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sábado, 8 de fevereiro de 2025
Figueiredo Pimentel (A moça do lixo)
Passavam um dia duas fadas por um jardim formosíssimo e bem tratado, quando viram um monte de estrume que o chacareiro havia deixado para estercar a terra.
— Que coisa nojenta! Disse uma delas. Como é que se consente num jardim tão belo tamanha porcaria, ainda que seja por um momento!...
— Tive uma ideia, disse a outra. Eu faço para que essa esterqueira se transforme numa mulher tão linda como Leona, a princesa adivinha, que é a mais formosa criatura do mundo.
— E eu faço, retorquiu a outra, para que ela tenha um anel no dedo. Enquanto estiver com esse anel, só poderá pronunciar a palavra “porcaria”, sem que nada mais possa dizer. Tirando-lhe o anel, será uma moça instruída e espirituosa, ao passo que, quem o usar, ficará com o mesmo defeito.
As duas fadas desapareceram e do estrume surgiu uma moça maravilhosamente formosa.
E nos jardins reais, o príncipe, passando por acaso, viu-a e ficou apaixonado. Perguntando-lhe quem era, de onde vinha, como se chamava, só obteve em resposta:
— Porcaria! Porcaria!...
Admirado por ouvir aquela grosseria, tão suja, em boca tão formosa, sua alteza insistiu. Em vão! A deslumbrante moça respondia sempre:
— Porcaria!... Porcaria!...
O príncipe quis fazê-la sua esposa, mas o rei, os ministros, os conselheiros da coroa e os grandes dignatários não o consentiram.
Não podendo, entretanto, deixar de vê-la a todos os instantes, o futuro soberano fê-la se alojar no palácio.
Tempos depois teve de se casar, como era obrigado por lei. Deram-lhe como noiva uma princesa, filha de um imperador vizinho e aliado.
Preparando-se a toalete da noiva, uma criada lembrou-se que Porcaria tinha um anel sem igual.
Tirou-o, e apresentou-o à sua nova ama, que o enfiou no dedo
Quando o cortejo chegou à igreja, na hora da celebração do casamento, perguntando o padre à noiva, se livremente recebia o príncipe, ouviu-a dizer:
— Porcaria!... Porcaria!...
Não houve meios de se lhe arrancar outra coisa:
— Porcaria!... Porcaria!... – falava sempre.
O príncipe, em vista daquilo, exclamou:
— Não! Não me serve! Porcaria por porcaria, tenho lá no palácio uma melhor.
Foram buscar a outra, que encontraram falando e conversando com todo o espírito, e o casamento foi celebrado.
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ALBERTO FIGUEIREDO PIMENTEL nasceu e morreu em Macaé/RJ, 1869 - 1914, foi poeta, contista, cronista, autor de literatura infantil e tradutor. Manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Publicou novelas, poesia, histórias infantis e contos. Um de seus grandes êxitos foi o romance O Aborto, estudo naturalista, publicado em 1893, e por mais de um século completamente esgotado. Como poeta, participou da primeira geração simbolista chegando a se corresponder com os franceses. Era amigo de Aluísio Azevedo, com quem trocou cartas, enquanto o autor de O Cortiço estava fora do país como diplomata. Poeta, romancista, escritor de literatura infantil, ganhou destaque e se perpetuou nos compêndios da literatura brasileira. A coluna Binóculo, assinada pelo autor na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1907 até 1914, obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda, o que faz de Figueiredo Pimentel o primeiro cronista social da capital. Era ele quem tratava das novidades da moda, do bom gosto, do chique em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Obras: Fototipias, poesia, 1893; Histórias da avozinha, conto - somente em 1952; Histórias da Carochinha; Livro mau, poesia, 1895; O aborto, 1893; O terror dos maridos, romance e novela, 1897; Suicida, romance e novela, 1895; Um canalha, romance e novela, 1895.
Fontes:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado originalmente em 1896.
Disponível em Domínio Público.
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José Feldman (Pafúncio e o Coquetel dos Prêmios)
Era uma noite de gala na cidade, e o prestigiado “Coquetel dos Prêmios Fuxicos” estava prestes a começar. Celebridades, influenciadores e jornalistas se reuniam para celebrar os maiores acontecimentos do ano no mundo das fofocas. E, claro, Pafúncio, o jornalista trapalhão da revista “Fuxicos & Fofocas”, não poderia ficar de fora desse evento.
Vestindo um terno que parecia ter sido escolhido às pressas — com uma gravata que mais parecia uma serpentina — Pafúncio chegou ao local com um sorriso de orelha a orelha. Ele estava determinado a fazer sua cobertura ser a mais memorável de todas, mesmo que isso significasse algumas trapalhadas pelo caminho.
Assim que entrou, foi recebido por uma multidão de pessoas bem vestidas, todas segurando taças de champanhe e sorrisos brilhantes. Pafúncio, empolgado, decidiu que a primeira coisa que faria seria se aproximar do buffet. Afinal, quem poderia resistir a uma mesa cheia de aperitivos?
Com um pé na frente do outro, ele se dirigiu à mesa. No entanto, ao tentar pegar um canapé de salmão, ele esbarrou em uma bandeja cheia de bebidas. Em um movimento de câmera lenta, as taças de champanhe voaram pelo ar, chacoalhando como se estivessem dançando. Pafúncio apenas assistiu, paralisado, enquanto as taças atingiam o chão, fazendo um barulho estrondoso.
As pessoas ao redor ficaram em silêncio, olhando para ele. Pafúncio, tentando se redimir, levantou as mãos e disse: “Acho que agora temos um ‘brinde’ ao chão!” A plateia, inicialmente chocada, não conseguiu conter a risada, e o clima começou a relaxar.
Mas o infortúnio de Pafúncio estava apenas começando. Ao se afastar da mesa, ele tropeçou em uma perna de uma cadeira e, sem saber como, acabou caindo de joelhos. Para sua sorte, ele aterrissou bem embaixo de uma mesa que, ao ser puxada, virou, derrubando pratos e copos. O barulho foi ensurdecedor.
“É uma nova dança, a ‘Dança da Mesa Voadora’!” gritou Pafúncio, enquanto tentava se levantar. As pessoas estavam atônitas, mas não conseguiam conter as risadas, e ele começou a se sentir como o verdadeiro centro das atenções. Mas ele não sabia que a situação ainda podia piorar.
Decidido a continuar sua cobertura, ele se levantou e se dirigiu ao palco, onde as premiações estavam prestes a começar. Com um microfone na mão, ele queria fazer uma pergunta ao apresentador, mas, em sua empolgação, tropeçou no próprio pé e caiu para a frente, fazendo com que o microfone batesse em sua boca. O som de um barulho metálico ecoou, e ele, atordoado, exclamou: “Acho que o microfone também quer participar da festa!”
O público estava um pouco surdo devido ao som agudo do microfone, e Pafúncio decidiu que, que para ser o melhor jornalista da noite, ao menos deveria ter mais atenção.
Quando as premiações começaram, ele se aproximou de um grupo de celebridades que estava esperando seu prêmio. Tentando ser sutil, decidiu fazer uma pergunta para a atriz mais famosa da noite, que estava com um vestido deslumbrante. “Se você pudesse ganhar um prêmio por sua habilidade em… em… ficar linda, qual seria o seu segredo?”
A atriz, sem saber se ria ou se ficava ofendida, respondeu: “Apenas muita água e um bom hidratante!”
Pafúncio, anotando furiosamente, comentou: “Então, a verdadeira receita do sucesso é água e cremes, não champanhe e canapés!”
Finalmente, chegou o momento do grande prêmio: “Melhor Fuxiqueiro do Ano”. Pafúncio, com seu jeito desajeitado, decidiu que precisava fazer uma cobertura de última hora. Ele se aproximou da mesa dos vencedores, mas, ao tentar tirar uma selfie com todos, fez uma careta tão estranha que acabou derrubando novamente uma taça de champanhe que, por sorte, atingiu apenas seu próprio terno.
“Parece que sou o verdadeiro vencedor da noite!” exclamou, enquanto tentava limpar a mancha com um guardanapo, que, por acaso, estava mais sujo do que o terno em si.
A premiação terminou em risadas, e Pafúncio, exausto mas feliz, voltou para casa com um material inusitado. Ao escrever sua matéria, ele transformou cada trapalhada em um momento hilário e divertido, fazendo com que seus leitores se divertissem tanto quanto ele.
E assim, Pafúncio provou que, mesmo nas situações mais desastrosas, o humor sempre vence. Afinal, em uma noite cheia de glamour, ele conseguiu fazer todos rirem e esquecerem das formalidades, mostrando que, às vezes, o que mais importa é saber rir de si mesmo.
Fontes:
José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025
Júlia Lopes de Almeida (Carta)
Venho do circo. Lá ao fundo, na noite escura, em uma baixada do morro, há ainda um clarão avermelhado rompendo o toldo e as paredes de lona suja, onde a rapaziada do bairro assobia ao ritmo da charanga desafinada. As personagens da pantomima esbordoam-se na última cena, fazendo voar as cabeleiras e as longas abas das casacas imundas. O povo ri, mas começa a voltar costas ao espetáculo.
Veem já umas lanternas de doceiras trôpegas pela encosta, como estrelinhas cansadas. No meio da treva, mal atenuada pelos espaçados lampiões de gás, diviso as linhas ondeantes do morro, de onde escorre o aroma agreste das plantas, que o relento refresca e ativa.
Sinto-me triste; e a placidez da noite silenciosa, acolhe a minh'alma como um seio materno. Nunca a escuridão me pareceu mais doce; posso mostrar ao céu a amargura da minha face, porque só Deus a vê, e deixar que o desalento do meu espírito se infiltre e transpareça no meu corpo.
Quem há que não tenha tido, ao menos, uma hora dessas, em que toda a força vital parece esgotada e não nos resta nem ao menos a vontade de reagir?
A meu lado uma voz fala, como um rumor continuado de água rolando em pedregulhos baixos.
Mal me atrevo a esboçar um gesto com que lhe responda. Decididamente a tristeza é o agente da preguiça!
A última bexiga da pantomima deve ter rebentado agora nas costas do estalajadeiro, que era velhaco e sonso. Calou-se a charanga, e o clarão rosado do circo sumiu-se de repente na treva.
Aumenta a bulha de passos; ouço uma voz dizendo: — O palhaço é muito engraçado!
Eu por mim achei-o estúpido, repetidor de trapaças antigas, de um rancismo bolorento. Engraxou-se mal, não tocou ao violão e pouco dançou da chula. Mas a razão não estaria do meu lado; a razão nunca está do lado da gente triste.
O palhaço devia ter cumprido a sua missão. Lembrei-me de ter visto torcer-se toda, em um acesso de hilaridade, uma espectadora velha, expondo no auge da expansão o seu único dente descarnado e longo. Outras caras da arquibancada foram surgindo na minha memória.
Olhar para os espectadores é, em certos espetáculos, o melhor espetáculo, e o único pitoresco num circo de roça. O rosto dos velhos tem sobretudo uma cândida expressão de deleite, mais demonstrativa de enlevo que os das crianças mesmo. A alegria desabrocha-lhes por entre as gelhas da face e as pálpebras franzidas, com o frescor viçoso de flores em ruínas. Aquela alegria curiosa, que eu invejo causa-me entretanto uma certa piedade... É a profanação do uso, a abjeção do gosto.
Parece-me que aquelas cozinheiras e operárias que pasmam radiantes para as misérias da arena só se deveriam sentir à vontade em um circo de sedas claras, com festões de lâmpadas elétricas e ramos de violetas em cada camarote...
Um equilibrista fecha a primeira parte, sustentando maravilhosamente uma pena na ponta do nariz.
A vaidade do homem devia ser grande naquele indivíduo! Cruzaram-se fardas de belbutina e casacas luxuosas dos ajudantes na arena.
Cerrei as pálpebras, aspirei o aroma de meu lenço e fiz de conta que estava vendo a pompa circense com que se precediam os jogos no circo de Maxencio... e a ilusão talvez se prolongasse, se uma preta moça e tafula se não lembrasse de roçar pelos meus joelhos, exalando o cheiro de um raminho de arruda espetado na carapinha. Entonteci; e logo tudo me pareceu ignóbil: as desafinações da charanga, as pernas grossas das écuyères (escudeiras) mal calçadas o ondear das fitas e das tarlatanas baratas, a repetição das sortes tantas vezes vistas, os assobios do povo, os estalos dos chicotes e das bofetadas, o ruído da mastigação de um vizinho, que enchia a boca de mendubi (amendoim), o fumo dos cigarros, a deficiência das luzes, e os pregões de um espanhol maltrapilho anunciando biscoitos.
Restabelecido o equilíbrio, notei com surpresa que alguns daqueles saltimbancos tinham logrado prender-me a atenção em uma matinê do S. Pedro. Sim, era a mesma gente, era o mesmo trabalho. Somente a atmosfera através da qual eu os via era outra. Não se comia mendubi, mas pastilhas de chocolate; a sala era clara, limpa, e nos camarotes apinhavam-se crianças lavadas e cheirosas. Nesse dia os artistas tinham trabalhado bem, pareceram-me até pessoas de qualidade, que vinham por excepcional obséquio divertir a gente...
Para penitência relembro uma página de Tolstói, sinto sobre o meu ombro fraco a sua mão pesada e como que o seu espírito sussurra ao meu: — A alegria e a verdade estão neste barracão armado à pressa, como uma tenda de campanha, para a cambalhota e as miséria mal disfarçadas.
Sedas? flores? luzes elétricas! são fantasias para gente de casaca, que não sabe rir. Só a gente rude conserva frescura e sensibilidade de alma. Os únicos velhos que têm riso gostoso são os ignorantes. Vai-te embora.
E eu vim-me embora, pensando nessas coisas quando, eis passa por mim um médico ilustrado a quem ouço dizer: — Pois senhores, o palhaço tem graça!
A opinião dos homens confunde-me. O homem, pelo simples motivo de ser homem, está determinado que tenha de tudo uma visão mais positiva, mais clara e mais perfeita do que a minha. Relembro a cena principal do clown: Um sujeito de casaca e de chicote dá-lhe a incumbência de levar um embrulho de doces a certa moça...
Procuro fixar o resto: não posso. foge-me a ideia para outro assunto.
O céu está estrelado, o ar doce, o aroma das magnólias sai dos jardins e envolve-me toda, como uma túnica invisível, que dá à minha alma uma pureza de Vestal.
Pirilampos salpicam o ar de fulgurantes esmeraldas viajoras. Chego ao alto e volto a vista para o local do circo: tudo em trevas; a noite como que suspira de alívio. Passa-me ainda uma vez pelo espírito o romance explorado pelos velhos contistas: o riso agudo do palhaço que se rebola na arena e que se transmuda em soluços quando nos intervalos se atira sobre o corpo moribundo do filho; as sovas nas crianças roubadas, nos estudos da acrobacia, e o pudor das écuyères, virgens e recatadas.
Para mim, todo o palhaço tem sempre no bastidor um filho moribundo e todas as crianças sinais de pancada sob os maillots (camisas) rosados.
E é talvez por isso que este circo de roça, grotesco, e em que as misérias se mostram tanto a nu, não consegue divertir-me nem dissipar-me a tristeza.
À hora em que vou chegando a casa, está o palhaço, e estão os seus companheiros refazendo as forças com o bife e o vinho da ceia, e rindo-se, ainda por cima, porque a féria foi boa.
Entretanto, (oh! prodígios da imaginação enfeitiçada pelos romancistas!) como que distingo no ar, lá muito perto do céu, o senhor clown enfarinhado e choroso sustentando nos braços um filhinho morto!
E como são horas de dormir, digo-te adeus!"
Tua
FRANCISCA.
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JÚLIA VALENTIM DA SILVEIRA LOPES DE ALMEIDA, nasceu em 1862 no Rio de Janeiro e morreu em 1934 na mesma cidade. Passou parte da infância em Campinas - SP. Seu primeiro livro - Traços e Iluminuras - foi publicado aos 24 anos, em Lisboa. Antes disso já publicara artigos na imprensa, tendo sido uma das primeiras mulheres a escrever para jornais. Com uma linguagem leve, simples, cativou seu público: escreveu e publicou mais de 40 volumes entre romances, contos, narrativas, literatura infantil, crônicas e artigos. Foi abolicionista e republicana além de mostrar, em suas obras, ideias feministas e ecológicas. Contista, romancista, cronista, teatróloga. Fez conferências e colaborou em vários periódicos do Rio de Janeiro e de São Paulo, entre eles Gazeta de Notícias, Jornal do Comércio, Ilustração Brasileira, A Semana, O País, Tribunal Liberal. Casou com o poeta e teatrólogo português Filinto de Almeida, com quem dividiu a autoria do romance A casa verde. Ocupou a cadeira nº 26 da Academia Carioca de Letras. Em seu livro A árvore (1916), defende com rigor o ambiente natural, afirmando que "cortar uma árvore é estrangular um nervo do planeta em que vivemos", preocupação inusitada para a sua época. Seus filhos Afonso Lopes de Almeida, Albano Lopes de Almeida e Margarida Lopes de Almeida também se tornaram escritores.
Fontes:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Publicado originalmente em 1906. Disponível em Domínio Público.
Biografia: Escola Júlia Lopes de Almeida
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Vereda da Poesia = 213
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE
Foi a força do migrante
com seu braço varonil
que moldou este gigante,
hoje, chamado Brasil!
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Poema de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009
MANHÃ
A manhã nasce das muitas janelas
deste sereno corpo fatigado,
sede dos meus caminhos sem cancelas,
na luz de muitos astros albergados.
Casa em que me recolho das mazelas,
dos louros, derroteiros, lado a lado,
para de mim ouvir franca sequela:
Ecce Homo! Eis o triste camuflado.
Essa tristeza antiga em residência,
às vezes se constrói em face alegre,
máscara sem eu mesmo em aparência
num carnaval insólito em seu frege.
O que me salva a cor nessa vivência
é saber que a poesia é quem me rege.
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Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba / PR
Ausência...
O tempo
Descolore
A janela
Mas a esperança
Da tua chegada,
Ainda mantém
Um fio
De brilho
No meu
Olhar.
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Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal
EU SEI QUE VOAREI, NA IMENSIDADE
(João Baptista Coelho, in "Um outro livro de Job", p. 75.)
Eu sei que voarei, na imensidade
Do reino da palavra que é magia
Se as brancas asas gráceis da Poesia
Me derem essa pura caridade.
Com alma solta em franca liberdade
Planarei sobre o mar e a maresia
E tudo o que até aqui não entendia
Verei na limpidez de uma verdade.
Nesse dia em que a treva se dilui
Serei mais do que algum dia já fui
Numa grandeza de alma sem ter fim.
E este mundo será meu por completo
Que no imenso infinito eu me projeto
E já não caibo inteiramente em mim.
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Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP
Eu me faço de blindado.
Amor? Bobagem... Pieguice...
Meu medo é que, apaixonado,
eu me envolva na tolice.
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Soneto de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918
VITA NUOVA
Se ao mesmo gozo antigo me convidas,
Com esses mesmos olhos abrasados,
Mata a recordação das horas idas,
Das horas que vivemos apartados!
Não me fales das lágrimas perdidas,
Não me fales dos beijos dissipados!
Há numa vida humana cem mil vidas,
Cabem num coração cem mil pecados!
Amo-te! A febre, que supunhas morta,
Revive. Esquece o meu passado, louca!
Que importa a vida que passou? Que importa,
Se ainda te amo, depois de amores tantos,
E inda tenho, nos olhos e na boca,
Novas fontes de beijos e de prantos?!
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Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP
Eu sou príncipe tristonho
porque, na história real,
não há, na escada do sonho,
sapatinhos de cristal!...
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Poema de
ROBERTO PINHEIRO ACRUCHE
São Francisco de Itabapoana/RJ
EXALTAÇÃO A SÃO FRANCISCO DE ITABAPOANA
São Francisco de Itabapoana
Como eu gosto de você.
Sua beleza encantadora
Há de sempre resplandecer.
Suas praias, sua grandeza,
Seus campos e floração colorida,
Obra prima da natureza
Eu me orgulho de ter nascido aqui.
Salve seu povo hospitaleiro,
Bom, amigo e trabalhador;
Salve terra abençoada
De São Francisco nosso senhor…
Abraçada pelos rios,
Beijada pelo mar,
Ornada com lagoas
Você é linda, sempre vou lhe amar.
São Francisco de Itabapoana
Onde o sol brilha mais o ano inteiro,
Estrela de grandeza reluzente
Do Estado do Rio de Janeiro.
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Trova de
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Bauru/SP
Ontem, família reunida...
Cantos, abraços, folias.
Hoje, em telas entretida
no silêncio de mãos frias!
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Poetrix de
SUELY BRAGA
Osório/RS
O pensamento voa
ao sabor do vento
com o pássaro que revoa.
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Glosa de
GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS
ESTRELA DO MAR
Mote:
Perguntei para uma estrela
que encontrei à beira-mar:
- O que faço para tê-la
se você pertence ao mar?
(Sarah Rodrigues)
Glosa:
Perguntei para uma estrela
num passeio matinal,
pela praia, logo ao vê-la:
Você é mesmo real?
Era a estrela da alegria,
que encontrei à beira-mar,
que ao enfeitar o meu dia,
enfeitiçou meu olhar!
Como posso não querê-la
se é tão linda e me fascina?
– O que faço para tê-la,
bela estrela pequenina?
Mas fico só no desejo...
Sei que é esse o seu lugar,
só posso lhe dar meu beijo,
se você pertence ao mar!
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Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ
Foi sempre assim! Escondida
no engodo que a desvirtua,
a Verdade anda vestida
quando a Miséria está nua!
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Hino de
CIANORTE/PR
Cianorte de viva esperança
de uma luz reluzente de paz
Óh cidade de encantos perenes
és abrigo de um verde eficaz
Cianorte de braços abertos
que enaltece o mundo feliz
és o fruto de um grande progresso
A grandeza que o povo bem quis
Cianorte, Cianorte
és a fonte de um grande valor
Cianorte de paz e eterno fulgor
que aquece com a chama do amor
Óh que terra celeira e farta
verdejante de intenso vigor
Óh cidade de campos e flores
construída com paz e amor
Cianorte de famas e glórias
és a honra de um povo gentil
por ser capital do vestuário
o orgulho do nosso Brasil
Cianorte, Cianorte
és a fonte de um grande valor
Cianorte de paz e eterno fulgor
que aquece com a chama do amor
= = = = = = = = =
Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ
SOMENTE O AMOR CONSTRÓI
O amor universal é o limite
para infinitas dores e alegria.
Nada o arrefecerá, só acredite
nas bênçãos que do céu Ele te envia.
És a mãe amorosa para os filhos
que são três para só, orientares.
Não é tarefa fácil, mas com brilhos
tens enfrentado lutas aos milhares.
Para quem tem o amor como alimento
e a caridade ao próximo, não julga
atitudes alheias, se o acalento,
que tem a oferecer não é de ajuda;
portanto não dês bola a quem divulga
opiniões vazias , Deus, acuda!
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Uma Lengalenga de Portugal
OS ESCRAVOS DE JÓ
“Os escravos de Jó” é uma cantilena cuja origem, significado e letra é motivo de controvérsia. Presume-se que fazem alusão aos escravos que em África juntavam caxangá (uma espécie de crustáceo). É usada num jogo infantil que remota ao século XVIII. Para se jogar, forma-se uma roda de jogadores e, ao ritmo da lengalenga, inicia-se o jogo passando um objeto que têm na mão direita para o vizinho da direita, ao mesmo tempo que recebem com a mão esquerda o objeto do vizinho da esquerda, trocando-o rapidamente de mão. O que se enganar e deixar cair o objeto, perde e sai da roda.
Os escravos de Jó,
Jogam caxangá.
Tira, põe, deixa ficar.
Guerreiros com guerreiros,
Fazem zigui, zigui, zag. (repete)
= = = = = = = = =
Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO
Tigelinha d’água morna,
o que faz na prateleira?
Esperando o meu benzinho,
que chega segunda-feira.
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR
TECENDO O DESTINO
De dia ela tece,
E a noite, ponto por ponto
Ela destece...
À espera do seu Amor,
Tecendo o Destino…
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Vereda da Poesia
José Luiz Boromelo (Lembranças)
Dia desses encontrei uma fotografia antiga de minha família. Uma época em que se dormia com as janelas abertas ou se recebia os amigos para uma agradável serenata na madrugada. A lembrança dos tempos de infância remete a um passado distante que não volta mais. Da inocência de um menino correndo descalço no pasto, subindo nas goiabeiras e abacateiros desafiando o “nono”, que ameaçava os pirralhos com sua varinha de marmelo preparada para uma eventual utilização nas partes proeminentes da molecada.
Daquele tempo, fixou-se na memória a imagem da harmonia e dos vínculos familiares. Por conta da origem europeia os descendentes de italianos procuravam manter vivos seus costumes, transmitindo aos sucessores os hábitos dos mais velhos. A alegria contagiante daquele povo que tinha por hábito sincronizar os movimentos das mãos com as palavras emitidas em volume bem acima do usual era sua marca registrada. A grande maioria dos imigrantes fincou raízes na zona rural e com o trabalho árduo de sol a sol alavancou o desenvolvimento do país, deixando um legado de riqueza e fartura para as gerações futuras.
Foi com essas recordações que voltei ao passado. À enorme casa avarandada cercada de rosas, hortênsias e margaridas que minha mãe cuidava com carinho. Dos terreiros feitos de tijolos onde se secava o café, das tulhas levantadas com peroba-rosa aplainadas no machado. Do engenho de cana movido por tração animal. Do pomar onde se colhiam as mais saborosas frutas, da horta incrivelmente verde o ano todo. Ao longe se avistava um enorme jatobá que fornecia suas favas de odor forte e adocicado, local preferido das pacas, quatis e macacos. O riacho onde se pescavam lambaris, traíras e bagres. O capão de mato que fornecia bons cabos de louro, sapuva e guajuvira para as ferramentas de corte e de onde se coletava o delicioso mel silvestre. Um verdadeiro paraíso, que hoje vagueia errante em algum lugar da memória.
No sítio em que nasci pouco restou daqueles tempos. Os vizinhos se mudaram e a terra foi ocupada pela monocultura da cana-de-açúcar. A casa avarandada transformou-se em ruínas. A imagem triste do terreiro de café e do curral encobertos pelo mato, o poço d’água canalizado, as tulhas retiradas, o pomar e a horta transformados em área de preservação permanente incomoda. A moenda esquecida embaixo da velha caneleira revela as marcas do tempo. Restou somente o imponente jatobá com sua copa imensa, como que querendo chegar ao céu. Foi o único que escapou da fúria mecanizada e ecologicamente incorreta. Depois de quase cinco décadas, a visita ao sítio foi uma emocionante volta ao passado.
Ainda hoje sinto nos aromas das flores as lembranças de um tempo que se foi. Mas é possível reviver a alegria da infância cultivando a simplicidade, o amor e o respeito ao ser humano e à natureza. Uma maneira de manter vivos na memória os bons momentos da melhor época de minha vida.
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José Luiz Boromelo, é de Marialva/PR, policial rodoviário aposentado, escritor, cronista e agricultor, colaborador da Orquestra Municipal Raiz Sertaneja.
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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025
Jerson Brito (Asas da poesia) 09
JERSON LIMA DE BRITO, nasceu em Porto Velho/RO, em 1973, onde reside. Graduado em Administração e Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia. Sonetista, trovador e cordelista, é membro fundador da Academia Brasileira de Sonetistas (Abrasso), integrante do Fórum do Soneto e Delegado da União Brasileira de Trovadores (UBT) em Porto Velho. Exerce o cargo de Técnico Federal de Controle Externo na SECEX-RO, tendo participado de algumas Mostras de Talentos do TCU. Neto de nordestinos, na infância teve os primeiros contatos com os versos, lendo os folhetos de cordel que seu pai comprava. Já na fase adulta, depois dos 30 anos, deu os primeiros passos na literatura escrevendo sobretudo cordéis. Posteriormente, aderiu aos sonetos e outras modalidades poéticas. Premiado em diversos concursos de trovas, sonetos e cordéis.
O. Henry (Namorado de Quatro Vinténs)
Havia 3 000 moças na Grande Loja. Masie era uma delas. Tinha dezoito anos e vendia luvas para cavalheiros. No emprego aprendeu a conhecer duas espécies de seres humanos — os cavalheiros que compram luvas em grandes lojas e as mulheres que compram luvas para cavalheiros menos afortunados. Além desse amplo conhecimento do gênero humano, Masie aprendera outras coisas. Dera ouvidos à consabida sabedoria de 2 999 outras moças e a armazenara num cérebro tão discreto e prudente quanto o de um gato maltês. Quem sabe a Natureza, prevendo que à moça faltariam sábios conselheiros, lhe houvesse juntado à beleza um ingrediente salvador, a esperteza, assim como dotara a raposa prateada, de valiosa pele, com uma argúcia superior à dos outros animais.
Masie era linda. Tinha cabelos de um louro intenso e o porte tranquilo de uma senhora a fazer demonstrações culinárias numa vitrina. Masie ficava a postos atrás do seu balcão na Grande Loja, e quando a gente fechava o punho para tirar a medida das luvas, ao fitar a moça, pensava logo em Hebe; e se a olhava novamente, punha-se a conjeturar em como passara ela pelos olhos de Minerva.
Quando o chefe do departamento não estava prestando atenção, Masie mascava tutti frutti; quando ele a observava, ela erguia os olhos para o céu e sorria pensativamente.
Esse é o sorriso das vendedoras de loja, e suplico ao leitor que o evite, a menos que esteja protegido por calosidade do coração, caramelos ou afinidade com as diabruras de Cupido. Tal sorriso pertencia às horas de folga de Masie e não à loja, mas o chefe deve ter o que lhe cabe. É o Shylock das lojas. Quando vem meter o nariz em algo, já se sabe que é para recolher benefício. Ostenta um olhar meloso sempre que contempla uma moça bonita. Naturalmente, nem todos os chefes de departamento são assim. Há poucos dias os jornais deram notícia de um com mais de oitenta anos de idade.
Certa feita, Irving Carter, pintor, milionário, turista, poeta e automobilista, entrou na Grande Loja. Cumpre dizer que ali não fora por vontade própria. O dever filial o agarrara pelo colarinho e o arrastara até a loja, enquanto sua mãe percorria a seção de estatuetas de bronze e terracota.
Carter dirigiu-se para o balcão de luvas a fim de matar o tempo. Sua necessidade de luvas era legítima; esquecera-se de trazer as suas. Mas seu ato de modo algum carece de justificativa, pois jamais ouvira falar de namoros em balcões de luvas. Ao se avizinhar do seu destino, hesitou, subitamente cônscio dessa desconhecida fase da menos valiosa das atividades de Cupido.
Três ou quatro gajos insignificantes, vestidos espalhafatosamente, inclinavam-se sobre o balcão, batalhando com os intercessivos protetores das mãos, enquanto moças casquinantes serviam-lhes de vivazes segundos no ataque à estridente corda da garridice. Carter deveria ter-se retirado, mas já se adiantara muito. Masie surgiu-lhe pela frente, por detrás do seu balcão, com um olhar inquiridor em olhos tão fria, bela e calidamente azuis quanto os lampejos do sol estival num iceberg a vogar pelos mares meridionais.
Foi então que Irving Carter, pintor, milionário, etc., sentiu um quente rubor subir-lhe às faces aristocraticamente pálidas. Mas não por falta de confiança em si próprio. O rubor era de origem intelectual. Percebeu imediatamente que passara à categoria dos jovens insignificantes que cortejavam as moças casquinantes em outros balcões. Ele próprio debruçou-se sobre o acarvalhado ponto de encontro de um Cupido popular, desejando, no íntimo, conquistar as boas graças de uma vendedora de luvas. Não era melhor do que Bill, Jack ou Mickey. Sentiu então uma certa tolerância para com eles e um desprezo resoluto e corajoso pelas convenções nas quais fora criado, além do firme propósito de conquistar essa criatura perfeita para si.
Depois de pagar as luvas e receber o embrulho, Carter demorou-se ainda alguns instantes. As covinhas nos cantos da boca rósea de Masie se acentuaram. Todos os cavalheiros que compravam luvas demoravam-se daquela maneira. Ela curvou o braço, que, como o de Psiquê, a manga de sua blusa deixava entrever, e apoiou o cotovelo sobre o vidro da montra.
Carter nunca antes se encontrara numa situação que não dominasse completamente. Agora, porém, estava mais atrapalhado do que Bill ou Jack ou Mickey. Não teria oportunidade de encontrar-se com aquela linda moça numa reunião social. Sua mente esforçou-se por recordar a natureza e os hábitos das mocinhas de loja, segundo o que deles soubera por leitura ou conversa. De qualquer maneira, tinha a noção que elas não faziam questão cerrada de uma apresentação formal. Seu coração pôs-se a bater violentamente ao pensamento de propor um encontro não convencional a essa linda e virginal criatura. O tumulto de seu coração, entretanto, deu-lhe coragem.
Depois de algumas observações amáveis e bem recebidas sobre assuntos gerais, colocou seu cartão perto da mão da moça, sobre o vidro.
— Perdoe-me, por favor, se lhe pareço atrevido — disse —, mas ferventemente espero que me dê o prazer de vê-la outra vez. Aqui está o meu nome; afianço-lhe que é com maior respeito que lhe peço a honra de ser um de seus am... conhecidos. Posso ter esperanças desse privilégio?
Masie conhecia os homens principalmente homens que compram luvas. Sem hesitar, encarou o rapaz francamente e disse, com olhos sorridentes:
— Claro. Acho que tem razão. Não saio habitualmente com estranhos. Não fica bem a uma moça. Quando desejaria ver-me de novo?
— Logo que me der licença — declarou Carter. — Se me permite ir buscá-la era sua casa, eu...
Masie deu uma risada cristalina.
— Oh, isso não! — exclamou enfaticamente. — Se visse nosso apartamento! Somos cinco a morar em três quartos. Só imagino a cara que mamãe faria se me visse entrar com um cavalheiro!
— Então, em qualquer outro lugar que lhe seja conveniente — disse o enamorado Carter.
— Olhe — sugeriu Masie, com um olhar radioso a iluminar-lhe a face aveludada —, acho que quinta-feira à noite está bem. Esteja na esquina da Oitava Avenida com a Rua Quarenta e Oito, às sete e meia, sim? Moro ali pertinho. Tenho porém, de estar de volta às onze. Mamãe nunca me deixa chegar mais tarde.
Carter, agradecido, prometeu comparecer ao encontro, e em seguida apressou-se a ir encontrar-se com a mãe, que o procurava para saber-lhe a opinião sobre uma Diana de bronze.
Uma vendedora de olhos miúdos e nariz obtuso achegou-se a Masie, com um amistoso olhar de soslaio.
— Agarrou o grã-fino, Masie? — perguntou, com familiaridade.
— O cavalheiro pediu licença para me visitar — respondeu Masie, dando-se ares, enquanto guardava o cartão de Carter no seio.
— Licença para visitá-la! — repetiu a dos olhos miúdos com um muxoxo. — Falou em jantar no Waldorf e dar um giro de carro depois?
— Ora, cale-se! — replicou Masie, aborrecida. — Você não está acostumada a coisas finas. Ficou despeitada desde que aquele cocheiro de carro pipa a levou a um restaurante chinês. Não, ele não mencionou o Waldorf; mas no seu cartão de visitas há um endereço da Quinta Avenida, e se ele me oferecer um jantar, pode estar certa de que não será onde os garçons usem rabicho!
Ao sair da Grande Loja com a mãe, na sua eletrizante baratinha, Carter mordeu o lábio, com uma dor imprecisa no coração. Sabia que o amor o visitara pela primeira vez nos vinte e nove anos de sua existência. E o fato de o objeto do seu amor ter aquiescido tão prontamente a um encontro de esquina, embora tal encontro representasse passo importante para a realização de seus desejos, o enchia de torturantes apreensões.
Carter não conhecia moças de loja. Não sabia que seu lar é, amiúde, um quarto minúsculo, mal habitável, ou uma casa abarrotada de parentes. Seu locutório é a esquina, o parque sua sala de visitas, a avenida seu jardim; todavia, na maioria dos casos, são tão impolutas e donas de si mesmas nesses locais quanto uma dama em seu aposento cheio de tapeçarias.
Certa tarde, ao crepúsculo, duas semanas após o primeiro encontro, Carter e Masie passeavam de braços dados num pequeno parque mal iluminado. Encontraram um banco retirado, sob uma árvore, e nele se sentaram.
Pela primeira vez, Carter passou gentilmente um dos braços ao redor da moça, que pousou a cabeça brônzeo-dourada no seu ombro.
— Chii! — suspirou ela, grata. — Por que nunca se lembrou disso antes?
— Masie — começou Carter, seriamente —, decerto já sabe que a amo. Peço-lhe, sinceramente, que se case comigo. Já me conhece o bastante para não ter dúvidas sobre mim. Amo-a e quero que me pertença. A diferença de nossas condições não me importa.
— Que diferença? — perguntou Masie, curiosa.
— Bem, não há nenhuma — respondeu Carter apressadamente —, exceto na mente de gente tola. Posso proporcionar-lhe uma vida de luxo. Minha posição social é inatacável e disponho de grandes recursos.
— Todos dizem isso — observou Masie. — É o engodo que oferecem. Suponho que, na realidade, você trabalhe numa mercearia ou nas corridas. Não sou inexperiente quanto pareço.
— Posso dar-lhe todas as provas que quiser — retrucou Carter, gentilmente. — Eu a quero, Masie. Amei-a desde o primeiro dia em que a vi.
— Isso acontece com todos — disse Masie, com um riso divertido —, pelo que dizem. Se eu encontrasse um homem que se embeiçasse por mim só na terceira vez, acho que ficaria caída por ele.
— Por favor, não diga essa coisas — suplicou Carter. — Ouça-me, querida. Desde que lhe fitei olhos pela primeira vez, você se tornou a única mulher do mundo para mim.
— Que brincalhão! — sorriu Masie. — A quantas já disse a mesma coisa?
Carter, porém insistiu. Finalmente, chegou até a pequenina alma, frágil e vibrátil, que existia alhures no âmago daquele seio adorável. Suas palavras penetraram um coração cuja mesma leviandade era sua maior armadura. Masie olhou Cárter com olhos que viam. E um colorido quente subiu-lhe às faces frias.
A tremer, convulsamente, suas asas de mariposa se fecharam e ela pareceu prestes a pousar na flor do amor. Iluminou-lhe a mente um débil clarão da vida, e de suas possibilidades, no lado de lá do balcão da luvaria. Carter sentiu a mudança e aproveitou a ocasião.
— Case-se comigo, Masie — murmurou suavemente. — Deixaremos esta feia cidade em busca de outras, lindas. Esqueceremos o trabalho e os negócios, e a vida será um longo feriado. Sei para onde vou levá-la. Lá já estive muitas vezes. Imagine uma praia onde o verão é eterno, onde as ondas estão sempre a murmurar na areia branca e onde a gente é livre e feliz como crianças. Viajaremos para essas praias e lá ficaremos enquanto você quiser. Numa dessas cidades longínquas há grandes e lindos palácios, e torres cheias de belos quadros e estátuas. As ruas da cidade são de água e nelas viajaremos em...
— Já sei — interrompeu Masie, aprumando-se subitamente. — Gôndolas.
— Isso mesmo — sorriu Carter.
— Logo pensei que fosse isso — declarou Masie.
— Então — prosseguiu Carter — continuaremos a viajar pelo mundo e visitaremos o que quisermos. Depois das cidades da Europa, veremos a Índia e suas velhas cidades, e andaremos em elefantes e conheceremos os templos maravilhosos dos hindus e dos brâmanes, e os jardins do Japão, e as caravanas de camelos, e as corridas de carros na Pérsia, e todas as vistas exóticas de países estrangeiros. Não acha que iria gostar, Masie?
Masie levantou-se.
— É melhor irmos para casa — disse friamente. — Está ficando tarde.
Carter concordou. Aprendera a conhecer-lhe o humor agreste e variável e sabia que era inútil contrariá-la. Sentia-se, porém, algo triunfante e feliz. Por um momento lograra prender, embora com fio de seda, a alma dessa Psiquê bravia, e tinha muita esperança. Por uma vez, fechara ela as asas e pousara a mão fria na sua,
Na Grande Loja, no dia seguinte, a companheira de Masie, Lulu, puxou-a para um canto do balcão.
— Como vai o romance com o seu grã-fino? — perguntou.
— Oh! aquele? — disse Masie, ajeitando os cachos do cabelo. — Tudo acabado. Olhe, Lu, sabe o que o sujeito queria que eu fizesse?
— Que entrasse para o teatro? — arriscou Lulu, sem fôlego.
— Não, não tem tanta classe assim. Queria que eu me casasse com ele e que fossemos passar a lua-de-mel em Coney Island*.
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* Coney Island = grande e famoso parque de diversões de Nova Iorque, onde se encontram réplicas miniaturais dos passeios descritos por Carter.
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O. Henry, pseudônimo de William Sydney Porter, nasceu em 11 de setembro de 1862, em Greensboro, Carolina do Norte/EUA. Ele teve uma infância marcada por várias mudanças, já que seu pai era um médico e sua mãe morreu quando ele era jovem. Em sua juventude, trabalhou em diversas funções, incluindo como balconista e farmacêutico. Em 1896, após ser acusado de desvio de fundos em seu trabalho como caixa em um banco, ele se mudou para a América do Sul, onde começou a escrever. Ao retornar aos Estados Unidos, ele adotou o pseudônimo O. Henry e começou a publicar contos em revistas, ganhando fama por suas narrativas envolventes e reviravoltas surpreendentes. O. Henry teve uma vida pessoal tumultuada, marcada por problemas financeiros e saúde. Ele faleceu em 5 de junho de 1910, em Nova York, mas deixou um legado duradouro na literatura com suas histórias que capturam a essência da vida urbana e a natureza humana. O. Henry é lembrado por seu estilo ágil e por suas histórias que frequentemente apresentam finais inesperados, tornando-o um dos mestres do conto curto na literatura americana.
Fontes: O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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