quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Casa da Mãe Joana”

A conhecida expressão "Casa da Mãe Joana", usada quando se quer evidenciar um ambiente marcado pela permissividade, daqueles onde se entra e sai sem controle, todo mundo manda e ninguém obedece, espécie de babel sem qualquer organização, carente de regras mínimas de convivência civilizada. Hodiernamente, trata-se de um local onde todos fazem o que bem entendem, em ambientes presenciais ou virtuais, como acontece, neste último caso, com certos grupos de WhatsApp, com suas postagens repetitivas e impertinentes, sem qualquer interesse para os demais que dele fazem parte.  

A expressão remonta à época de Joana I, rainha de Nápoles e Condessa de Provença (que viveu de 1326 até 1382, quando morreu assassinada), uma jovem linda, inteligente, endinheirada e com atitudes à frente de seu tempo, pois bancava do próprio bolso, boêmios, artistas e intelectuais, dos quais se arvorou ser uma espécie de protetora. Joana levou uma vida desregrada, vivendo de forma conturbada, tanto que foi uma das protagonistas da trama envolvendo o rei francês Felipe IV, que resolveu impor tributos aos bens da Igreja, que a ela também pertenciam - e por esse motivo foi excomungado pelo papa Bonifácio VIII.

Na flor da idade, ao completar seus 21 anos em 1347, Joana I achou por bem normatizar o funcionamento dos bordéis da cidade Avignon, onde vivia refugiada por ter sido acusada de participação no assassinato do seu marido, tendo criado regras para impedir que frequentadores violentos agredissem as prostitutas ou saíssem sem pagá-las. E num desses decretos, foi determinado que os prostíbulos deveriam ter uma porta única, por onde todos poderiam entrar sem pagar ingresso e sair quando quisessem. Tais locais de tolerância no país vizinho passaram a ser conhecidos também em Portugal com o nome de “Paço da Mãe Joana”, deixando claro o sentido afetivo concebido na cidade francesa, de pousada acolhedora e receptiva a qualquer um. 

Sua ousada iniciativa lhe rendeu a pena de exílio imposta pela Igreja, inconformada, em tempos de costumes tão austeros, com a vida publicamente permissiva que Joana I levava, demonstrando seu desprezo às convenções sociais de então, conduta que ela provocativamente nunca deixou de ostentar, até quando, em 1382, foi assassinada por seu sobrinho Carlos, movido pela cobiça de sua herança. Mesmo após a sua morte, seus feitos em Avignon continuaram na boca do povo, onde ela era tida, vista e considerada como  protetora dos seus prostíbulos e das suas meretrizes.

Daquela retrógada Portugal do século XIV, o “Paço da Mãe Joana” chegou naturalmente ao Brasil, só que ligeiramente modificado, pois sendo a palavra “paço” pouco usual, por força da praticidade foi aos poucos sendo substituída por “casa”, consagrando-se assim a expressão “Casa da Mãe Joana” em definitivo, representativa de um lugar onde cada qual faz o que bem entende, sem respeitar nenhuma convenção social, uma casa onde impera a bagunça, o hedonismo, o desregramento, a farra sem limites e a pândega. De tão utilizada na linguagem cotidiana, ganhou até música interpretada pela saudosa cantora Marília Mendonça, com que lhe atribuiu esse mesmo título: 

“Meu coração 
não é Casa da Mãe Joana
pra você bagunçar igual
cê faz na minha cama
respeita quem te ama
cê acha que me ilude
ou vaza ou me assume” (...)

Em 2008, referida expressão idiomática batizou uma comédia de sucesso (da Globo Filmes) sob a direção de Hugo Carvana com um elenco espetacular, integrado pela nata do humor e da dramaturgia brasileira, como José Wilker, Agildo Ribeiro, Juliana Paes, Pedro Cardoso, Laura Cardoso, Mièle, Cláudio Marzo, Paulo Betti, Arlete Salles e Malú Mader, abordando situações inusitadas, com suspense e muita expectativa. Traduzido para o espanhol como “La Casa de la Madre Joana”, o filme conta a história de três amigos de longa data que dividem um amplo e velho apartamento de classe média, do qual precisam sair por dívida hipotecária, impasse cuja pretensa solução ocorreu do modo mais atabalhoado possível. 

No Brasil existem dezenas de lanchonetes, pizzarias, "fast-foods", dançarás, pousadas e mafuás ostentando em suas fachadas essa famosa expressão idiomática, como ponto de referência para deleite da população local. 

Dentre eles, uma acanhada baiúca numa cidade da região do nordeste paraense, inaugurada há alguns anos com o tosco nome de “Bucho Cheio”, que mudou mais tarde para “O Moscão” (enfatizando sua falta de compromisso com a higiene) e finalmente passou a se chamar de “Casa da Mãe Joana” talvez por coerência pois lá, dezenas de pescadores se reúnem nos finais de semana para comer e encher a cara, quando correm soltos os jogos de purinha e o bilharito, as piadas indecentes, a troca de sopapos pelas rivalidades no futebol, as fofocas generalizadas, sendo que ao fim e ao cabo, a exemplo de Avignon, ninguém é impedido de sair mesmo deixando as contas penduradas, que são quitadas somente na semana seguinte, isso quando a sorte torna a pescaria farta e altamente promissora para todos eles...
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fontes:
Enviado pelo autor
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

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