueceu! vai matar-se... Não quer descer daí, minha pobre!...

Ai dela! Não pedia outra coisa senão descer. Mas como fazê-lo? Não podia pensar na escada. Fora-lhe possível subir por uma coisa daquelas, mas se fosse descer, arriscava-se a quebrar cem vezes as pernas. A pobre mula afligia-se, e enquanto vagueava pela plataforma com seus grandes olhos cheios de vertigem, pensava em Tistet Védène: “Ah bandido! Se eu escapar desta, que coice você levará amanhã cedo!”

A idéia do coice dava-lhe um pouco de firmeza às pernas, sem o que ela não se agüentaria. Enfim, depois de um sem-número de peripécias, conseguiram retirá-la lá de cima. Foi preciso descê-la com um guindaste, cordas, uma padiola. E imaginem que humilhação para a mula de um papa ficar suspensa de tamanha altura, agitando as patas no vácuo, como um besouro na ponta de um fio... E Avinhão inteira que a contemplava!

O infeliz animal não dormiu nessa noite. Estava sob a impressão de continuar a dar voltas na maldita plataforma, enquanto a cidade se ria lá embaixo. E também pensava no infame Tistet Védène e no belo coice com que ela o brindaria na manhã seguinte. Ah! meus amigos, que coice! Até em Pampérigouste avistariam a fumaça.

Ora, enquanto a mula preparava a Tistet Védène uma bela recepção no estábulo, sabem o que fazia ele? Descia o Ródano numa galera papal, cantando, em direção à corte de Nápoles, em companhia dos jovens nobres que a cidade enviava todos os anos para junto da rainha Jeanne, a fim de exercitarem-se na diplomacia e nas boas maneiras. Tistet não era nobre, mas o papa fazia questão de recompensá-lo pelos cuidados que prodigalizava à mula, e principalmente pela atividade que ele desenvolvera durante o salvamento da mesma.

Bem que a mula ficou desapontada no dia seguinte. “Ah! bandido! Desconfiou de alguma coisa! — ponderou ela, sacudindo violentamente os seus guizos. — Não importa, malvado! Ao regressar, você encontrará o seu coice. Vou guardá-lo”. E assim o fez.

Depois da partida de Tistet, a mula da papa voltou à sua rotina tranqüila e retomou os antigos hábitos. Nem Quiquet nem Béluguet apareciam na estrebaria. Os belos dias do vinho à francesa retornaram, e com eles o bom humor, as longas sestas e o passinho de gavota ao passar pela ponte de Avinhão. Contudo, após a aventura do campanário, a cidade esfriara um pouco em relação à mula. Cochichavam quando ela passava, os velhos balançavam a cabeça e as crianças riam, apontando o campanário. O próprio papa não depositava em sua amiga a mesma confiança. Quando se permitia um cochilo às suas costas, ao regressar da vinha, fazia-o com certa prevenção: “Se eu fosse acordar lá em cima, na plataforma!” A mula observava tudo isso e sofria, sem nada dizer. Apenas, quando pronunciavam na sua frente o nome de Tistet Védène, suas compridas orelhas estremeciam, e com um risinho mau ela aguçava no calçamento o ferro dos seus cascos.

Assim transcorreram sete anos. Ao cabo desse tempo, finalmente Tistet Védène regressou da corte de Nápoles. Ainda não concluíra o seu estágio, mas soubera que o primeiro mostardeiro do papa acabava de falecer subitamente, em Avinhão. E como o posto lhe parecera bom, embarcara às pressas a fim de incorporar-se à fila dos candidatos.

Quando o intrigante Védène entrou no salão do palácio, o santo padre mal o reconheceu, tanto ele crescera e encorpara. É preciso dizer que o bom papa envelhecera bastante, e já não enxergava tão bem. Tistet não se intimidou:

— Como! Santo papa, não me reconheceis? Eu, Tistet Védène...

— Védène?

— Sim, bem sabeis... O rapaz que levava o vinho francês à vossa mula.

— Ah! sim... sim... lembro-me. Um bom rapazinho, esse Tistet Védène. E agora, que desejais de nós?

— Oh! pouca coisa, santo papa. Vim pedir-vos... A propósito, a vossa mula ainda está viva? E vai bem? Ah! tanto melhor! Eu vinha pedir-vos o lugar do primeiro mostardeiro, que acaba de morrer.

— Primeiro mostardeiro, tu! Mas és muito jovem. Que idade tens?

— Vinte anos e dois meses, ilustre pontífice, justamente cinco anos mais que a vossa mula... Ah! senhor, que bom animal! Se soubésseis como eu gostava da vossa mula, como senti saudades dela na Itália! Ser-me-á permitido vê-la?

— Sim, meu filho, tu a verás — respondeu o bom papa, comovido. — E já que estimas tanto esse bravo animal, não quero mais que vivas longe dele. De hoje em diante ficas a meu serviço na qualidade de primeiro mostardeiro. Meus cardeais protestarão, mas tanto pior, estou habituado. Vem procurar-nos amanhã, à saída das vésperas. Nós te entregaremos as insígnias da tua nova dignidade, na presença de nosso capítulo. Depois eu te levarei para ver a mula, e nos acompanharás à vinha. Ah! ah! ótimo!

Não preciso dizer-lhes se Tistet Védène estava contente ao sair do salão, nem com que impaciência aguardou a cerimônia do dia seguinte. Contudo, havia no palácio alguém mais feliz e mais impaciente do que ele: era a mula. Desde o regresso de Védène até as vésperas do dia seguinte, o terrível animal não cessou de empanturrar-se de aveia e de bater na parede com os cascos traseiros. Também se preparava para a cerimônia.

E no dia seguinte, após terem sido rezadas as vésperas, Tistet Védène fez sua entrada no pátio do palácio papal. Todo o alto clero se encontrava presente: os cardeais em trajes vermelhos, o advogado do diabo vestido de veludo negro, os abades do convento com suas pequenas mitras, os provedores de Saint-Agricol, o coro com opas violetas, e também confrarias de penitentes, os eremitas do monte Ventoux com suas fisionomias fechadas, o pequeno clérigo atrás carregando a campainha, os irmãos flageladores, nus até a cintura, os sacristães vestidos com togas de juízes — todas, todos, até os doadores de água benta, e aquele que acende, e aquele que apaga, não faltava um só. Ah! Era uma bela ordenação! Sinos, foguetes, sol, música, e sempre aqueles danados tamborins que marcavam a dança, lá na ponte de Avinhão.

Quando Védène apareceu no meio da assembléia, seu garbo e sua bela presença fizeram perpassar um murmúrio de admiração. Era um magnífico provençal, dos louros, com longos cabelos de pontas frisadas e uma pequena barba caprichosa, que parecia feita com as lascas de metal precioso caídas do buril de seu pai, o ourives. Corriam rumores de que os dedos da rainha Joana tinham brincado algumas vezes com aquela barba loura; e efetivamente o senhor de Védène ostentava o ar glorioso e o olhar distraído dos homens que foram amados por rainhas. Nesse dia, a fim de honrar a sua terra, ele substituíra os trajes napolitanos por uma jaqueta com debruns cor-de-rosa, à provençal, e no seu chapéu tremulava uma grande pena de íbis de Camargue.

Depois de ter entrado, o primeiro mostardeiro cumprimentou com galhardia e dirigiu-se para o alto patamar onde o papa o aguardava para entregar-lhe as insígnias da sua nova dignidade: a colher de buxo amarelo e o hábito cor de açafrão. A mula permanecera ao pé da escada, toda ajaezada e pronta para seguir para a vinha. Ao passar perto dela, Tistet Védène sorriu-lhe amavelmente e deteve-se para dar-lhe dois ou três tapinhas amigáveis nas costas, enquanto observava com o canto do olho se o papa o estava vendo. O momento era propício. A mula tomou impulso: “Toma, bandido! Faz sete anos que o guardo para você!”

E deu-lhe um coice tão violento, tão terrível, que até em Pampérigouste foi vista a fumaça, um turbilhão de fumaça loura onde voltejava uma pena de íbis, tudo quanto restava do infortunado Tistet Védène.

Habitualmente os coices das mulas não costumam ser tão fulminantes. Mas era uma mula papal, e além disso, pensem bem: ela o guardava havia sete anos!
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NOTAS:
1 - Fils da la Vierge — fios escapados do fuso de Maria, segundo a imaginação popular. São produzidos por diversas aranhas nômades e que não fazem ninhos.
2 - Yvetot — vila da França que foi antigamente capital de um pequeno reino. Em virtude de uma canção popular, o rei de Yvetot ficou na literatura como o tipo do rei bonacheirão.
3 - Jeanneton — termo de gíria. Significa criada de albergue, de costumes fáceis.

Fonte:
Alphonse Daudet, Lettres de mon moulin. In http://contosbemcontados.blogspot.com.br/

Lino Mendes (Baú de Memórias: Quinta-Feira da Ascenção)

É uma “data” que ainda se festeja em várias terras do País, creio  que há dois anos em Lisboa, os “ raminhos de esperança”, assim lhe chamavam, eram vendidos a um euro e meio.”Trata-se de um ritual pagão e religioso, que tem como objectivo benzer os primeiros frutos primaveris e levar para casa um ramo florido que simboliza a fartura e a harmonia para a família”(DN).

Em tempos idos, também por aqui a “Quinta-feira da Ascensão” era tempo de festa com piqueniques e bailaricos, sendo o Pinhal das Lourenças um dos lugares de que me falam. E, claro , na parte da tarde toda a minha gente ia apanhar a espiga. Hoje, alguém se lamentava, é que tudo acabou…

Este dia de quinta-feira, corresponde ao da Ascensão de Cristo aos Céus quarenta dias após a ressurreição, por isso o dito popular de que “ da Páscoa à Ascensão quarenta dias vão”. Não se sabe no entanto, quando a mesma passou a coincidir com o “dia da espiga”, determinando que ao fator litúrgico se aliasse a componente pagã. Litúrgico , porque então e nesse dia, nos templos católicos e do meio dia à uma se celebrava a reza da hora; pagã, por toda uma série de actividades ligadas ao campo e ao camponês para quem, segundo Mircea Eliade (antropólogo e historiador) a terra era entendida como a Grande Mãe.

Há hábitos que se vêm perdendo com o decorrer dos tempos e funcionavam mesmo com um sentido apelativo à protecção, como colocar ramos de oliveira por cima das portas e das janelas para dar sorte, para combater as trovoadas. Hábitos que hoje seria interessante recordar e manter como tradição, acredite-se ou não, por exemplo, que” quem tem trigo da Ascensão todo o ano terá pão”.

“Tradicionalmente, no Alentejo deve-se colher o Ramo da Espiga do meio-dia à uma hora da tarde e consta que o ramo seja constituído por cinco folhas de oliveira, cinco espigas de trigo e o maior número possível de flores amarelas e brancas. Por vezes, e segundo as devoções de cada um, esta “apanha” era acompanhada pelo rezar de cinco Pai-Nossos, cinco Avé Marias e cinco Glórias, ”sendo “ que o número e a espécie de elementos constituintes do Ramo varia de terra para terra, de grupo para grupo, de família para família”. (Rui Arimateia—Diário do Sul-7/5/97).

Em MONTARGIL, e tanto quanto sabemos, para dar sorte, para não se acabar o dinheiro, era feito um ramo com três ou cinco espigas de centeio , trigo e cevada, um raminho de oliveira e flor do campo (papoila e malmequer), que depois se guardava em casa, pendurado até ao ano seguinte.

Fonte:
O Autor

Luis Vaz de Camões (Caravela da Poesia XXVII)

Sonetos
(foi mantida a grafia original)

024

Está se a Primavera trasladando
em vossa vista deleitosa e honesta;
nas lindas faces, olhos, boca e testa,
boninas, lírios, rosas debuxando.

De sorte, vosso gesto matizando,
Natura quanto pode manifesta
que o monte, o campo, o rio e a floresta
se estão de vós, Senhora, namorando.

Se agora não quereis que quem vos ama
possa colher o fruito destas flores,
perderão toda a graça vossos olhos.

Porque pouco aproveita, linda Dama,
que semeasse Amor em vós amores,
se vossa condição produze abrolhos.

125

Este amor que vos tenho, limpo e puro,
de pensamento vil nunca tocado,
em minha tenra idade começado,
tê-lo dentro nesta alma só procuro.

De haver nele mudança estou seguro,
sem temer nenhum caso ou duro Fado,
nem o supremo bem ou baixo estado,
nem o tempo presente nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa;
tudo por terra o Inverno e Estio
deita, só para meu amor é sempre Maio.

Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
e que essa ingratidão tudo me enjeita,
traz este meu amor sempre em desmaio.

109

Eu cantei já, e agora vou chorando
o tempo que cantei tão confiado;
parece que no canto já passado
se estavam minhas lágrimas criando.

Cantei; mas se me alguém pergunta: —Quando?
—Não sei; que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado
que o passado, por ledo, estou julgando.

Fizeram-me cantar, manhosamente,
contentamentos não, mas confianças;
cantava, mas já era ao som dos ferros.

De quem me queixarei, que tudo mente?
Mas eu que culpa ponho às esperanças
onde a Fortuna injusta é mais que os erros?

111

Eu vivia de lágrimas isento,
num engano tão doce e deleitoso
que em que outro amante fosse mais ditoso,
não valiam mil glórias um tormento.

Vendo-me possuir tal pensamento,
de nenhüa riqueza era envejoso;
vivia bem, de nada receoso,
com doce amor e doce sentimento.

Cobiçosa, a Fortuna me tirou
deste meu tão contente e alegre estado,
e passou-me este bem, que nunca fora:

em troco do qual bem só me deixou
lembranças, que me matam cada hora,
trazendo-me à memória o bem passado.

065

O Ferido sem ter cura perecia
o forte e duro Télefo temido,
por aquele que n'água foi metido,
a quem ferro nenhum cortar podia.

Ao Apolíneo Oráculo pedia
conselho para ser restituído;
respondeu que tornasse a ser ferido
por quem o já ferira, e sararia.

Assi, Senhora, quer minha ventura
que, ferido de ver vos, claramente
com vos tornar a ver Amor me cura.

Mas é tão doce vossa fermosura,
que fico como hidrópico doente,
que co beber lhe cresce mor secura.

091

Fermosos olhos que na idade nossa
mostrais do Céu certissimos sinais,
se quereis conhecer quanto possais,
olhai me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que de viver me desapossa
aquele riso com que a vida dais;
vereis como de Amor não quero mais,
por mais que o tempo corra e o dano possa.

E se dentro nest'alma ver quiserdes,
como num claro espelho, ali vereis
também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que só por não me verdes,
ver vos em mim, Senhora, não quereis:
tanto gosto levais de minha pena!

066

Fiou se o coração, de muito isento,
de si cuidando mal, que tomaria
tão ilícito amor tal ousadia,
tal modo nunca visto de tormento.

Mas os olhos pintaram tão a tento
outros que visto tem na fantasia,
que a razão, temerosa do que via,
fugiu, deixando o campo ao pensamento.

Ó Hipólito casto, que, de jeito,
de Fedra, tua madrasta, foste amado,
que não sabia ter nenhum respeito:

em mim vingou o amor teu casto peito;
mas está desse agravo tão vingado,
que se arrepende já do que tem feito.

087

Foi já num tempo doce cousa amar,
enquanto m'enganava a esperança;
O coração, com esta confiança,
todo se desfazia em desejar.

Ó vão, caduco e débil esperar!
Como se desengana üa mudança!
Que, quanto é mor a bem aventurança,
tanto menos se crê que há de durar!

Quem já se viu contente e prosperado,
vendo se em breve tempo em pena tanta,
razão tem de viver bem magoado.

Porém quem tem o mundo exprimentado,
não o magoa a pena nem o espanta,
que mal se estranhará o costumado.

126

Fortuna em mim guardando seu direito
em verde derrubou minha alegria.
Oh! quanto se acabou naquele dia,
cuja triste lembrança arde em meu peito!

Quando contemplo tudo, bem suspeito
que a tal bem, tal descanso se devia,
por não dizer o mundo que podia
achar-se em seu engano bem perfeito.

Mas se a Fortuna o fez por descontar-me
tamanho gosto, em cujo sentimento
a memória não faz senão matar-me ,

que culpa pode dar-me o sofrimento,
se a causa que ele tem de atormentar-me,
eu tenho de sofrer o seu tormento?

Fonte:
CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos. A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro . Texto-base digitalizado por: FCCN - Fundação para a Computação Científica Nacional (http://www.fccn.pt) IBL - Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro (http://www.ibl.pt)
Imagem formatada obtida na internet, sem identificação do autor.

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 4

CAPÍTULO XIX / SEM FALTA

Quando voltei casa era noite. Vim depressa, não tanto, porém, que não pensasse nos termos em que falaria ao agregado. Formulei o pedido de cabeça, escolhendo as palavras que diria e o tom delas, entre seco e benévolo. Na chácara, antes de entrar em casa, repeti-as comigo, depois em voz alta, para ver se eram adequadas e se obedeciam às recomendações de Capitu: "Preciso falar-lhe, sem falta. amanhã; escolha o lugar e diga-me". Proferi-as lentamente, e mais lentamente ainda as palavras sem falta, como para sublinhá-las. Repeti-as ainda, e então achei-as secas demais, quase ríspidas, e, francamente, impróprias de um criançola para um homem maduro. Cuidei de escolher outras e parei.

Afinal disse comigo que as palavras podiam servir, tudo era dizê-las em tom que não ofendesse. E a prova é que, repetindo-as novamente, saíram-me quase súplices. Bastava não carregar tanto, nem adoçar muito, um meio-termo. "E Capitu tem razão, pensei, a casa é minha, ele é um simples agregado... Jeitoso é, pode muito bem trabalhar por mim, e desfazer o plano de mamãe."

CAPÍTULO XX / MIL PADRE-NOSSOS E MIL AVE-MARIAS

Levantei os olhos ao céu, que começava a embruscar-se, mas não foi para vê-lo coberto ou descoberto. Era ao outro céu que eu erguia a minha alma; era ao meu refúgio, ao meu amigo. E então disse de mim para mim: "Prometo rezar mil padre-nossos e mil ave-marias, se José Dias arranjar que eu não vá para o seminário".

A soma era enorme. A razão é que eu andava carregado de promessas não cumpridas. A última foi de duzentos padre-nossos e duzentas ave-marias, se não chovesse em certa tarde de passeio a Santa Teresa. Não choveu, mas eu não rezei as orações. Desde pequenino acostumara-me a pedir ao céu os seus favores, mediante orações que diria, se eles viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e à medida que se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei aos números vinte, trinta, cinqüenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era um modo de peitar a vontade divina pela quantia das orações; além disso, cada promessa nova era feita e jurada no sentido de pagar a dívida antiga. Mas vão lá matar a preguiça de uma alma que a trazia do berço e não a sentia atenuada pela vida! O céu fazia-me o favor, eu adiava a paga. Afinal perdi-me nas contas.

"Mil, mil", repeti comigo.

Realmente, a matéria do benefício era agora imensa, não menos que a salvação ou o naufrágio da minha existência inteira. Mil, mil, mil. Era preciso uma soma que pagasse os atrasados todos. Deus podia muito bem, irritado com os esquecimentos, negar-se a ouvir-me sem muito dinheiro... Homem grave, é possível que estas agitações de menino te enfadem, se é que não as achas ridículas. Sublimes não eram. Cogitei muito no modo de resgatar a dívida espiritual. Não achava outra espécie em que, mediante a intenção, tudo se cumprisse, fechando a escrituração da minha consciência moral sem deficit. Mandar dizer cem missas, ou subir de joelhos a ladeira da Glória para ouvir uma, ir à Terra Santa, tudo o que as velhas escravas me contavam de promessas célebres, tudo me acudia sem se fixar de vez no espírito. Era muito duro subir uma ladeira de joelhos; devia feri-los por força. A Terra Santa ficava muito longe. As missas eram numerosas, podiam empenhar-me outra vez a alma...

CAPÍTULO XXI / PRIMA JUSTINA

Na varanda achei prima Justina, passeando de um lado para outro. Veio ao patamar e perguntou-me onde estivera.

--Estive aqui ao pé, conversando com D. Fortunata, e distraí-me. É tarde, não é? Mamãe perguntou por mim?

--Perguntou, mas eu disse que você já tinha vindo.

A mentira espantou-me, não menos que a franqueza da notícia. Não é que prima Justina fosse de biocos, dizia francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e a Paulo o que pensava de Pedro; mas, confessar que mentira é que me pareceu novidade. Era quadragenária, magra e pálida, boca fina e olhos curiosos. Vivia conosco por favor de minha mãe, e também por interesse; minha mãe queria ter uma senhora íntima ao pé de si, e antes parenta que estranha.

Passeamos alguns minutos na varanda, alumiada por um lampião. Quis saber se eu não esquecera os projetos eclesiásticos de minha mãe, e dizendo-lhe eu que não, inquiriu-me sobre o gosto que eu tinha à vida de padre. Respondi esquivo:

--Vida de padre é muito bonita.

-- Sim, é bonita; mas o que pergunto é se você gostaria de ser padre, explicou rindo.

--Eu gosto do que mamãe quiser.

--Prima Glória deseja muito que você se ordene, mas ainda que não desejasse, há cá em casa quem lhe meta isso na cabeça.

--Quem é?

--Ora, quem! Quem é que há de ser? Primo Cosme não é, que não se importa com isso; eu também não.

--José Dias? concluí.

--Naturalmente.

Enruguei a testa interrogativamente, como se não soubesse nada Prima Justina completou a notícia dizendo que ainda naquela tarde José Dias lembrara a minha mãe a promessa antiga.

--Prima Glória pode ser que, em passando os dias, vá esquecendo a promessa; mas como há de esquecer se uma pessoa estiver sempre, nos ouvidos, zás que darás, falando do seminário? E os discursos que ele faz, os elogios da Igreja, e que a vida de padre é isto e aquilo, tudo com aquelas palavras que só ele conhece, e aquela afetação... Note que é só para fazer mal, porque ele é tão religioso como este lampião. Pois é verdade, ainda hoje. Você não se dê por achado... Hoje de tarde falou como você não imagina...

--Mas falou à toa? perguntei, a ver se ela contava a denúncia do meu namoro com a vizinha.

Não contou; fez apenas um gesto como indicando que havia outra cousa que não podia dizer. Novamente me recomendou que não me desse por achado, e recapitulou todo o mal que pensava de José Dias e não era pouco, um intrigante, um bajulador, um especulador, e, apesar da casca de polidez, um grosseirão. Eu, passados alguns instantes, disse:

--Prima Justina, a senhora era capaz de uma cousa?

--De quê?

--Era capaz de... Suponha que eu gostasse de ser padre... a senhora podia pedir a mamãe...

--Isso não, atalhou prontamente; prima Glória tem este negócio firme na cabeça, e não há nada no mundo que a faça mudar de resolução; só o tempo. Você ainda era pequenino, já ela contava isto a todas as pessoas da nossa amizade, ou só conhecidas. Lá avivar-lhe a memória, não, que eu não trabalho para a desgraça dos outros; mas também, pedir outra cousa, não peço, Se ela me consultasse bem; se ela me dissesse: "Prima Justina, você que acha?", a minha resposta era: "Prima Glória, eu penso que, se ele gosta de ser padre, pode ir; mas, se não gosta, o melhor é ficar". É o que eu diria e direi se ela me consultar algum dia. Agora, ir falar-lhe sem ser chamada, não faço.

CAPÍTULO XXII / SENSAÇÕES ALHEIAS

Não alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia ter seguido o conselho de Capitu. Então, como eu quisesse ir para dentro, prima Justina reteve-me alguns minutos, falando do calor e da próxima festa da Conceição, dos meus velhos oratórios, e finalmente de Capitu. Não disse mal dela; ao contrário insinuou-me que podia vir a ser uma moça bonita. Eu, que já a achava lindíssima, bradaria que era a mais bela criatura do mundo, se o receio me não fizesse discreto. Entretanto, como prima Justina se metesse a elogiar-lhe os modos, a gravidade, os costumes, o trabalhar para os seus, o amor que tinha a minha mãe, tudo isto me acendeu a ponto de elogiá-la também. Quando não era com palavras, era com o gesto de aprovação que dava a cada uma das asserções da outra, e certamente com a felicidade que devia iluminar-me a cara. Não adverti que assim confirmava a denúncia de José Dias, ouvida por ela, à tarde, na sala de visitas, se é que também ela não desconfiava já. Só pensei nisso na cama. Só então senti que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o ofício de todos os sentidos. Ciúmes não podiam ser; entre um pirralho da minha idade e uma viúva quarentona não havia lugar para ciúmes. É certo que, após algum tempo, modificou os elogios a Capitu, e até lhe fez algumas críticas, disse-me que era um pouco trêfega e olhava por baixo; mas ainda assim, não creio que fossem ciúmes. Creio antes... sim... sim, creio isto. Creio que prima Justina achou no espetáculo das sensações alheias uma ressurreição vaga das próprias. Também se goza por influição dos lábios que narram.

CAPÍTULO XXIII / PRAZO DADO

--Preciso falar-lhe amanhã, sem falta; escolha o lugar e diga-me.

Creio que José Dias achou desusado este meu falar. O tom não me saíra tão imperativo como eu receava, mas as palavras o eram, e o não interrogar, não pedir, não hesitar, como era próprio da criança e do meu estilo habitual, certamente lhe deu idéia de uma pessoa nova e de uma nova situação. Foi no corredor, quando íamos para o chá. José Dias vinha andando cheio de leitura de Walter Scott que fizera a minha mãe e a prima Justina. Lia cantado e compassado. Os castelos e os parques saíam maiores da boca dele, os lagos tinham mais água e a "abóbada celeste" contava alguns milhares mais de estrelas centelhantes. Nos diálogos, alternava o som das vozes, que eram levemente grossas ou finas, conforme o sexo dos interlocutores, e reproduziam com moderação a ternura e a cólera.

Ao despedir-se de mim, na varanda, disse-me ele:

--Amanhã, na rua. Tenho umas compras que fazer, você pode ir comigo, pedirei a mamãe. É dia de lição?

--A lição foi hoje.

--Perfeitamente. Não lhe pergunto o que é; afirmo desde já que é matéria grave e pura.

--Sim, senhor.

--Até amanhã.

Fez-se tudo o melhor possível. Houve só uma altercarão; minha mãe achou o dia quente e não consentiu que eu fosse a pé; entramos no ônibus, à porta de casa.

--Não importa, disse-me José Dias; podemos apear-nos à porta do Passeio Público.

CAPÍTULO XXIV / DE MÃE E DE SERVO

José Dias tratava-me com extremos de mãe e atenções de servo. A primeira cousa que consegui logo que comecei a andar fora, foi dispensar-me o pajem; fez-se pajem, ia comigo à rua. Cuidava dos meus arranjos em casa, dos meus livros, dos meus sapatos, da minha higiene e da minha prosódia. Aos oito anos os meus plurais careciam, alguma vez, da desinência exata, ele a corrigia, meio sério para dar autoridade à lição, meio risonho para obter o perdão da emenda Ajudava assim o mestre de primeiras letras. Mais tarde, quando o Padre Cabral me ensinava latim, doutrina e história sagrada, ele assistia às lições, fazia reflexões eclesiásticas, e, no fim, perguntava ao padre: "Não é verdade que o nosso jovem amigo caminha depressa?" Chamava-me "um prodígio"; dizia a minha mãe ter conhecido outrora meninos muito inteligentes, mas que eu excedia a todos esses, sem contar que, para a minha idade, possuía já certo número de qualidades morais sólidas. Eu, posto não avaliasse todo o valor deste outro elogio, gostava do elogio; era um elogio.

CAPÍTULO XXV / NO PASSEIO PÚBLICO

Entramos no Passeio Público. Algumas caras velhas, outras doentes ou só vadias espalhavam-se melancolicamente no caminho que vai da porta ao terraço. Seguimos para o terraço. Andando, para me dar animo, falei do jardim:

--Há muito tempo que não venho aqui, talvez um ano.

--Perdoe-me, atalhou ele, não há três meses que esteve aqui com o nosso vizinho Pádua; não se lembra?

--É verdade, mas foi tão de passagem. . .

--Ele pediu a sua mãe que o deixasse trazer consigo, e ela, que é boa como a mãe de Deus, consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto, não é bonito que você ande com o Pádua na rua.

--Mas eu andei algumas vezes...

--Quando era mais jovem; em criança, era natural, ele podia passar por criado. Mas você está ficando moço e ele vai tomando confiança. D. Glória, afinal, não pode gostar disso. A gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o Diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! a adulação! D. Fortunata merece estima, e ele não nego que seja honesto, tem um bom emprego, possui a casa em que mora, mas honestidade e estima não bastam, e as outras qualidades perdem muito de valor com as más companhias em que ele anda. Pádua tem uma tendência para gente reles. Em lhe cheirando a homem chulo é com ele. Não digo isto por ódio, nem porque ele fale mal de mim e se ria, como se riu, há dias, dos meus sapatos acalcanhados...

--Perdão, interrompi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse mal do senhor; pelo contrário, um dia. não há muito tempo, disse ele a um sujeito, em minha presença, que o senhor era "um homem de capacidade e sabia falar como um deputado nas camaras."

José Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforço grande e fechou outra vez o rosto; depois replicou:

--Não lhe agradeço nada. Outros, de melhor sangue, me têm feito o favor de juízos altos. E nada disso impede que ele seja o que lhe digo.

Tínhamos outra vez andado, subimos ao terraço, e olhamos para o mar.

--Vejo que o senhor não quer senão o meu benefício, disse eu depois de alguns instantes.

--Pois que outra cousa, Bentinho?

--Neste caso, peço-lhe um favor.

--Um favor? Mande, ordene, que é?

--Mamãe...

Durante algum tempo não pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de cor. José Dias tornou a perguntar o que era, sacudia-me com brandura, levantava-me o queixo e espetava os olhos em mim, ansioso também, como a prima Justina na véspera.

--Mamãe quê? Que é que tem mamãe?

--Mamãe quer que eu seja padre, mas eu não posso ser padre, disse finalmente.

José Tobias endireitou-se pasmado.

--Não posso, continuei eu, não menos pasmado que ele, não tenho jeito, não gosto da vida de padre. Estou por tudo o que ela quiser, mamãe sabe que eu faço tudo o que ela manda; estou pronto a ser o que for do seu agrado, até cocheiro de ônibus. Padre, não; não posso ser padre. A carreira é bonita, mas não é para mim.

Todo esse discurso não me saiu assim, de vez, enfiado natural mente, peremptório, como pode parecer do texto, mas aos pedaços, mastigado, em voz um pouco surda e tímida. Não obstante, José Dias ouvira-o espantado. Não contava certamente com a resistência, por mais acanhada que fosse; mas o que ainda mais o assombrou foi esta conclusão:

--Conto com o senhor para salvar-me.

Os olhos do agregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer que eu contava dar-lhe com a escolha da proteção não se mostrou em nenhum dos músculos. Toda a cara dele era pouca para a estupefação. Realmente, a matéria do discurso revelara em mim uma alma nova; eu próprio não me conhecia. Mas a palavra final é que trouxe um vigor único. José Dias ficou aturdido. Quando os olhos tornaram às dimensões ordinárias:

--Mas que posso eu fazer? perguntou.

--Pode muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam Mamãe pede muita vez os seus conselhos, não é? Tio Cosme diz que o senhor é pessoa de talento...

--São bondades, retorquiu lisonjeado. São favores de pessoas dignas, que merecem tudo... Aí está! nunca ninguém me há de ouvir dizer nada de pessoas tais, por quê? porque são ilustres e virtuosas. Sua mãe é uma santa, seu tio é um cavalheiro perfeitíssimo Tenho conhecido famílias distintas; nenhuma poderá vencer a sua em nobreza de sentimentos. O talento que seu tio acha em mim confesso que o tenho, mas é só um,--é o talento de saber o que é bom e digno de admiração e de apreço.

--Há de ser também o de proteger os amigos, como eu.

--Em que lhe posso valer, anjo do céu? Não hei de dissuadir sua mãe de um projeto que é, além de promessa, a ambição e O sonho de longos anos. Quando pudesse, é tarde. Ainda ontem fez-me o favor de dizer: "José Dias, preciso meter Bentinho no seminário".

Timidez não é tão ruim moeda, como parece. Se eu fosse destemido, é provável que, com a indignação que experimentei, rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas então seria preciso confessar-lhe que estivera à escuta, atrás da porta, e uma ação valia outra. Contentei-me de responder que não era tarde.

--Não é tarde, ainda é tempo, se o senhor quiser.

-- Se eu quiser? Mas que outra cousa quero eu, senão servi-lo. Que desejo, senão que seja feliz, como merece?

--Pois ainda é tempo. Olhe, não é por vadiação. Estou pronto: para tudo; se ela quiser que eu estude leis, vou para S. Paulo...
Machado de Assis (Dom Casmurro) 5

CAPÍTULO XXVI / AS LEIS SÃO BELAS

Pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo de uma idéia, -- uma idéia que o alegrou extraordinariamente. Calou se alguns instantes; eu tinha os olhos nele, ele voltara os seus para o lado da barra. Como insistisse:

--É tarde, disse ele, mas, para lhe provar que não há falta de vontade, irei falar a sua mãe. Não prometo vencer, mas lutar; trabalharei com alma. Deveras, não quer ser padre? As leis são belas; meu querido... Pode ir a S. Paulo, a Pernambuco, ou ainda mais longe. Há boas universidades por esse mundo fora. Vá para as leis, se tal é a sua vocação. Vou falar a D. Glória, mas não conte só comigo, fale também a seu tio.

--Hei de falar.

--Pegue-se também com Deus,-- com Deus e a Virgem Santíssima, concluiu apontando para o céu.

O céu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes pássaros negros faziam giros, avançando ou pairando, e desciam a roçar os pés, na água, e tornavam a erguer-se para descer novamente. Mas nem as sombras do céu, nem as danças fantásticas dos pássaros me desviavam o espírito do meu interlocutor. Depois de lhe responder que sim, emendei-me:

--Deus fará o que o senhor quiser.

--Não blasfeme. Deus é dono de tudo; ele é, só por si, a terra e o céu, o passado, o presente e o futuro. Peça-lhe a sua felicidade que eu não faço outra cousa... Uma vez que você não pode ser padre, e prefere as leis... As leis são belas, sem desfazer na teologia que é melhor que tudo, como a vida eclesiástica é a mais santa...

Por que não há de ir estudar leis fora daqui? Melhor é ir logo para alguma universidade, e ao mesmo tempo que estuda, viaja: Podemos ir juntos, veremos as terras estrangeiras, ouviremos inglês, francês, italiano, espanhol, russo e até sueco. D. Glória provavelmente não poderá acompanhá-lo; ainda que possa e vá, não quererá guiar os negócios, papéis, matrículas, e cuidar de hospedarias, e andar com você de um lado para outro... Oh! as leis são belíssimas!

--Está dito, pede a mamãe que me não meta no seminário?

--Pedir, peço, mas pedir não é alcançar. Anjo do meu coração, se vontade de servir é poder de mandar, estamos aqui, estamos a bordo! Ah! você não imagina o que é a Europa; Oh! a Europa...

Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma das suas ambições era tornar à Europa, falava dela muitas vezes, sem acabar de tentar minha mãe nem tio Cosme, por mais que louvasse os ares e as belezas... Não contava com esta possibilidade de ir comigo, e lá ficar durante a eternidade dos meus estudos.

--Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo!
-------------
continua

Ditados Populares do Brasil (Letra U, V, Z)

Um dia é da caça, outro do caçador
U

Um burro carregado de livros não é doutor
Um dia a terra cobrirá o teu orgulho.
Um ranchinho , teus carinhos e nada mais.
Um dia é da caça o outro do caçador
Um é pouco, dois é bom, tres é demais.
Um gambá cheira o outro.
Uma andorinha só, não faz verão
Uma mão lava a outra.

V
 
Vai ocioso, a formiga que lhe diga
Vão-se os anéis, fiquem os dedos.
Vaso ruim não se quebra.
Veja seus erros, depois corrija os meus.
Velho não se senta sem “ui”, nem se levanta sem “ai”.
Venha sorrindo, mas limpe os pés.
Viajar sem carga afrouxa o carro e aperta o dono.
Vida sem religião é viagem sem rumo.
Vinho, ouro e amigo, o melhor é o mais antigo.
Vinte e três pessoas falam de mim; só falta você.
Vitamina de chofer é carinho de mulher.
Vitamina de Chevrolet é poeira de Ford.
Viúva é como café requentado.
Viúva é como lenha verde: chora, chora, mas pega.
Viva e deixe os outros viverem.
Viver com sogra é fazer vestibular para o céu.
Vivo correndo para não morrer devendo.
Velho e cesto se acabam pelo fundo.
Vender o peixe pelo preço de fatura.
Vintém poupado, vintém guardado.
Vivendo é que se aprende.

Z
 
Zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades .

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Trova 261 - Dorothy Jansson Moretti (SP)


Zé Lucas (Baú de Trovas)

A ciência, sem suspeita,
será no mundo aplaudida
se a clonagem só for feita
em benefício da vida.

A esmola às vezes se "enfeita"
com tinturas de vaidade,
mas a caridade é feita
de amor e fraternidade.

A liberdade é um tesouro
da mais alta qualidade...
Nem por gaiola de ouro
há quem troque a liberdade!

A menina seminua,
presa, disse ao detetive:
– eu não me queixo da rua,
mas do lar que nunca tive!

A mulher, rasgando os passos,
caminha alegre, vai cedo...
Quem leva um filho nos braços
enfrenta o mundo sem medo.

A multidão me põe louco
entre empurrões e zoada...
Sozinho, sou muito pouco;
na multidão, não sou nada!

Antes de sair de cena,
peço tempo aos céus risonhos,
pois acho a vida pequena
para a vida de meus sonhos.

Ao voltar, com muito amor,
ao campo que já foi meu,
bebi no cálix da flor
o mel que a abelha esqueceu.

A poesia se ilumina
e em trono de amor repousa,
pela pureza divina
dos versos de Auta de Souza.

A preguiça dos ponteiros
de meu velho carrilhão
mostra os minutos ronceiros
das noites de solidão!

Aquele singelo enredo
de amor, ensaiado a sós,
foi o mais belo segredo
que a vida pôs entre nós!

Auta pôs, com mãos de fada,
em versos de encanto e dor,
toda a pureza filtrada
na luz eterna do amor.

Carcará desce do pico,
pega a vítima e condena,
pois, sendo de pena e bico,
bica e mata sem ter pena.

Chove no Sertão, e o rio
desce da serra distante;
devolve a vida ao baixio
e o sorriso ao retirante!

Com devotamento ao lar,
onde o amor finca raízes,
a noite é para sonhar
e os dias são mais felizes.

Como é belo ver a planta
que abre flores nos caminhos,
nas horas em que Deus canta
pela voz dos passarinhos!

Como os demais trovadores,
tenho ilusões,toda hora...
São lindas, parecem flores,
mas, num sopro, vão embora!

Corre o viver tão bonito,
nesta paz de vento brando,
que eu vejo e não acredito
que a velhice está chegando!

Crianças em doce anelo,
fitando, além, o horizonte,
sonham que um dia mais belo
vai nascer por trás do monte!

De alguém que há pouco passou,
deixando a porta entreaberta,
alguma coisa ficou:
talvez a lembrança incerta!

Deus, que viagem florida,
em campos tão sedutores!
Como é bom trilhar, na vida,
pelo caminho das flores!

Duas taças num banquinho,
sem ninguém, têm a igualdade
do cheiro do mesmo vinho,
da dor da mesma saudade!

Em louco e brutal delírio
pra devastar o que resta,
a motosserra é um martírio
no calvário da floresta!

Em manhã chuvosa, a vida
canta no seio da mata
e há notas de água caída
no piano da cascata.

Em minha infancia inocente,
teu afeto, mãe querida,
desenhou-me fielmente
o lado belo da vida!

Em momentos mais risonhos,
sei que já fiz trova linda,
mas a trova dos meus sonhos
não pude fazer ainda!

Em muitas ocasiões,
só somos bons elementos
porque certas intenções
não passam de pensamentos.

Enquanto a emoção se alteia
sobre as dunas, a rolar,
a vida brinca na areia
ouvindo a canção do mar.

Entre o cãozinho e a criança
há tão lindo entendimento,
que na estrada da esperança
há, para os dois, um assento!

Esta fé que nos norteia
para a "terra prometida",
mesmo sendo um grão de areia,
faz o alicerce da vida!

Estas cenas nos comovem,
como, na rua, alguém disse:
- Juntas, a energia jovem
e a lentidão da velhice!

Eu sou mais poeta quando,
no jogo de altas marés,
fico na praia esperando
que as ondas lavem meus pés.

Existem palavras mudas
que têm o peso da cruz,
e foi sem falar que Judas,
num beijo, entregou Jesus.

Feitas de sonhos e flores,
as nossas trovas são ninhos,
onde os vates trovadores
trinam como passarinhos.

Felicidade é o lugar
indicado pelo amor...
Lá, quem consegue chegar
é, por certo, um sonhador!

Há tempo sem teus afagos,
deixa-me lavar as dores
nos dois pequeninos lagos
de teus olhos sedutores!

João Maria, em nenhum canto
deixava um mendigo ao léu...
Na terra já era um santo;
foi ser mais santo no céu.

João Maria morreu quando
fazia um trabalho lindo.
Sua alma subiu cantando;
Deus o recebeu sorrindo!

Mais vale da vida o espelho
que muitos sermões no templo...
Em vez de nos dar conselho,
seu padre, nos dê o exemplo!

Mesmo enfermo, João Maria,
cumprindo a santa missão,
a própria dor esquecia
pra sanar a dor do irmão!

Mesmo que eu mude de estilo,
não mudarei, nem de leve,
uma vírgula daquilo
que a mão do destino escreve.

Mesmo que eu renove as trilhas,
desviando a caminhada,
não escapo às armadilhas
que o destino põe na estrada

Meu querido Rio Grande,
na beleza de teus vales,
desfeito em trovas se expande
o amor do “Trio Canalles”.

Meu rancho, no campo em flor,
longe de intriga e maldade,
era o meu ninho de amor,
hoje é o ninho da saudade!

Minha mulher reza tanto
aos pés de Nosso Senhor,
que eu vou precisar ser santo
pra merecer seu amor.

Musas divinas!... Ao vê-las,
no sonho que me seduz,
subo ao ninho das estrelas,
seguindo os rastros da luz!

Não há coisa mais bonita
neste mundo de pecado,
do que a fé que ressuscita
um sonho já sepultado!

Não me fizeste justiça
ao negar-me o teu carinho,
e hoje a saudade aterrissa,
como sombra, em meu caminho!

Não temo a longevidade
por esta simples razão:
a flor da felicidade
brota em qualquer estação.

Na paz da boa atitude
não há passada perdida,
e a moeda da virtude
paga o pedágio da vida.

Na paz de um lago deserto,
longe da luz da cidade,
foi quando estive mais perto
da luz da felicidade

No doce embalo da rede,
um sono bom me enfeitiça
e o relógio de parede
me acompanha na preguiça.

No instante em que o sol se enfada,
de tanto aquecer a Terra,
deita a cabeça dourada
no travesseiro da serra...

No meu rancho, pobre teto,
o chão era a cama e a mesa,
mas fui tão rico de afeto,
que nem falava em pobreza.

No trabalho, meus irmãos
não buscam prêmio nem glória,
e os calos de suas mãos
enobrecem nossa História.

Numa devoção de monge,
o Potengi, sem parar,
traz água doce de longe
e entrega de graça ao mar.

Numa fonte de águas claras,
Onde as musas cantam hinos,
Bebo as imagens mais raras
De meus versos peregrinos.

O alpinismo é dura prova
que não ficou para mim,
mas, no alpinismo da trova,
escalo alturas sem fim.

O amor e o sonho, querida,
são graças que Deus nos deu...
Quem não ama não tem vida,
quem não sonha já morreu.

O beijo, em qualquer instante,
estimula o amor e a vida,
e, sendo um beijo dançante,
faz tudo além da medida.

O cego, com dedos certos,
tange a sanfona dorida,
e eu, com dois olhos abertos,
erro nas teclas da vida.

O céu azul de meus sonhos
e as flores da mocidade
lembram-me dias risonhos
na aquarela da saudade!

O destino abre-me os braços
mas tem seu lado mesquinho:
guia-me todos os passos
mas não me ensina o caminho.

– Oh! Que demora sem fim
para tua decisão!
Chegou tão tarde o teu sim,
que já parecia um não!

Olhando o primor da teia,
eu fico aos céus inquirindo:
como é que a aranha, tão feia,
traça um desenho tão lindo!

Olho o céu de eterno azul,
e como fico feliz,
vendo o Cruzeiro do Sul,
emblema de meu país!

O meu destino de amor
me pôs no rol dos felizes:
fez-me nascer trovador
no mais belo dos países.
O perdão é que é o sinal
de perfeita lucidez...
Quem se vinga faz o mal
do jeito que alguém lhe fez.

O Potengi deita a luz
no seu leito sedutor
e, ao tê-la formosa e nua,
mergulha em sonhos de amor.

Os anos trazem cansaços;
nossa vida é sempre assim,
e a saudade segue os passos
da velhice, até o fim!

O trabalho é luta santa
que não vislumbra medalha,
e um país só se levanta
pelas mãos de quem trabalha.

O trabalho me norteia
e dele eu não me despeço,
pois quero meu grão de areia
a construção do progresso.

Para abraçar-te, menina,
meu anseio é tão profundo,
que a distância de uma esquina
parece uma volta ao mundo.

Pobre casal foi multado
sem defesa, na avenida,
por beijo estacionado
numa faixa proibida!

Por mais que a vida me açoite
com refinada ironia,
depois da prece da noite,
esqueço as mágoas do dia!

Potengi, corrente amiga
que alimenta o manguezal,
artéria grossa que irriga
o coração de Natal.

Qual a fonte de energia
Da luz de tantas estrelas?
Se não for Deus, quem teria
Um facho para acendê-las?

Quando a jangada flutua
sobre as águas, ao luar,
é uma lágrima da lua
nos olhos verdes do mar.

Quando a Lua se retrata
com seu encanto invulgar,
traça um caminho de prata
sobre a esmeralda do mar.

Quando estou em meu terraço,
olhando os astros risonhos,
a Lua atravessa o espaço,
puxando o carro dos sonhos!

Quando eu vejo a morte acesa
na fúria de uma queimada,
sinto a dor da natureza,
impunemente afrontada!

Quando o tempo se levanta
no sertão, e a seca vem,
não morre somente a planta,
morre a esperança também!

Quanta labuta perdida
para a clonagem de gente,
quando o amor que traz a vida
jorra de infinda vertente!

Queimada!... A terra ferida
clama por um povo forte
que faça brotar a vida
onde o fogo impôs a morte!

Quem fere, seja onde for,
uma simples borboleta,
mata um sonho multicor
que sobrevoa o planeta!

Se a lua beija as areias
destas praias de Poti,
cantam todas as sereias
das noites do Potengi.

Se aos pintores falta tinta
que eternize a juventude,
feliz quem, na vida, pinta
um retrato da virtude!

Sei que deste mundo lindo
vou sair, só não sei quando,
mas quero morrer dormindo
para entrar no céu sonhando.

Se já não restam viventes
sobre a terra calcinada,
plantemos novas sementes
na cicatriz da queimada!

Se meu Potengi não fosse
perene, iria esgotar
de despejar água doce
no fundo amargo do mar.

Sem ter o clone a beleza
do amor que embala os casais,
torce as leis da natureza
e engendra seres sem pais!

Sem ter da mulher o afeto,
não tenho felicidade.
Homem nenhum é completo
quando lhe falta a metade.

Senti o ardor da poesia
nos meus primeiros amores,
quando a vida parecia
uma cascata de flores!

Sinal da antiga aliança
de Deus com a humanidade,
o arco-íris nos traz bonança
de paz e felicidade.

Toda a natureza é um plano
de vida farta e beleza,
mas o lucro desumano
põe no bolso a natureza!

Tomara que os trovadores
batam do verso a poeira,
e a trova, assim como as flores,
enfeite as bancas da feira.

Tua voz, terna e macia,
sob o calor dos lençóis,
tinha a doce melodia
de um canto de rouxinóis.

Viram cinza os verdes braços
de árvores tão bem formadas
e a terra morre aos pedaços
por onde vão as queimadas!

Volta aos sonhos de criança,
em teu recanto singelo,
mas nutre a flor da esperança
que torna o mundo mais belo!

Vou brincar com pirilampos
e beijar as flores nuas
pra ver se encontro nos campos
a paz que fugiu das ruas!

Zarpei ao romper do dia,
no meu barco, a velejar,
para “pescar” a poesia
que a Lua escondeu no mar.

PANTUM DA ECLOSÃO DO AMOR

Trova-tema:

Eu vi o amor eclodindo
na mensagem de um chamado:
o mar, despido, sorrindo...
O Sol se pondo, apressado.
(Mara Melinni/RN)


Na mensagem de um chamado,
vinha um toque de magia:
o Sol se pondo, apressado,
visto que a noite caía.

Vinha um toque de magia
naquele doce arrebol,
visto que a noite caía,
logo após o adeus do Sol.

Naquele doce arrebol,
quase fiquei de alma nua,
logo após o adeus do Sol,
ao primeiro olhar da Lua.

Quase fiquei de alma nua,
e, num êxtase tão lindo,
ao primeiro olhar da Lua,
eu vi o amor eclodindo.
 
Fonte:
José Feldman (org., sel. e ed.). Trova Brasil numero 8 - março de 2013

Zé Lucas (Poesias Ao Sabor das Ondas)

Praia de Genipabu (Natal/RN)
MEL NA POESIA

No trabalho das colmeias
me inspiro em meu dia-a-dia,
eu e a abelha laboramos
numa intensa parceria:
ela tira o mel das flores
e eu ponho em minha poesia.

AS GARÇAS

Voam longe as garças brancas
formando bonito véu,
como um lençol de morim
que o vento sacode ao léu...
Será que a paz criou asas
e está voando no céu?

A VIAGEM

-Neste mundo, ninguém tem a medida
Do caminho do berço para a morte,
E eu, que tinha de achar algum transporte,
Vindo ao mundo, peguei o trem da vida;
Anotei o momento da partida
E enfrentei a jornada com coragem;
Deus me deu o bilhete da passagem
E mandou-me seguir estrada afora.
Inda estou caminhando até agora,
Mas não sei o tamanho da viagem.

MEU JEITO DE OLHAR A VIDA

Sou menino do campo, sem vaidade;
vivi longe das sedas e dos linhos;
em vez das fantasias da cidade,
me entreguei à aventura dos caminhos.

Fui ao céu, imitando os passarinhos...
Nas asas do meu sonho, a imensidade
ficou pequena, e na canção dos ninhos
embalei toda a minha mocidade.

Minha alma se elevou no azul dos montes,
onde volto a beber, nas mesmas fontes,
a água doce da infância cristalina.

Deus não me nega paz nem agasalho:
se nos bosques da noite me atrapalho,
logo mais vem a aurora e me ilumina!

HUMILDE NAVEGANTE

Meu amigo, não peça o que não tenho
nem me dê o que eu sei que não mereço;
Não precisa ampliar o meu desenho,
basta que não me vire pelo avesso!

Não é para ser grande que me empenho,
mas para ser tratado com apreço.
Sou fraco, mas, o peso do meu lenho,
carrego sem negar meu endereço.

Quero só navegar no mar da vida
sem me tornar um navegante louco
pra deixar minha vela preferida

abandonada na ilusão do cais.
Sabe Deus que mereço muito pouco,
mas é tão bom que até me dá demais!

“AS ESTRELAS SÃO NÍTIDOS FARÓIS”

As estrelas são nítidos faróis
quando o céu anoitece mais bonito;
para nós, os poetas sonhadores,
a beleza da Lua é quase um mito
na distância da cósmica jornada
em que a voz de um trovão é quase nada
e o silêncio de Deus corta o infinito.

MENINICE
Cada dia, mais distância,
cada instante, mais saudade...
Como ficou longe a infância!

Amigos da mocidade,
agora não mais os vejo
em nossa velha cidade!

Meu coração sertanejo
bate ao compasso do sino
das festas do lugarejo.

Se eu fosse outra vez menino,
mesmo assim pouco faria
pra reverter o destino.

Pra meus pais, mais alegria
pediria, com certeza,
a Deus e à Virgem Maria,

e um grande alívio à pobreza
que os perseguiu duramente.
Quanto a mim, não é surpresa

afirmar, de boa mente,
que quase tive o que quis,
no meio de minha gente.

Botando os pontos nos is,
fui moleque bom de estrada,
fui menino, fui feliz!

Assim, digo a minha fada:
pode manter meu destino!
Não precisa mudar nada.

Basta, na vida futura,
que não me falte a ternura
de um coração de menino!

VAQUEIRO
Há registros em prosa e poesia,
Aqui pelo Nordeste brasileiro,
Mas ninguém descreveu, como devia,
A grandeza da saga do vaqueiro.

Quando um touro se torna barbatão,
Escondido na mata de espinheiro,
Não há nada que o enfrente no sertão,
A não ser a coragem do vaqueiro.

Cavaleiro de tanta valentia,
Esquecido por esses pés de serra,
Nosso herói nordestino merecia
Uma estátua de bronze em sua terra!

O DIA DAS MULHERES
Hoje cumpro o mais justo dos misteres,
Como poeta e amigo da beleza:
Dou parabéns a todas as mulheres,
Vendo nelas, do amor, a realeza!

Às rainhas do lar e deste mundo,
Que, sem elas, pra nada serviria,
Eu desejo, com o apreço mais profundo,
Um reinado de paz e de alegria!

Que haja flores na rota da existência
De toda mãe, que é nosso amor primeiro,
E nunca mais a mão da violência
Baixe sobre a mulher, no mundo inteiro!

O TEMPO

Quando menino, eu queria
Ser homem com rapidez,
Depois, contabilizando
Tudo que o tempo me fez,
Hoje morro de vontade
De ser menino outra vez.

EXCERTOS DA PELEJA EM MARTELO AGALOPADA
um diálogo entre Zé Lucas e Prof. Garcia


Pra o poeta encontrar a poesia,
basta o canto febril de um rouxinol,
ou os raios de ouro do arrebol,
registrando o nascer de um novo dia;
um olhar nas belezas que Deus cria
também deixa um poeta motivado;
uma grata lembrança do passado
tanto acorda a saudade como inspira;
mais o som peregrino de uma lira,
e está pronto o martelo agalopado!
(…)
No remanso tranquilo da gamboa,
cai no rio e se anima o pescador,
na esperança de um peixe lutador
que, na linha do anzol, puxe a canoa;
remo solto, segura-se na proa,
porque sabe os segredos de seu rio
e não foge jamais ao desafio,
visto que água no chão é mão na luva...
Essas cenas ocorrem quando a chuva
cai na terra do sol e espanta o estio.

(…)
Vi a cana espremida na moenda,
vi os bois sonolentos na almanjarra,
na qual já trabalhavam quando a barra
da manhã lourejava na fazenda;
e o engenho, que há muito virou lenda,
tinha cheiro de mel e rapadura,
mas o tempo mudou... Já não se apura
uma simples batida, ou alfenim.
No sertão, isso tudo levou fim,
mas a dor da saudade ninguém cura!

(…)
Não me esqueço do som da cantoria
nos alpendres de antigos casarões,
com sextilhas, martelos e mourões
recheados de nítida magia;
era um mundo encantado de poesia
que abracei desde minha tenra idade,
tradição nordestina de verdade
que não pode morrer nem fraquejar
porque é muito querida e popular,
mas mudou-se do campo pra cidade!

(…)
Quem trabalha precisa de repouso
pra suprir os efeitos do cansaço,
pois o esforço medido a cada passo
nunca pode tornar-se tão penoso;
nosso tempo é tesouro precioso,
como o próprio bom senso nos revela...
Desperdício das horas, sem cautela,
leva a perdas e danos sem medida
e ao desgaste das dádivas da vida,
desta vida que é curta, mas é bela.

(…)
No sertão, uma linda fiandeira
foi Maria Isabel, minha vovó,
que viveu no calor do Seridó
comandando uma roca de madeira;
punha os pés pequeninos numa esteira
fabricada com arte e paciência;
sempre estava na pobre residência
dando a bênção a adultos e guris...
Viveu quase cem anos, tão feliz,
com o novelo dos fios da existência!

(…)
No Nordeste, o mais duro cangaceiro,
Virgulino Ferreira, o Lampião,
assombrou todo o povo do sertão
com seu rifle temível e certeiro;
tinha fama de bravo bandoleiro,
pois, de fato, era intrépido e valente,
açoitava e matava cruelmente,
mas entrou pelo cano em Mossoró:
correu tanto, que as pernas davam nó;
mesmo assim, é um herói pra muita gente!

Fonte:
José Feldman (org., seleção e ed.)Trova Brasil numero 8 - março de 2013