sábado, 1 de fevereiro de 2025

Hans Christian Andersen (Os sapatos vermelhos)

Era uma vez uma menininha - uma menina muito linda, muito delicada. No verão ela andava descalça, porque era muito pobre. No inverno usava uns sapatos de pau, grosseiros e pesados, de modo que o peito do pé ficou todo vermelho, bem vermelho.

No centro da aldeia morava a mulher do velho sapateiro, uma senhora já muito idosa. Ela se pôs a coser, e fez um par de sapatinhos, de umas tiras de pano vermelho. Esmerou-se e fez o melhor que pode, mas os sapatos eram muito esquisitos. Contudo, foram feitos com boa intenção, e ela os deu a Karen.

A boa mulher deu-lhe os sapatos, e ela teve de calça-los, pela primeira vez, mesmo no dia em que sua mãe foi sepultada. Certamente não eram próprios para o luto; mas a menina não tinha outros, por isso meteu neles os pezinhos nus e foi seguindo atrás do pobre esquife de pinho.

Aconteceu que passou uma grande carruagem, levando uma velha senhora, que ficou com muita pena da menina. E ela disse ao pároco:

- Dê-me essa menina! Eu me encarreguei de educá-la, e serei boa para ela.

Karen pensou que tinha agradado a senhora por causa dos sapatos. mas a velha dama declarou que eram horrorosos, e mandou queimá-los. E a menina recebeu roupas boas e apropriadas, e aprendeu a ler e a coser. Diziam que ela era agradável, mas seu espelho, esse, dizia-lhe:

- És muito mais do que agradável - és linda!

Naqueles dias andava a rainha de viagem pelo país, e levava consigo a filhinha, a princesa. O povo amontoava-se ao redor do palácio para vê-las - e Karen lá estava também. 

A princesa postou-se em uma sacada para que todos a vissem; não tinha comitiva, nem trazia coroa de ouro, vestia um lindo vestido branco, e calçava uns sapatos muito lindos, de verniz vermelho.

Karen recebera um vestido novo, e precisava também de um par de sapatos para completar o traje. O rico sapateiro da cidade encarregou-se de fazê-los. A loja, em que ela foi para que ele tomasse as mediada, estava cheia de vitrines, onde se viam muitos sapatos lindos, de couros brilhantes. Era uma vista encantadora, mas a velha dama, que não enxergava bem, não se interessou em examiná-los, porque não tinha nenhum prazer nisso. Entre os sapatos havia um par vermelho, exatamente como os da princesinha. E que lindos eram! Disse o sapateiro que tinham sido feitos para a filha de um conde, mas que ficaram justos demais.

- Isto deve ser verniz - disse a velha senhora- são tão brilhantes!

- Sim, eles brilham! - replicou Karen.

E ficaram-lhe bem nos pés, e foram comprados. Mas a velha dama não sabia que eram vermelhos.

No domingo seguinte seria celebrada a Sagrada Comunhão, e Karen iria participar dela pela primeira vez. Ela olhou para os sapatos brancos, olhou para os vermelhos, olhou de novo para os vermelhos - e acabou por calça-los.

Era um dia muito luminoso. Karen e a velha dama iam pelos campos, pelo meio dos trigais, e havia muito pó. À porta da igreja estava um velho soldado barbudo, com a sua muleta porque era inválido. A barba do velho era esquisita, mais vermelha do que banca. Era de fato quase completamente vermelha. O velho inclinou-se até o chão e perguntou à velha senhora se podia escovar-lhe os sapatos. E Karen também estendeu o pezinho.

- Vejam que lindos sapatos de dança! - disse o soldado velho. - Não se esqueçam de apertar bem, quando dançarem!

E, dizendo isto, deu palmadinha nas solas. A velha dama  deu-lhe uns cobres e entrou na igreja com Karen.

Todas as pessoa na igreja olhavam para os sapatos vermelhos de Karen. Quando ajoelhou à mesa da Comunhão, ela só pensava nos sapatos vermelhos, parecia-lhe vê-los flutuando diante dos olhos. E ela se esqueceu de rezar as orações.

Saíram todos da igreja, e a velha dama entrou na carruagem. Já Karen ia erguendo o pé para subir também, quando o velho soldado, que ainda estava parado ali, disse:

- Olhem que lindos sapatos de dança!

Karen não pode resistir. Deu alguns passos de dança e, sem poder dominar-se, seus pés continuavam a dançar. Parecia que os sapatos tinham adquirido poder sobre ela. Saiu dançando, rodeou, dançando, a igreja, sem conseguir parar - o cocheiro teve de ir buscá-la e erguê-la nos braços, para metê-la no carro. Mas os pés continuavam dançando, de sorte que ela batia com eles na boa velha, machucando-a. Afinal, tiraram-lhe os sapatos e os pés ficaram quietos.

Quando chegaram na casa, os sapatos foram guardados em um armário, mas Karen não podia deixar de ir olhar para eles.

Um dia a velha dama adoeceu, e disseram que não poderia sarar. Precisava agora que alguém tratasse dela, e ninguém mais do que Karen devia incumbir-se dessa tarefa. Mas ia realizar-se um baile na cidade, e ela foi convidada. Karen olhou para a sua mãe adotiva, que talvez não escapasse da morte, olhou para os sapatos vermelhos, e achou que não tinha obrigação de ficar junto à doente. Calçou-os e foi para o baile - ou antes, eles foram para o baile, e começaram a dançar!  Mas quando Karen queria ir para a direita, eles dançaram para esquerda; quando ela quis dançar em uma ponta, desceram a escada, saíram para a rua, atravessaram as portas da cidade. 

Dançando saíram da cidade, e dançando foram para a floresta sombria - e ela tinha de dançar! Viu então que alguma coisa brilhava acima das árvores, e pensou que fosse a lua, porque parecia uma cara. Mas enganara-se, era o rosto do soldado velho de barba vermelha, e ele acenou-lhe, dizendo:

- Vejam que lindos sapatos de dança!

Ficou a menina muito assustada, e quis lançar fora os sapatos vermelhos, mas eles se lhe apegaram aos pés com tanta força, que não pode tirá-los. Rasgou as meias e arrancou-as, mas os sapatos pareciam enraizados nos pés, e continuavam a dançar, e ela teve de ir dançando pelos campos e pelas pastagens, à chuva e ao sol, de dia e de noite.

Dançou no cemitério, que estava aberto, mas os mortos não a acompanharam na dança, tinham coisa melhor a fazer. Quis sentar-se em um túmulo pobre, onde crescia a losna, mas para ela não havia descanso nem repouso. Quando ia dançando para a porta da igreja, que estava aberta, viu  que lá estava parado um anjo de longas vestes brancas e de asas tão compridas que chegavam até os pés. O rosto era severo e grave, e tinha na mãos uma espada larga e brilhante.

- Piedade! - gritou Karen.

Mas nem chegou  a ouvir a resposta do anjo, porque os sapatos a arrastaram - levando-a porta afora para os campos, para as estradas, para os caminhos, por cima de tocos e de pedras, por toda a parte era ela obrigada a dançar.

Uma manhã passou dançando pela frente de uma porta aberta, e que ela conhecia muito bem. Vinham trazendo para fora um esquife, coberto de flores. Viu então que a velha dama tinha morrido, e pareceu-lhe que estava agora abandonada de todos, e condenada pelo Anjo do Senhor.

E ela dançava sempre, era compelida a dançar, mesmo dentro da noite negra. Os sapatos arrastavam-na por sobre as sarças e os espinheiros, e ela já tinha os pés escorrendo sangue.

Foi, então, sempre dançando, pelo trigal afora, que chegou a uma linda casinha solitária. Sabia que morava ali o carrasco, e bateu com os nós dos dedos na vidraça e disse:

- Sai, sai cá para fora! Eu não posso entrar, porque tenho de dançar!

O carrasco disse-lhe:

- Acaso não sabes quem sou? Eu sou o homem que corta a cabeça dos malvados, e vê como meu machado está impaciente!

- Não, não me cortes a cabeça! Senão nunca poderei arrepender-me das más ações. Mas peço-te que me cortes os pés, com estes sapatos vermelhos!

Contou, então, o que acontecera. O carrasco cortou-lhe fora os pés com os sapatos vermelhos - e eles lá se foram dançando, para as profundezas das floresta.

Então ele fez para ela um par de pernas de pau, com muletas, e ensinou-lhe um cântico, aquele que os condenados sempre cantavam, e ela beijou a mão que brandia a acha, e foi embora, pelo meio da charneca.

- Muito tenho padecido por causa daqueles sapatos vermelhos! - disse ela. - Irei agora à igreja, para que  todos me vejam!

E foi, o mais depressa que pode, para a igreja. Quando lá chegou, viu os sapatos vermelhos que dançavam na sua frente. Ficou muito assustada, e voltou para casa.

Passou toda a semana muito triste, e chorou muitas lágrima, mas quando chegou o domingo, disse:

- Agora já sofri e lutei tanto... creio que estou tão boa como qualquer daqueles que entram na igreja de cabeça tão erguida!

E lá se foi ela, com ar insolente; mas ainda não tinha passado do portão, e já avistou os sapatos vermelhos que dançavam diante dela! Ficou mais assustada do que nunca, e deu volta - mas desta vez tinha no coração um verdadeiro arrependimento. Foi à casa do pároco, e pediu-lhe que a tomasse como criada, que seria diligente, e faria tudo quanto pudesse, que não fazia questão de salário, pois só queria um teto para se abrigar, e viver com pessoas bondosas. 

A mulher do pastor ficou compadecida da menina e tomou-a ao seu serviço. E ela mostrou-se mesmo diligente e fiel. À noite, quando o pastor lia a Bíblia, ela ouvia atentamente, muito quieta. Todas as crianças gostavam muito dela, mas quando falavam a respeito de vestidos, e de coisas de luxo, ela sacudia a cabeça.

No domingo, ao saírem para a igreja, perguntaram-lhe se ela queria ir com eles. Mas Karen olhou tristemente para as muletas, com os olhos cheios de lágrima, e foram sem ela. Foram ouvir a palavra de Deus, e ela ficou sentada no seu quartinho, sozinha. No quarto só cabiam a cama e uma cadeira. Sentou-se, pois, com o livro de oração nas mãos, e quando estava lendo com um espirito cheio de humildade, ouviu o som do rojão, que o vento trazia da igreja, ergueu o rosto banhado de lágrima, dizendo:

- Oh! Senhor! Ajuda-me!

Então o sol brilhou com todo o esplendor, e o Anjo de vestido branco, aquele mesmo Anjo que ela vira naquela noite, à porta da igreja, estava diante dela. Não tinha a espada afiada na mão, trazia agora um ramo verde, coberto de rosas. Tocou com ele o teto - e o teto foi se erguendo, se erguendo... e onde o Anjo tocava aparecia imediatamente uma estrela de ouro. Tocou então as paredes e elas foram se afastando para longe, para longe... e ela viu o órgão, que ressoava tão belos hinos - porque a igreja tinha vindo ter com a pobre menina, no seu pequenino quarto, ou o seu quarto se havia transformado em igreja. Ela estava, também entre os fieis. Alguém, a seu lado, lhe disse:

- Que bom que vieste, Karen!

- Foi pela graça de Deus! - respondeu ela.

Soou o órgão, espalhado suas notas cheias de alegria. As vozes das crianças ergueram-se, suaves, cantando em coro, o sol, que entrava pela janela, veio direito ao banco onde estava Karen, enchendo-a de fulgor, e seu coração sentiu-se tão cheio de luz, e de paz, e de alegria, que estalou. E sua alma voou para o céu, em um raio de sol.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

Hans Christian Andersen foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.

Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Nenhum comentário: