O pedido, por vezes, emergia do rádio, mas normalmente vinha mesmo da minha mãe, e sua voz serena, afinada, tomava a casa, invadindo-a – e a mim, e a minha vida – a partir do quarto de costura, da cozinha, do quintal.
Eu não entendia os adultos. Por que nem às paredes ela podia confessar de quem gostava?
As canções eram uma passagem secreta para esse mundo que me esperava quando eu tivesse menos cabelo, fosse indiferente às crianças e conseguisse amarrar meus próprios cadarços.
Eram elas que me alertavam que la distancia hace el olvido, que esa paloma no era otra cosa más que su alma, que tengo miedo a perderte, perdete outra vez, que solamente una vez amé en la vida (solamente una vez, y nada más).
Eu ainda não sabia o que eram os idiomas, e achava bonito aquele jeito de falar uma palavra conhecida em meio a tantas outras inventadas – um truque que, soube depois, se chamava mexicano, e vinha de Cuba, da Argentina, de Acapulco (Acapulco era o lugar mais lindo do mundo, logo depois do Rio de Janeiro).
O rádio (imenso, de madeira, grandes botões roliços, no centro um palmo de tecido de xadrez miúdo, parecendo uma cortina prestes a se abrir), ficava na cozinha. Eu o arrastava ao quarto de costura, à janela que dava para a varanda, e aí me percebia que meu coração (un corazón de melón, de melón melón melón) batia em ritmo de bolero, de rumba, de samba-canção.
A música se misturava à vida. Era a vida.
Quando o carteiro chegou, e seu nome gritou, com uma carta na mão, minha mãe lavava roupa no quintal. Risque meu nome do seu caderno – minha mãe varria a casa – eu não suporto o inferno – estendia camas – do nosso amor fracassado. Que queres tu de mim? (minha mãe temperava o feijão) que fazes junto a mim? (minha mãe descamava as sardinhas) se tudo está perdido, amor? (minha mãe refogava coxas, sobrecoxas, aposta). Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada – minha mãe com o ferro de passar – sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar.
Enquanto o planeta pulsava iê iê iê, eu queria a rosa mais linda que houver, e a primeira estrela que vier, para enfeitar a noite do meu bem.
Nunca soube o que ia dentro da minha mãe, dos sentimentos que nem às paredes ela confessava. Mas inventei que dentro do rádio havia pessoinhas miúdas (do tamanho dos índios e cowboys que vinham nos vidros de Toddy), e que se a cortina xadrez se abrisse de repente (um dia se abriria), eu os veria – Dolores Duran, Ângela Maria, Dalva e Herivelto, Trio Los Panchos – de vestido vermelho, de sombrero, em seu mundo de miniatura feito de desenganos, desditas, perfídias e ilusões.
Eu não queria ser adulto, para querer quem não me quer, e quem me quer mandar embora. Para ter de me perguntar o que será da minha vida sem o teu amor, da minha boca sem os beijos teus, da minha alma sem o teu calor. Seria como eu era para sempre, sem saber que a deusa da minha rua tem os olhos onde a lua costuma se embriagar, sem me importar se Conceição vivia no morro a sonhar com coisas que o morro não tem, sem amanhecer pensando em ti, anoitecer pensando em ti, sem me cansar de pra você não ser ninguém.
Mas a vida veio e levou a voz de minha mãe (qué bonitos ojos tienes, debajo de esas dos cejas), o rádio do meu avô (por que não paras, relógio?), os lábios que beijei, mãos que eu afaguei (as mãos salpicadas de branco de minha avó), e a diminuta Dalva (tudo acabado entre nós, já não há mais nada) para trás do tecido xadrez que nunca se abriu.
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EDUARDO AFFONSO, arquiteto mineiro de Belo Horizonte/MG, 1950. Colunista do jornal O Globo. Coordena a Oficina Literária Eduardo Affonso, voltada para cronistas. Participa do coletivo literário Flique.
Fontes:
Blog do Eduardo Affonso. 30 janeiro 2025.
https://tianeysa.wordpress.com/2025/01/30/radio-montanheza-zyv-4/
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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