quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Renato Frata (Memórias)

A maioria de meus amigos usava botinas. Marrons, pretas, amarelas, de couro de búfalo. Engraxadas, lustradas, limpas, outras craqueadas, como a cara do freguês. Uma lindeza de calçado que me dava certa inveja, vez que meus pés calçavam, por contingência financeira, o 
par de Conga azul que durava uma eternidade. Machucava os pés, punha neles dose extrema de chulé, imensa quentura e me fazia escravo de sua durabilidade. As unhas dos dedões até que lhe fizeram buracos, mas nem assim o Conga estragou.

Falo da época em que os pais só trocavam os calçados dos filhos quando esses já não lhes cabiam nos pés e quase ninguém possuía dois pares. Usava-se o mesmo de domingo a domingo, até se acabarem, para provar que o verbo acabar, nessa época, era nossa salvação.

Minha mãe me obrigava a lavar os meus semanalmente com escova e sabão de soda, especialmente em época de chuva que, não tendo o sol para secá-los, usava-se a taipa do fogão. No outro dia, estavam ótimos, mas cheirando à fumaça, meios tortos e duros, e isso era o de menos.

De certo que meus amigos também me invejavam, pois não possuindo o Conga de sola de borracha, novidade para a molecada, os sapatões que também aqueciam os pés eram. desconfortáveis e, por igual, de vida longa. Mas ninguém reclamava, aceitando a realidade. Nessa época, pedia-se tudo, mas se o pai podia, ganhava–se o necessário.

Fui trabalhar numa frutaria com a obrigação de abastecê-la de agrião e, para isso, o dono colocou em minhas mãos uma bicicleta com a qual, toda manhã por volta das seis, saía para buscar, numa chácara a uns cinco quilômetros de distância, uma cesta grande de verduras.

Fiz isso com gosto por um bom tempo, e a bicicleta foi um lenitivo que me levava a voar nos meus sonhos e enquanto "voava" com ela pelas ruas buraquentas, poeirentas ou enlameadas, até que chegou o fim do mês e com ele meu primeiro ordenado. Caramba, meu!

Com o maço de notas de trocados nas mãos, um desassossego tomou conta do meu eu; como gastá-las?

Os olhos brilhavam de emoção, e claro, jamais compraria outro par de Conga, por isso pensei nas botinas que me igualariam aos meus amigos. Eu tinha dinheiro, podia tudo e, terminado o expediente, com o dinheiro 'queimando' em meu bolso, corri à loja. Mostrei à moça a quantia e ela sorriu, ao tempo que desceu da prateleira dois pares das botinas que brilhavam; um preto e um marrom e, ao vê-las tão junto de mim, ao lado dos meus pés, minha alma resplandeceu. Eram lindas, macias e ficaram bem nos meus pés. Mas ao olhar a vitrina ali do lado, outro par de sapatos me chamou á atenção. Reluzia num pedestal, um par de sapatos femininos. Olhei-os bem e os imaginei nos pés da minha mãe. Sim, vi-a calçada neles, desfilando pela igreja aonde ia todos os domingos, até que resolvi; deixaria as botinas para o próximo pagamento. Os sapatos para ela, a meu ver, eram mais importantes e necessários.

A vendedora, que a princípio não entendera o motivo da repentina troca, sorriu dizendo: - Ela vai gostar, ora, se vai. Um presente desse não se recebe a todo momento. São os sapatos mais bonitos que temos aqui...

Então, mandei embrulhar, paguei-lhe com o maço de notas sem receber troco, e sai apressado com o pacote. Minhas mãos tremiam de emoção. Por isso, corri pela rua como aloprado. Eu daria ã minha mãe o melhor dos presentes que meu salário podia e não sei, se de emoção ou do calor, ou das duas coisas juntas, meu coração pulava de arrebatamento. Eu daria a ela um presente comprado com o meu primeiro salário.

Pois chispei, abri o portão no peito, invadi o quintal, pulei na cozinha e, com um saboroso sorriso cortando a cara, a encontrei a mexer polenta com a indefectível colher de pau.

Estranhou aquela balbúrdia, mas me recebeu com um abraço.

- Upa! Meu filho! Que bom que você voltou, logo a boia fica pronta.

Olhou-me sem entender, diante do pacote que lhe era estendido, até que o recebeu, abriu-o e corou. Seus lábios tremiam, sua testa aflorou suor e ficou tão vermelha quanto a crista do galo Pimpão, que ciscava por ali. Então, como se tivesse levado baita um susto, de cenho fechado retendo e mastigando o choro, olhou-me com olhos de pleno amargor, virou-se e voltou a embrulhar os calçados, depositando o pacote na mesa e, lentamente, se agachou ã minha altura.

Segurou com ambas as mãos os meus ombros e me disse, olhando seriamente nos meus olhos:

- Meu filho, esse é o dia mais feliz da minha vida. Poderei viver cem anos e ganhar milhões de presentes, mas jamais esquecerei esse seu gesto de amor. Muito obrigada. Mas... é também o dia mais triste para mim, pois não poderei aceitá-lo. Preciso do sapato, é verdade, e ficaria linda com ela nos pés, mas o seu dinheiro... preciso mais. Preciso para o aluguel que está atrasado... e essa dívida está me fazendo perder os cabelos...

Engoliu grosso soltando um gemido de dor e eu não sei onde guardei minha decepção. As lágrimas tomaram meu rosto e subiram comigo ã forquilha do araticunzeiro que floria e ali, e em meio às suas folhagens e à aragem que bolinava os ramos, molhei seus galhos com a tristeza vertida em brasas. Que decepção!

Não conseguia entender o porquê de ela dar mais valor à dívida do maldito aluguel, que ao meu esforço do mês inteiro sob frio e calor em subidas e descidas com uma cesta pesada à garupa da bicicleta que me obrigava a guiá-la com as pernas enfiadas no seu quadro, tão alta que não me permitia sentar no selim.

Ao tempo, ela saiu da cozinha pisando seus velhos chinelos de pano. Levava entre dedos como se segurasse uma bandeja, o pacote de calçados com a fita solta e, na pressa, sem dar conta que a assistia, passava o avental nos olhos...

- Porca miséria! - arrulhou o âmago do seu ser - Porca miséria de vida!
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RENATO BENVINDO FRATA, trovador e escritor, nasceu em Bauru/SP, em 1946, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Além de atuar com contador até 1998, laborou como professor da rede pública na cadeira de História, de 1968 a 1970, atuou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Paranavaí, (hoje Unespar), atualmente aposentado. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da paranaense Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

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