— Que dinheiro, homem de Deus?
— Não te queiras fazer fina! Responde e deixa-te de histórias. Que fizeste do dinheiro que estava no pé de meia?
— No pé de meia não havia vintém. O que havia no pé de meia ficou na barrela.
— No pé de meia havia duzentos e tantos mil réis em muito boas notas, que eu lá guardei. Vamos, deixemo-nos de brincadeiras: onde meteste o dinheiro?
— Se eu te digo que não havia vintém...
— Vintém não havia, havia notas, já te disse. Onde estão?
— Foram por água abaixo, na lavagem.
— Mau! Mau! Olha que eu não estou disposto a rir. Quem sabe se a senhora quer imitar o ministro? Imitar, digo mal, porque ele queima. Vamos, diga onde pôs o dinheiro se não quer que eu faça aqui uma das minhas... Depois... Aqui d’El-Rei...!
— Homem, queres que eu seja franca?
— Sem dúvida.
— Pois o dinheiro... o dinheiro... levou-o o burro.
— Que burro, senhora? Para que quer um burro duzentos e tantos mil réis?
— Foi o burro. Ele não levou os duzentos mil réis de pancada, foi levando aos poucos.
— Como? Então o burro entrava no quarto, abria a meia, tirava o dinheiro que queria...? Homem, mulher, tu pensas que eu sou idiota?
— Quem tirava não era o burro, Manoel...
— Então quem era?
— Era eu.
— Tu! Então que história é essa do burro?
— É que era o burro que o levava. Tu nunca jogaste no bicho?
— Eu? A senhora bem sabe que eu não tenho vícios.
— Pois foi o burro do jogo que levou o dinheiro. O caso foi assim: tu conheces a mulher do Cunegundes, uma ruiva, que tem dois filhos pequenos?
— Conheço. Mas que vem cá fazer a mulher do Cunegundes?
— Ouve. Como sabes o Cunegundes está de cama há uns pares de meses. Enquanto teve saúde foi um homem de trabalho, atirava-se a tudo para ganhar a vida — trazia a casa farta, a mulher limpa, os pequenos sempre bem vestidos, a moléstia, porém, acabou com tudo isso. O pobre homem, para não morrer à míngua, aprendeu a fazer charutos, mas os charutos dão muito pouco... Que eram cem charutos por dia para uma família como aquela? A Adelaide andava varada, pálida; os pequenos, rotos, descalços, pediam pão de casa em casa, até fazia pena. Quanta vez eu aqui lhes dei comida... Ah! Meu amigo, quando um pai de família cai numa cama...
— Pois sim, mas vamos ao burro...
—Vamos. As coisas estavam nesse pé quando, um belo dia, a Adelaide, que não tinha um casaco decente para chegar à janela e andava sempre a chorar, a lamentar-se, pedindo a morte para ela e para os filhos, apareceu risonha e mais contente do que dantes e, todos os dias, eu, por entre as frechas da janela, via chegar gente com embrulhos para a Adelaide: eram queijos, caixas de vinho, fazendas e a Adelaide a deitar luxo até que um dia saiu de carro como a senhora do doutor.
— E o pobre do marido a fazer charutos...
— A fazer? A fumá-los, e dos bons, deitado em lençóis de linho, com fronhas de renda nos travesseiros: um luxo de príncipe. Eu fiquei a banzar e, como não sou maliciosa, disse comigo: “a Adelaide tirou a sorte...” E um dia, apanhando-a a jeito, disse-lhe em ar de pagode: “então, sua felizarda, sempre apanhou um bilhetinho premiado, hein?!” Ela ficou muito espantada e respondeu: “não senhora: eu não jogo na loteria. Ah! Já sei porque a senhora fala — é porque me vê andar assim, apesar da moléstia do Cunegundes, coitado! Que quer, minha amiga? Quem não tem cão, caça como gato.
— Que gato?
— Espera, ouve homem: “enquanto o Cunegundes tinha saúde e força eu não me preocupava, mas veio a doença e, a senhora sabe, as crianças têm fome e o homem da venda não fia principalmente quando sabe que o dono da casa está entrevado no fundo de uma cama. Procurei trabalho... Só me apareciam charutos; desanimei. Foi então que uma comadre minha, cujo marido anda longe, apanhando borracha nos sertões do Amazonas, disse-me que eu aventurasse alguma coisa no touro. Aventurei. A primeira marrada custou, isso custou, mas hoje...” e desatou a rir, só para que eu lhe visse os dentes obturados a ouro, como lá diz o outro. Eu fiquei a olhar para ela e, com franqueza, estranhei aquela alegria porque a Adelaide era alegre mas agora dá umas gargalhadas... “Então a senhora vive agora à custa do touro?”
— É verdade, respondeu ela.
— E seu marido?
— Ah! Meu marido não sabe. Para uma mulher ser feliz no jogo do bicho deve guardar segredo, principalmente para o marido. A senhora por que não tenta?
– Tu sabes que eu não gosto de bois, não gosto de touradas, boi só vaca, essa mesma cozida.
—Não, D. Adelaide, eu não gosto de bois.
— Não gosta! A senhora diz isso porque ainda não experimentou. Eu também não gostava e hoje não posso passar sem ele. Experimente, experimente — e dobrou-se toda em outra gargalhada. Eu fiquei pensando e depois que ela saiu resolvi experimentar. — Tu!? — Então? No primeiro dia mandei pedir porco; deu o burro; no segundo dia mandei buscar elefante, deu outra vez o burro. Fiquei desconfiada com tanto burro: diabo! isso não é um jogo, é uma estrebaria! Quem sabe se não é Deus que me está mostrando o caminho da felicidade! pensei. À noite sonhei que estava agarrando um burro pelo rabo. Foi naquela noite em que te agarrei, não te lembras?
— Sim, mas eu não sou burro...
—Nem eu te agarrei pelo rabo. De manhã, muito cedo, fui ao pé de meia e mandei comprar no burro... coice! E ... de coice em coice, meu velho, fiquei a tinir. A Adelaide vive regaladamente à custa do touro, eu com o burro só consegui amofinações e misérias.
— Então os duzentos e tantos mil réis foram todos no burro?
— Todos.
—Muito bem.
— Antes eu tivesse jogado no touro — ainda ontem deu.
— Se a senhora tivesse jogado no touro ia agora mesmo, como um fuso, para o olho da rua, entende? O touro dá todos os dias mas, se me constar que a senhora joga em semelhante bicho eu faço um banzé dos diabos nesta casa. Touro não é bicho que entre em casa de família, está ouvindo?
—E a Adelaide?
— Que tenho eu com a Adelaide?
—Ela não joga em outro.
—Porque o marido está entrevado mas eu não estou, com a graça de Deus. Enfim — no burro pode jogar uma ou outra vez, pouco, com touros é que eu não quero negócios. Se eu souber que me entrou touro aqui em casa a senhora vai para o olho da rua em dois tempos. É o que lhe digo. (E foi; todos os jornais noticiarem o caso comentando-o). O homenzinho, que apertara os cordões à bolsa, levando para a Caixa Econômica o que dantes deixava nas meias, começou a desconfiar dos lautos jantares que a mulher lhe apresentava — eram verdadeiros festins — e, farejando os pratos, perguntava desconfiado:
—Mulher, isto é burro?
— Tudo é burro, pelo moderno.
—Então agora não dá coices?
—Qual! está manso como cordeiro.
—Pois sim, mas não te fies. Depois apareceram sedas, chapéus, costumes de pano francês, joias, camarotes do lírico...
—É burro?!
—Então! que há de ser?
—Olha lá, mulher — acho muita carga para um burro só.
—A culpa não é minha... se ele dá.
Um dia, porém, o homem entrou em casa justamente na ocasião em que a mulher fazia jogo e viu... Que viu ele? Sei apenas o que os jornais disseram: que ele travou de um pau e desancou a mulher. Sem razão disse a coitada ao delegado, explicando o caso: na ocasião em que o marido entrou no quarto ela abria a porta de espelho do guarda casaca e o homem tomou por uma desobediência o que era a sua própria imagem.
— Eu permiti que ela jogasse no burro, senhor doutor, mas o que eu lá vi de burro não tinha nada.
—Então que era?
—Ora! que havia de ser? Palpites da Adelaide.
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HENRIQUE MAXIMIANO COELHO NETTO nasceu em Caxias/MA, em 1864 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Ingressou na Faculdade de Direito do Recife. No Rio de Janeiro, conheceu José do Patrocínio, que o introduziu na redação do jornal Gazeta da Tarde e no periódico A Cidade do Rio, época em que começou a publicar os seus contos. No início da República, além de jornalista e professor de literatura e teatro, foi deputado federal, pelo Maranhão, em três legislaturas. Em 1890, casou-se e teve catorze filhos. Nesse mesmo ano ocupou a Secretaria do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Sua residência no Rio, na rua do Rocio, tornou-se famosa como ponto de encontro de celebridades e artistas. Nas reuniões animadas por declamadores e músicos, era comum a presença de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Humberto de Campos. Além de jornalista, Coelho Neto estreou na literatura, em 1891, com o livro de contos "Rapsódias". Em 1892, lecionou História da Arte na Escola Nacional de Belas Artes e Literatura no Colégio Pedro II. Coelho Neto realizou uma obra extensa, que chega a mais de cem volumes, entre romances, contos, crônicas, memórias, conferências, teatro, crítica e poesia. Em 1896, Coelho Neto participou das primeiras reuniões com objetivo de criar a Academia Brasileira de Letras. Em seguida, tornou-se sócio fundador da cadeira de nº 2 e foi presidente em 1926. Em 1910, Coelho Neto foi nomeado para a cátedra de História do Teatro e Literatura Dramática na Escola de Arte Dramática. Em 1928, foi consagrado como “Príncipe dos Prosadores Brasileiros”, em uma votação realizada pela revista O Malho. Coelho Neto era um dos mais lidos e prestigiados escritores de seu tempo, porém, no final da década de 1920, os modernistas passaram a criticar a forma pomposa e rebuscada, cheias de artifícios retóricos em muitos de seus textos e que não seriam capazes de enfrentar os grandes dilemas da nacionalidade. Algumas obras: os romances Capital Federal (1893), Inverno em Flor (1897), Turbilhão (1906), O Rei Negro (1914), contos: Jardim das Oliveiras (1908), Vida Mundana (1909), Banzo (1913), Contos da Vida e da Morte (1927) e outros.
Fontes:
Coelho Neto. A bico de pena. Publicado originalmente em 1903.
Biografia = https://www.ebiografia.com/coelho_neto/
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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