sexta-feira, 10 de junho de 2016

Elen de Medeiros (Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: A Estética do Trágico Moderno) 5a. Parte, final

www.veja.abril.com.br

Já em A serpente, encontramos apenas elementos trágicos, tanto no sentido acadêmico quando no senso comum. Aqui é um exemplo prático de que o segundo constitui o primeiro, pois a peça é repleta de situações trágicas, o que vai confluir na fundamentação de uma tragédia. O clima é de tensão do início ao fim da peça, causando até um certo desconforto e mal estar em quem a lê. Já de início, Décio e Lígia discutem, enquanto Décio arruma as malas para ir embora:

(É a separação. Décio está fechando a mala. Fecha, levanta-se e vira-se para Lígia, a mulher, que olha com maligna curiosidade.)
DÉCIO – Pronto.
LÍGIA – Você não vai falar com papai?
DÉCIO – Pra que falar com teu pai? Não falei com a principal interessada, que é você? Perde as ilusões sobre teu pai. Teu pai é uma múmia, com todos os achaques das múmias.
LÍGIA – Então por que você não desaparece? Pode deixar que eu mesma falo. Como é suja a nossa conversa.
DÉCIO – Não me provoque, Lígia!
LÍGIA – Acho gozadíssima sua insolência. Não se esqueça que nós estamos casados há um ano e que você.
DÉCIO – Para!
LÍGIA – Me procurou só três vezes. Ou não é?
DÉCIO – Continua e espera o resto.
LÍGIA – Três vezes você tentou o ato, o famoso ato. Sem conseguir, ou minto?
(Décio avança para a mulher. Segura Lígia pelo pulso.) (Idem, ibidem:57)

Esse é o clima no qual transcorrerá toda a ação da peça, com brigas, discussões. Como toda a peça é composta assim, logo a sua estrutura é também de uma tragédia. Dialeticamente, ela é composta pela esfera do “inter”, pois toda a ação é decorrente das vontades das personagens: tanto de Lígia quanto de Guida e de Paulo. Inclusive o fim trágico, quando Paulo mata sua esposa Guida por causa do seu ciúme doentio, jogando-a do alto do prédio onde moram, era uma vontade iminente de Paulo e Lígia. A peça se desenvolve toda no presente, pois desde o início da ação até o seu final é tudo o que precisamos para compreendê-la e ela se forma. Apesar desta peça ser a que mais deixa a desejar, tanto na questão estética quanto temática, ela não escapa do seu lado moderno. Algumas vezes percebem-se cenas forçadas, diálogos simples numa temática que exige mais recursos do autor. Em relação à esfera do “inter”, ela não é pura como no teatro expressionista, apenas podemos nos remeter às vontades intrínsecas das três personagens que movem a ação da peça: Guida deseja Paulo, que deseja Lígia, que deseja Paulo. Como uma quadrilha, os desejos recíprocos de cada um são responsáveis pelas atitudes deles, e, consequentemente, conduzem a trama da peça. O diálogo também não tem sua constituição pura, pois há momentos em que as personagens vêm à boca da cena para um aparte monologado.

(Lígia cai de joelhos. Guida vai fazer sua ária.)
GUIDA – Você foi sempre tudo para mim. Um dia, eu te disse: – “Vamos morrer juntas?” E você respondeu: – “Quero morrer contigo”. Saímos para morrer. De repente eu disse: – “Vamos esperar ainda”. E eu preferia que todos morressem. Meu pai, minha mãe, menos você. E se você morresse, eu também morreria. Mas tive medo, quando você se apaixonou e eu me apaixonei.(Idem, ibidem:61)

Quanto ao tempo, ele sim é absoluto. Linearmente narrada, a peça transcorre unicamente no tempo presente, sem recursos adicionais ou inovadores.
 
Por fim, Toda nudez será castigada, encenada em 1965, foi chamada, por Nelson, de obsessão. Talvez, ao lado de A falecida e Beijo no asfalto, essa seja a peça mais bem estruturada e desenvolvida do dramaturgo. Nessa peça, o herói – Herculano – é casado com uma prostituta, Geni.

Considerando-se que toda a narrativa acontece em flashback, contada por Geni a partir de uma fita cassete gravada, poder-se-ia dizer, num primeiro momento, que tal peça não pertence à gama dos dramas modernos, tal qual descrito por Peter Szondi. Porém, se formos atentar mais detalhadamente em sua estrutura, verifica-se que todo o passado narrado torna-se presente a partir da reconstituição em cena dos acontecimentos descritos pela prostituta. Ou seja, sob uma estrutura dialética interna do texto, os fatos transcorrem coerentemente num tempo presente, pois se tornam conhecidos naquele momento em que são representados em cena. Sendo assim, o terceiro elemento necessário à constituição do drama está presente nesta tragédia. Ao segundo, o diálogo, creio que não seja necessário me ater muito, visto que todas as Tragédias Cariocas de Nelson são construídas a partir do diálogo das personagens, e essa não foge à regra. Além disso, são diálogos criativos e dinâmicos, conforme já foi explicitado antes. Sendo assim, restaria verificar o primeiro elemento do drama, que é a ação intersubjetiva. Vejamos bem: toda a narrativa parte da voz de Geni. Então, tudo o que acontece é sob a ótica de Geni, na perspectiva dela, representando o que ela sofre e o que ela pensa. Assim, as ações da peça são desenvolvidas em uma esfera interna, própria da personagem, ou como preferiu chamar Szondi, de esfera do “inter”.

Mas é esta tragédia uma peça moderna? Evidentemente. Nelson foi, literariamente, moderno. Principalmente no que concerne à estrutura, falando-se de dramaturgia. Vários são os exemplos da sua modernidade, desde os elementos dos sentimentos trágicos até o isolamento do herói e a condução da ação trágica por meio do herói.

Em vários momentos da peça a ação é levada à tensão máxima, provocando um sentimento trágico recorrente no desenvolvimento. Já no início, as tias estão pesarosas com a sanidade de Herculano. Devido ao falecimento de sua esposa, as tias têm medo de que ele se mate, pois está em estado de choque e depressão. Um dos momentos mais trágicos da peça é quando uma das tias revela a Herculano o estupro de seu filho na cadeia:

TIA (contida mas tiritando) – Estou dizendo coisa com coisa. Serginho bebeu e brigou.
HERCULANO – Mas está vivo? Está vivo?
TIA – Prenderam o menino. Botaram o menino no xadrez junto com o ladrão boliviano. O outro era muito mais forte. (Exaltando-se) E, então (tem um verdadeiro acesso), o resto não digo! Vocês não vão saber! (Recua diante de Geni) – Essa mulher não vai ouvir de mim, nem mais uma palavra.
HERCULANO – Mas está vivo?
TIA (incoerente, cara a cara com o sobrinho) – Teu filho foi violado! Violado! Não é isso o que você queria saber? (Vai até Geni e repete para Geni) Violado! Violaram o menino!
HERCULANO (soluçando) – Não! Não!
TIA (mudando de tom. Um lamento quase doce) – O menino serviu de mulher para o ladrão boliviano! Gritou e foi violado! O guarda viu, mas não fez nada. O guarda viu. Os outros presos viram.(Idem, ibidem:208)

Podemos perceber que as ações giram em torno das personagens e do que elas sentem e sofrem. E uma das marcas do moderno é justamente a ação se centrar na necessidade individual do herói. Assim vemos em Toda nudez será castigada a necessidade de Herculano em liberar-se de um enquadramento sexual determinado pela instituição do casamento; ou então, a necessidade de Geni de satisfazer-se, não somente com Herculano, mas com Serginho. O desejo de Serginho de vingar-se do pai o transforma em amante da madrasta. Logo, vemos que as ações são conduzidas pelas vontades das personagens, assim como nas outras peças aqui analisadas também o são. No caso de Toda nudez, principalmente pela necessidade de Patrício se vingar de Herculano.

Nelson Rodrigues, ao extrapolar alguns conceitos do trágico – e até mesmo do moderno –, fundou o que eu prefiro chamar de trágico rodrigueano. O dramaturgo conseguiu, ao menos no ciclo das Tragédias Cariocas, mesclar objetos do trágico antigo e do moderno, mas, não satisfeito, foi buscar recursos de outros gêneros dramáticos para embasar o seu próprio estilo, trágico, tragicômico, melodramático. E, ironicamente, é esse misto de gêneros que o faz grande, complexo e, contraditoriamente, unânime.

 3. Referências bibliográficas
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Tradução e notas de J. Guinsburg. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
RODRIGUES, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
______. Teatro completo de Nelson Rodrigues. vol. 3. 6. reimpressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
______. Teatro completo de Nelson Rodrigues. vol. 4. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
ROSENFELD, Anatol. Introdução. In: Schiller. Teoria da tragédia. São Paulo: EPU, 1991.
SALOMÃO, Irã. Nelson, feminino e masculino. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.
SCHILLER, Friedrich. Teoria da tragédia. São Paulo: EPU, 1991.
WILLIAMS, Raymond. Trágico moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.


Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. ©Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e autores

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Carlos Lúcio Gontijo (Sentimento do mundo)


Não deis aos cães as coisas santas, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas... Há muito se ouve essa frase de Hamlet, príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare, que parafraseou ensinamento de Jesus Cristo: “Não lanceis pérolas aos porcos”. E que, mais modernamente, está em música cantada pela banda Titãs: Só quero saber/ Do que pode dar certo/ Não tenho tempo a perder.

Os ditados e filosofias vão sofrendo mudanças de linguagem, mas a essência é alicerce permanente e, no caso em pauta, nos sugere que nosso tempo de vida terrestre é breve e que não devemos desperdiçá-lo com questões imutáveis, como canta Chico Buarque na música À flor da pele: “O que não tem conserto nem nunca terá.../ O que não tem governo nem nunca terá/ O que não tem vergonha nem nunca terá/ O que não tem juízo”.

Nunca foi tão difícil editar livros e dar-lhes a eficiente circulação, contudo os autores que têm literatura e poesia no sangue e as abraçam como o próprio ar que respiram não encontram outra saída que não seja enfrentar os custos gráficos, a indiferença, falta de gosto pela leitura da população e a inexistência de incentivo oficial à propagação da leitura como fator fundamental para a elevação da qualidade educacional, que não tem como ser ampliada sem a moldura da cultura dando sentido prático, emocional e, ao mesmo tempo, sensibilizando os alunos de todos os níveis de ensino, do ensino fundamental aos cursos universitários.

Ir aonde o leitor está e evitar a perda de esforço, além de possíveis decepções, é a meta de todo autor independente, mas como alcançar essa busca, se os leitores estão dispersados de maneira tão rarefeita Brasil afora: temos gente com diploma de curso superior que nada lê, enquanto pessoas de pouco estudo adoram livros; assistimos a gente de alto poder aquisitivo que não passa nem perto de livro, ao passo que trabalhador assalariado faz todo sacrifício para ter acesso à literatura e à poesia. 

Dessa forma, pelo menos no caso da atividade de escriba (maior ou menor) não há como ele evitar a possibilidade de, uma vez ou outra, passar sua obra literária a mãos ignaras que não darão o menor valor ao empenho intelectual e ao dispêndio financeiro carreados na trabalhosa materialização de produto cultural gráfico, seja ele um livro, uma revista ou até um jornal. Entretanto, são os ossos do ofício e, a bem da verdade, tais dificuldades é que garantem aos poetas e escritores carregarem no peito o "Sentimento do mundo", terceira obra poética de Carlos Drummond de Andrade, na qual o poeta nos revela sua limitação e impotência perante este mundão de meu Deus, onde as supostas certezas se perdem no caudaloso mar do contraditório em que banham os seres humanos: "Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo". 

Por outro lado, “Sentimento do mundo" pode ser entendido também como um poema sobre o próprio fazer literário ("minhas lembranças escorrem"), onde os poemas ("escravos") surgem como armas ("havia uma guerra/ e era necessário/ trazer fogo e alimento"). É nesse digladiar contra a realidade perversa e injusta que os poetas e escritores vão enchendo-se de sentimento do "sentimento do mundo", que dão origem a uma visão pessimista tão magnificamente grafada pelos versos de Drummond, clareando-nos a mente, metaforicamente, com um amanhecer "mais noite que a noite".

Engana-se, porém, quem imagina que o poeta maior deixou algum dia o pessimismo lhe sufocar as luzes de esperança que povoam toda escuridão. Foi ele quem um dia, recebendo o meu primeiro livro, cometeu o humano sentimento de mundo, ao me ungir com a possibilidade de algum horizonte em meio às pedras do caminho: ”Rio de Janeiro, 15 de junho de 1977. Prezado Carlos Lúcio Gontijo: Ventre do Mundo está aqui sobre a mesa, com a sua carta informativa e simpática. Obrigado pela lembrança gentil. Um livro de poemas e aforismos que se esgota em quinze dias é sinal de que o seu autor soube dar o recado. E você o fez numa forma gráfica elegante e nova. Deve estar contente. Parabéns, e vá em frente, xará. O abraço e a simpatia cordial de Carlos Drummond de Andrade”.

Fontes:
Colaboração do autor
Imagem do Livro = www.carlosluciogontijo.jor.br

Elen de Medeiros (Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: A Estética do Trágico Moderno) 4a. Parte



Já Boca de Ouro, escrita em 1959 e encenada em 1961, é caracterizada como tragédia carioca.  Dentre as oito peças que compõem o ciclo das Tragédias Cariocas, somente esta e Beijo no asfalto (escrita e encenada em 1961) são denominadas assim. Tanto uma como a outra são peças que não possuem elementos nem do farsesco, nem da comédia. São, enfim, coerentes com o intento de Nelson quando da denominação de tragédia. E, mais do que nunca, são cariocas, representadas tendo como pano de fundo o cenário carioca, em geral, suburbano.

A respeito da primeira, Boca de Ouro, podem ser encontrados alguns elementos evidenciados tanto por Schiller quanto por Williams. Se Schiller diz que para um fim moral a tragédia não pode apresentar um herói virtuoso, assim, então, identificamos os heróis rodrigueanos: por mais heróis que eles sejam, nunca são virtuosos, mas, ao contrário, sempre carregados de falhas e fracassos. Justamente por isso eles são representantes da sociedade. Boca de Ouro é o herói da peça, nada virtuoso, ao contrário, tido por um cafajeste sem caráter, inescrupuloso, que mata sem piedade. Mesmo na segunda versão da história, em que D. Guigui diminui a cafajestagem do ex-amante, ele aparece como um homem malandro, sem muitos elogios. D. Guigui também não aparece como uma mulher virtuosa em si, apenas como uma mulher suburbana normal, carregada de desejos e anseios, que muda de versão da história a cada impacto emocional provocado por alguma notícia.

Mas antes de tudo, devo ater-me aos elementos que constituem o moderno dentro do trágico rodrigueano. Em Boca de Ouro, a heroína (D. Guigui) é quem vai conduzir a ação trágica. Ela é a responsável pelas três versões dos fatos a respeito de Boca de Ouro, pois toda a narrativa provém de suas emoções. Assim, tudo o que acontece está de acordo com o que Szondi chamou de esfera do “inter”: dentro da psicologia da própria personagem e coerente com sua estética interna. Cada detalhe do texto não é escrito em vão, mas como parte integrante do todo trágico, que por sua vez é coerente com a intenção do autor em escrever uma tragédia carioca.

Porém, em Beijo no asfalto, as coisas transcorrem diferentemente. Os fatos não vão acontecer somente na psicologia de um herói, mas se centram no isolamento de Arandir, devido ao seu sofrimento, necessário enquanto consequência de um erro moral – que não foi necessariamente dele, mas que se tornou dele por imposição da mídia. Erro moral porque, na sociedade retratada na peça e na qual Arandir está inserido, beijar outro homem na boca é proibido, um crime contra a moralidade. No entanto, Arandir baseia-se no princípio da bondade, pouco se importando com o que é considerado certo ou errado na sociedade. E é aí que se encontra o seu maior erro, maior mesmo do que ter beijado outro homem: ter ignorado as regras impostas pela sociedade.

Não são muitas as cenas trágicas que evidenciam sofrimentos pessoais em Boca de Ouro. Elas são mais evidentes em Beijo no asfalto, pois Arandir carrega seu fardo por ter beijado outro homem na boca. E não somente ele sofre, mas também sua esposa Selminha, que, violentamente interrogada pelo delegado Cunha e pelo repórter Amado Ribeiro, exalta-se e revela estar grávida, numa tentativa de provar a masculinidade do marido. Então, como forma de amedrontá-la, Amado manda que ela fique nua. Um outro exemplo é o desfecho trágico, na última cena, quando Aprígio revela-se apaixonado por Arandir e, em seguida, mata o genro com dois tiros. Ainda que este final carregue um fundo apelativo, voltado ao melodramático, isso não diminui a qualidade estética da peça, muito menos a reação catártica do público.         

A morte de Arandir pode ser vista por dois ângulos que se convergem: o primeiro, a questão do sofrimento do herói enquanto fator de emoção do público, conforme explicado por Schiller. Arandir é o herói virtuoso que sofre impiedosas injustiças e que, consequentemente, comove o espectador/leitor com sua morte. Segundo, porque esse aniquilamento pode ser visto também como a destruição do herói expressionista, que está fadado ao sofrimento e total anulação.

Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária e A serpente formam, juntas, o pequeno conjunto de peça. A primeira, encenada em 1962, é chamada de peça em três atos. Já a outra, escrita em 1978 e encenada somente em 1980, é chamada de peça em um ato (a única peça de Nelson escrita concisamente em um ato). Bonitinha é uma peça que perpassa do cômico grotesco à mais alta tensão trágica em poucas cenas, passando ainda pelas características da comédia de costumes, sem, no entanto, dominar as características de um só gênero. Logo no início da peça, apresenta-se uma atmosfera etílica, na qual estão Edgard e Peixoto numa conversa que não é propriamente tensa, mas que tende à tensão. Eles discutem a frase do Otto Lara Resende, que percorre toda a peça: “O mineiro só é solidário no câncer”. Segundo a explicação de Edgard, não é apenas o mineiro, mas toda a raça humana que não se solidariza com nada. Então, com a frase do Otto acompanhando-o, ele pode fazer qualquer coisa para ganhar dinheiro. Aqui já está lançado o objeto da peça: conseguir dinheiro a qualquer custo. Incluem-se neste caso Ritinha, Edgard e Peixoto, que precisam de dinheiro e são capazes de tudo para conseguir. Já na cena seguinte, na casa de Ritinha, ela está brigando com as irmãs, reclamando que elas não fazem a higiene pessoal corretamente e, numa atitude com total falta de poesia – como diria o próprio Nelson -, Ritinha passa a franja da toalha na orelha da irmã, conforme indica a rubrica. E nessa mesma cena, com algumas inclusões grotescas, há uma tensão no final, quando Ritinha briga com a irmã:

(Estupefata, Ritinha avança para Aurora, que recua, com a cara desfigurada pelo ódio e pelo medo.)
RITINHA (arquejando) – Eu me mato por vocês. Faço uma ginástica. Dou aula até altas horas. Qualquer dia, sou assaltada no meio da rua. E você ainda tem a coragem? Dizer que eu flertei! Agora você vai repetir. Eu flertei?
(As duas irmãs, cara a cara.)
AURORA – Flertou!
(Ritinha esbofeteia. Continua batendo.)
RITINHA – Sua descarada!
(Aurora recua circularmente, debaixo de bofetadas.)
AURORA (aos soluços) – Você vai me pagar! Juro! Você vai ver, Ritinha! Quero que Deus me cegue se. Você vai ver! (RODRIGUES, 1990:254-5)

Nessa cena, há uma rápida transposição do grotesco ao trágico. É evidente que, desde o início da peça, há uma tensão que, se continuada, pode levar a alguma ação trágica. No entanto, provavelmente para quebrar a tensão e provocar o riso, Nelson inseriu numa cena bem cotidiana um fato grotesco, grosseiro, que é Ritinha limpar a orelha da irmã com a ponta da toalha.

Logo adiante, há o que podemos chamar de uma das características da comédia de costumes: o retrato da diferença social existente e o estudo do caráter no ser humano. Edgard, jovem suburbano, aceita se casar com Maria Cecília por causa do dinheiro dela. Então, ele vai até a casa de Werneck para conversar sobre o casamento.

(Passagem de cena. Sala do Dr. Werneck. Ele, exuberante, barrigudo, está enchendo um copo. Presentes também o Dr. Peixoto e a esposa do velho, D. Lígia. Edgard aparece por fim. Senta-se.)
WERNECK (para Edgard) – Você já sabe de tudo?
EDGARD (que ia começar) – De fato.
PEIXOTO (interrompendo) – Contei o caso, por alto.
WERNECK – Bem. Portanto, você sabe que a moça. A moça que sofreu o acidente. Foi um acidente. Assim como um atropelamento, uma trombada. Pois a moça é minha filha. Quer dizer, a filha do seu patrão. Isso é importante. A filha do seu patrão. Entendido?
EDGARD – Sim, senhor.
WERNECK (com uma satisfação brutal) – Gostei da inflexão. Um “sim, senhor” bem, como direi.(Idem, ibidem:266)

Nessa peça, ao contrário das outras desse ciclo rodrigueano, o final não é trágico, não é tenso e não é triste. É, por incrível que pareça, um happy end, bem atípico aos finais de Nelson Rodrigues. Suprimidos os contraventores da peça, Peixoto e Maria Cecília, o final feliz está livre para Ritinha e Edgard, que se libertam de tudo e, numa cena quase cômica para a peça onde está inserida, os dois correm até a praia, onde Ritinha confessa que nunca teve prazer com homem nenhum e que com Edgard será a primeira vez. Porém, por mais contraditório com o estilo rodrigueano que possa ser esse desfecho, encontramos no decorrer da trama personagens que sofrem para manter uma adequação moral, conforme Schiller vê um dos elementos da tragédia. Assim é o caso de Ritinha, que se prostitui para ver as irmãs casadas na igreja, de véu e grinalda.

continua…

Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. ©Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e autores

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Belvedere Bruno (Quando as Pessoas Partem)

E as pessoas partem / tão inesperadamente, / sem nenhum sinal.
Fica apenas / o sabor amargo / do não dito,
e a certeza plena / do nunca mais.

Quando uma pessoa se vai, inesperadamente, seja através da morte ou por voltas que a vida dá, muitos se deparam com a consciência gritando em desespero: “Por que não disse o quanto era importante para mim? Por que me foi difícil elogiar aquela gravatinha borboleta que ele usava? Por que não disse a ela o quanto era corajosa por cada mês aparecer com o cabelo de uma cor? Por que nos calamos e omitimos nosso bem querer?”

Sinto muito, mas não faço parte desse time. Sempre fui efusiva, de dizer “te amo” aos que realmente amo, elogiar as qualidades, e até os defeitos pequeninos das pessoas, defeitos esses, que, no fundo, têm seu encanto.

Por isso, quando alguém se vai, sempre estou em paz comigo mesma. Nunca sinto o remorso a corroer minhas entranhas. Fica, e forte, uma saudade boa.

Sempre gostei de exercitar o amor, nas suas mais variadas nuanças.

Lembro-me de um fato ocorrido há muitos anos, quando eu ainda era uma mocinha, cheia de sonhos com finais cinematográficos. Apaixonada por Edson Alvarenga, e não sendo correspondida, tive uma briga feia com ele, prometendo a mim e a todos os amigos que jamais voltaria a olhá-lo. O mundo parecia que havia ruído, tamanha a minha dor! Meus olhos viviam inchados e eu a dizer : - Mil vezes a morte!

Os anos passaram. Numa tarde de verão, caminhando no calçadão da praia, encontrei-o. Fiquei tão feliz que não me contive e abracei-o, falando da minha saudade. Vibrava com o encontro. Havia, ainda, amor dentro de mim, porém diferente, mais amadurecido, sem possessividade Fiquei em estado de graça com a felicidade do amado. Como estava belo, risonho como nos velhos tempos. Havia casado e tinha um casal de filhos, me contou cheio de orgulho. Fiquei absurdamente feliz com a felicidade dele.

Poucos meses depois, soube da partida de Edson, vitimado por uma terrível forma de leucemia, aos vinte e cinco anos.

Fiquei em paz. Na minha concepção, partira com as asas íntegras, pois eu não as havia ferido naquele último e inesquecível encontro na orla.

Fontes:
A Autora
Imagem: http://poetadiogoramalho.blogspot.com

Roberto Tostes (A Marca do Escritor)


Em época de tanta informação e em velocidade cada vez maior, como deixar um sinal pessoal de sua existência, seus textos e de suas palavras na web?

Criar uma assinatura pessoal é fundamental para ser reconhecido e identificar tudo que você produzir em textos, livros, contos, ensaios, entrevistas e outras formas de expressão.

Seja que estilo de escritor você for, deixar a sua marca é fundamental para ter certeza de que seu trabalho possa ser reconhecido e valorizado.

Seguem algumas dicas para criar e consolidar essa identidade digital:

1) Seu nome é sua assinatura, sua identidade, sua palavra-chave

Aquilo que você escolher como assinatura vai ficar associado a você para sempre. Em tempos digitais ter que alterar algo significa recomeçar tudo ou perder um esforço significativo. Nome real ou pseudônimo, faça uma única escolha e não mude mais.

2) Trabalho lento e a longo prazo

A não ser que você tenha muita sorte, seja famoso ou com muitos recursos para investir em sua carreira, sua reputação será resultado de muito esforço. E de muita guerrilha, de insistência, de constância. Para conhecer e ser conhecido, é preciso tempo e esforço. A curto prazo não se consegue nada duradouro.

3) Suas palavras, seu valor

Tudo que você produzir tem sempre por trás uma ideia, uma intenção, um valor. Portanto, saiba o que está produzindo e o porquê. Se acha que sabe pouco, pesquise mais, leia, troque ideias, viva mais experiências. Se está inseguro no que escreveu, espere mais, reescreva.
Só publique o que você tem certeza de ser bom. Não se sinta culpado de largar rascunhos e ideias pelo caminho. Mas se for até o fim e gostar do resultado, lute por isso e divulgue o que você produziu com vontade.

4) Boas opiniões valem muito

Além de desenvolver sua carreira e aprimorar seu texto, é importante se relacionar. Você pode precisar muito dos amigos, leitores, família e até mesmo de estranhos para poder avaliar melhor sua trajetória e sua obra.
Claro que é importante aplicar um filtro, no mundo real ou virtual. Selecione aqueles que dialogam com você de forma crítica e positiva, ajudando a melhorar seu trabalho e indicando caminhos ou soluções.

5) Sua postura, sua verdade

Você é o que escreve, mas também o que lê, o que comenta e divulga. Seja uma frase, texto, foto, vídeo ou texto na web as coisas perduram e você pode se arrepender de alguma atitude impensada.
Como sua própria vida e suas atitudes, seu conteúdo é de sua responsabilidade. Procure sempre um equilíbrio entre vida criativa e pessoal. Tente fazer as duas coisas da melhor forma, escrever e viver.

6) Foco e energia

Dúvidas e imprevistos sempre surgem mas nesta jornada leva vantagem quem sabe o que quer e consegue se manter no trilho. Não devemos depender só da inspiração ou do prazer, por isso achar sua rotina e seu jeito de fazer as coisas ajuda muito.
Concentre o foco naquilo que você realmente quer e vá até o fim. Desvios e imprevistos no seu caminho surgirão mas o pior é adiar escolhas ou não decidir. Siga sua intuição, saiba começar mas também saiba terminar as coisas. Errar e falhar às vezes faz parte do processo.

7) Decisões e persistência

Por mais que você escute e valorize outras opiniões, a decisão final será sempre sua, de alguma forma. Por isso é tão importante acreditar em algo, seguir seu próprio caminho.
Nunca esqueça daqueles ideais e sonhos que ficaram para trás, as referências e influências que definiram e ainda mostram quem você é.
Eles podem ser o melhor apoio nas horas de desespero, desânimo e vazio existencial. Ser fiel a si mesmo é também reconhecer erros, se autocriticar, saber recomeçar e evoluir.

8) Seu nome, seu legado

Quando escrevemos a mão, cada um tem a sua própria letra. Quando você escreve de verdade aquilo que sente, vive, imagina e sonha, produz uma coisa só sua.
Suas palavras são sua memória, sua vida. Elas tem vida própria, emoções, sabor, cheiro e som. Basta que apenas uma pessoa entenda e goste para você ter cumprido sua missão.

Cuide bem de sua marca e escolha bem suas palavras.
Aos poucos, você perceberá que um pouco disso ficará de alguma forma gravado em tudo que você escrever e criar.
Um rastro de mão, dedos, suor e palavras.

Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/portal/?cid=5143, 22 janeiro 2015.

Olivaldo Júnior (Os Peixinhos do Mar)


Era uma vez um menino que morava pertinho do mar. Seus pais, ribeirinhos, viviam do que o mar oferecia aos que nele colhiam o sustento da casa. A casa, para quem pesca, tem dois lugares. Um deles, é claro, é o mar, que não tem pista, nem pouso, mas decola no peito de quem voa nos barcos, sol a sol, até se pôr... Por tanto ver o pai sair cedinho, aquele menino se pôs a imaginar de onde vinham os peixes, peixinhos do mar. Sabia que eram postos por Deus no verde frio das ondas e trazidos até as redes quentes do pai, dos amigos do pai e do padrinho, para que pudessem viver. Mas, na cabecinha do menino, tão fértil quanto aquele naco de mar à beira deles, um anjinho os desenhava, outro os coloria, Deus os animava e... tchibum! Caíam aos milhares lá do céu, quando ninguém estava olhando!... Claro que nunca tinha visto isso, nem poderia. Dormia cedo, assim como o pai e a mãe, que Deus ajuda quem cedo madruga (e quem sai pra pescar). Um dia, se pudesse aguentar, veria os peixinhos, cada peixe do mar, chover do céu no mar aberto, reluzentes, furta-cores, com escamas inda virgens, sem o sal que encharca a alma e cai dos olhos de quem assiste a essa cena. "Quem te ensinou a nadar? / Quem te ensinou a nadar?"... Dorme, menino, dorme... A vez é sua. Amém, amém, amém.

Fontes:
O Autor
Imagem = http://dar-a-tramela.blogspot.com

Elen de Medeiros (Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: A Estética do Trágico Moderno) 3a. Parte

Representada em 1957, Perdoa-me por me traíres foi denominada por Nelson como tragédia de costumes. Para um moderno como Nelson Rodrigues, era de se esperar que houvesse um misto de gêneros em seus textos, o que aqui, mais uma vez, se consolida com a mistura de tragédia e comédia de costumes. Importante observar o conceito de comédia de costumes: “Estudo do comportamento do homem em sociedade, das diferenças de classes, meio e caráter.”(PAVIS, 1999:55) Ora, o estudo que aborda o conceito pode ser encontrado em várias peças de Nelson, mesmo aquelas denominadas como farsas, tragédias, ou tragédias de costumes, pois essa é uma característica evidente na obra do dramaturgo. E essa peça não deixa de ter elementos da farsa, do trágico e também da comédia de costumes, bem como na peça analisada anteriormente.

No início da peça, Glorinha vai a uma casa de meninas com sua amiga Nair. Lá se deparam com duas figuras que compõem o grotesco – elemento da farsa – na tragédia em questão: Pola Negri, um típico “garçom de mulheres”, ou seja, um homossexual, e Madame Luba, dona da casa de meninas. Ambas as personagens são caracterizadas grosseiramente pelo dramaturgo, numa espécie de sátira de determinados elementos sociais. Pola Negri, por exemplo, é descrito da seguinte forma: “Na sua frenética volubilidade, ele não pára. Desgrenha-se, espreguiça-se, boceja, estira as pernas, abre os braços.” (RODRIGUES, 1985:128) Tal observação está em uma rubrica, bem como a descrição de Madame Luba: “Madame Luba é uma senhora gorda, imensa, anda gemendo e arrastando os chinelos. Dá a impressão de um sórdido desmazelo.”(Idem, ibidem:129) Esta última é lituana e carrega consigo um pesado sotaque nas falas.

MADAME LUBA (melíflua) – Como vai, Nair? Como está passando?
(fala com Nair mas não tira os olhos de Glorinha.)
NAIR – Bem. E a senhora?
MADAME LUBA (com violento sotaque) – Eu sempre vou muito bem, nunca ter uma dor de dentes...
NAIR – Trouxe-lhe aqui...
MADAME LUBA – Oh, sim, seu colega de colégio, Glorinha!(Idem, ibidem:129)

Um outro exemplo é a atitude do médico que faz o aborto em Nair. Pago por Madame Luba, mas sem anestesia, o aborto ocorre numa clínica clandestina, onde o médico “aparece, chupando tangerina e expelindo os caroços”(Idem, ibidem:141). Mas além desses elementos grosseiros, que evidenciam o lado cômico desta tragédia, há também os elementos específicos da comédia de costume, ou seja, elementos que demonstram o comportamento do homem dentro de um meio social, evidenciam as diferenças de classes. Como em A falecida havia Pimentel, um homem milionário, que demonstrava a diferença social entre Tuninho e o empresário, em Perdoa-me por me traíres há o deputado, Dr. Jubileu de Almeida, que frequenta a casa de meninas e que oferece à Glorinha um emprego em troca de seus serviços. Tanto na primeira quanto na segunda peça, os homens dotados de poder, superiores, têm domínio sobre as personagens com poder econômico inferior. Estes são bons exemplos para a união entre sujeito e objeto do drama moderno. Personagens que, aparentemente, são dotadas de arbítrio por seguirem suas próprias vontades, mas, ao mesmo tempo, servem de objeto para outras personagens, num ciclo que se repete a cada nova personagem.

Assim como há essa demonstração das diferenças de classes sociais, Nelson utiliza desses elementos da comédia de costumes para ironizar convenções sociais impostas. No caso, Dr. Jubileu é um deputado velho, velhíssimo, como diz a rubrica, que procura serviços da casa de meninas – com meninas de 14, 15 ou 16 anos que estão lá por dinheiro – e que os jornais chamam de “reserva moral”. Do mesmo modo, a casa de meninas, um lugar onde só entram “imunidades”, onde a polícia não aparece, pois está sob controle de Madame Luba.

Mas dentre os três, o elemento mais importante aqui é o trágico. Fatores que compõem a tragédia, enquanto uma tragédia moderna, na peça em questão. Bem mais evidente do que na peça anteriormente analisada, a partir do segundo ato a peça se constituirá basicamente de elementos trágicos, misturados ao cômico, fortalecendo a estrutura tragicômica.

Há vários momentos trágicos na peça, conforme a percepção de Raymond Williams. Ou seja, encontram-se várias passagens em que situações trágicas, carregadas de sofrimento são transcritas para a realidade da peça, como no final dos atos. Logo no primeiro ato, na cena final, é o momento em que o aborto de Nair dá errado e ela está com hemorragia. Num clima tenso, Nair está sofrendo na cadeira e o médico não pode fazer nada. Como único remédio, manda que sua enfermeira reze. Apesar de ser uma cena que carrega em si o sofrimento trágico, é inevitável que a relacionemos à ironia e ao grotesco, bem ao estilo do autor.

(Assombrado diante do destino, o Médico está falando com uma calma imensa, uma apaixonada serenidade.)
MÉDICO – Mas não adianta gaze, nem Pronto Socorro, nada!
NAIR – Não posso mais... Glorinha... vamos morrer... nós duas... Glorinha....
MÉDICO (tem nova explosão. Berrando) – Mas isso nunca aconteceu comigo, nunca! Não sei como foi isso! (para a Enfermeira) Reza, anda reza, ao menos isso, reza!
(A Enfermeira cai de joelhos, une as mãos no peito.)
MÉDICO (berrando) – Não rezas?
ENFERMEIRA – Estou rezando!
MÉDICO (enfurecido) – Mas não reza só para ti! Pra mim também! Eu quero ouvir! Anda! Alto! Reza, sua cretina!
(A Enfermeira ergue-se e rompe a cantar um ponto espírita. O médico soluça.) (Idem, ibidem:144)

No final do segundo ato, a cena está transcorrendo em flashback, rememorando como Judite, mãe de Glorinha, morreu. Na cena final, Tio Raul força Judite a tomar o veneno, logo depois de ela ter confessado que teve vários amantes, que se entregou até por um “bom dia”. Judite bebe todo o conteúdo do copo de uma vez só e cai agonizante no chão. A sequência tensa que converge para o final do ato trágico, unido a outros atos que também carregam o trágico em si – apesar de vinculados ao cômico – fortalecem a estrutura da tragédia, evidenciando uma linha coerente, até então, dentro do conjunto Tragédias Cariocas. Semelhante cena trágica acontece no final do terceiro ato, mas agora quem protagoniza são Tio Raul e a sobrinha Glorinha. Depois de uma cena bastante tensa, em que Tio Raul ameaça Glorinha, os dois combinam de morrer juntos. Mas eis que Glorinha não bebe o veneno e deixa Tio Raul morrer agonizante no chão enquanto ela volta à casa de meninas.

As cenas são compostas basicamente do trágico, sem grande menção a elementos cômicos, que desfaçam a tensão do momento. Mas, por mais que sejam momentos trágicos, eles são apenas parte de um todo que compõe a tragédia enquanto gênero. O trágico é um elemento que se tornou constitutivo da tragédia ao longo de uma tradição, e hoje já é quase indissolúvel, embora também apareça em vários outros gêneros. Assim como em A falecida, e em grande parte das peças desse ciclo, Nelson utilizou o recurso do flashback. Pela perspectiva de Szondi isso poderia ser um problema, pois passado não deve estar mais em cena. No entanto, para o dramaturgo esse recurso é a solução do problema, pois é utilizado justamente para preenchimento de alguma lacuna que, eventualmente, possa ficar no texto. Mas isso não diminui o moderno de Nelson, ao contrário, torna-o ainda mais moderno pelo uso de recursos inovadores. Sendo assim, quando apresentado em flashback, é o presente evidenciado em relação ao passado.

Sete gatinhos, encenada em 1958, foi descrita como divina comédia. Irônico da parte de Nelson ou não, esta é a peça que talvez possua menos elementos cômicos, que evidenciam o riso. Se as três características da comédia são, opostas às da tragédia, provocar o riso no espectador, ter um final feliz e possuir personagens modestas (PAVIS, 1999), esta peça de Nelson não se enquadra nesse gênero. Muito menos faz jus a um “divino”, no sentido restrito da palavra [6]. A peça inteira é composta de elementos trágicos, com algumas referências aos elementos da farsa, mas não à comédia.  Assim como em Perdoa-me por me traíres, há cenas trágicas em sua essência que, unidas aos outros elementos, constituem a tragédia em um todo. Principalmente, por se tratar de uma peça em que a ação é centrada na necessidade individual do herói (de Silene), e que a ação trágica acontece por meio desse herói – ou, no caso, a heroína. Silene é uma menina mimada e se torna o fundamento central desta família – ou melhor, o seu casamento é o objetivo da família. É em torno de sua virgindade que a trama transcorrerá, pois essa é a salvação da família de “Seu” Noronha.

Como referência de ação trágica, pode ser retomada a cena em que Dr. Bordalo, médico da família, revela a “seu” Noronha que Silene está grávida. Neste momento, todo o enaltecimento da jovem menina cai por terra e inicia-se uma sequência de atos trágicos: as irmãs já não veem mais motivos para continuarem se prostituindo para juntar dinheiro para o enxoval da irmã mais nova, revelam-se os podres da família. Descobre-se que “seu” Noronha é o responsável pela prostituição das filhas e, como consequência, há o desfecho trágico: ele é assassinado pelas próprias filhas.

Unindo esses fatores do trágico ao fato de que a peça desenvolve-se em torno de si mesma, como absoluta, sem utilizar-se de nenhum fator externo, a peça se caracterizará como drama moderno. Isto porque, dentro desse absolutismo dramático, reina o diálogo como fator linguístico escolhido para carregar todas as informações necessárias para o desenvolvimento da peça, e ela transcorre num tempo presente, dado o início da ação até o desfecho, com a morte de Bibelot e “Seu” Noronha.
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NOTA

[6] Por outro lado, “Divina Comédia” também pode ser uma alusão ao poema de Dante.

continua…

Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. ©Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e autores

terça-feira, 7 de junho de 2016

Elen de Medeiros (Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: A Estética do Trágico Moderno) 2a. Parte

Vejamos este exemplo de O beijo no asfalto:

CUNHA – Noiva. Vai se casar. Eu quando eu olho pra você, penso na minha filha. Nunca se sabe o dia de amanhã. Vamos que o meu genro. Essas coisas, sabe como é. Casamento é loteria, mas eu, quero que você, entende? (Para o repórter) Você não acha, Amado? (Para Selminha novamente) Quero que você me veja como um pai. Agora responda: – ainda tem medo de mim? (RODRIGUES, 1990:133)

Ou então, em Toda nudez será castigada, peça escrita poucos anos depois:

HERCULANO – Meu bem, raciocina! Você vai ter sua noite de núpcias, como se eu fosse deflorar você. E outra coisa. Eu tenho uma casa, longe da cidade. No subúrbio. Mobiliada, tem tudo lá. A família que estava lá saiu. Vamos pegar um táxi. Te deixo lá. Mas, já sabe: – eu volto, nada de dormir. Só quando for minha esposa. Você fica lá e não sai, não sai. (Idem, ibidem:198)

Vê-se que, principalmente, há quebra das orações, numa tentativa de transpor a oralidade para dentro do texto. As frases quebradas, principalmente pelo ponto final, estabelecendo a desordem sintática no diálogo, fazem de Nelson um autor peculiar nesse aspecto.

A época do drama moderno é sempre o presente. Quando o presente passa, se torna passado, mas não estará mais em cena. Como absoluto, o drama funda o seu próprio tempo. Isso só é possível pela sua estrutura dialética, baseada na relação intersubjetiva. Esse, então, é o terceiro elemento constitutivo do drama: o tempo presente.

A totalidade do drama é de origem dialética. Ela se desenvolveu mediante a superação, sempre efetivada e sempre novamente destruída, da dialética intersubjetiva, que no diálogo se torna linguagem. O diálogo é o suporte do drama.(SZONDI, 2001:34)

Quando verificada a crise do drama, Szondi identifica-a por volta do final do século XIX, pois há negação de seu conteúdo dialético e absoluto. Quando os três fatores da forma dramática entram em relação com sujeito ou objeto, eles são relativizados e perdem sua força. Grande parte dos dramas dessa época traz a oposição entre sujeito e objeto, que é representada pelas cenas épicas inseridas nas cenas dramáticas. Assim, o drama começou a sofrer algumas invasões de elementos épicos, que foram a causa principal de sua crise e de sua transformação.

Na tragédia clássica, o homem não tinha domínio sobre seus atos e decisões, era dominado por forças metafísicas, transcendentes – as forças dos deuses. Assim, o homem figurava como objeto dos deuses, o que resultava numa oposição entre sujeito e objeto no drama, e o herói não era sujeito das suas ações.

No drama moderno, conforme explica Szondi, a distinção entre sujeito e objeto não é perceptível, pois ao mesmo tempo em que o homem é sujeito de suas ações, ele também é objeto de outros homens. Ou seja, ao mesmo tempo em que o herói do drama moderno é dotado de arbítrio para suas atitudes – e por isso a esfera do “inter” da qual fala Szondi –, ele também é o objeto de outros homens, dotados de poderes superiores que o dominam.

Portanto, a grande crise do drama moderno é justamente quando, com a inserção de elementos épicos e com a impossibilidade do diálogo, essa distinção entre sujeito e objeto volta à tona, tirando do herói sua própria existência, colocando-o como objeto. Ou melhor, o herói perde a possibilidade de ser, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto da ação. Nisso Szondi identifica a crise do drama moderno.

Os três elementos constitutivos do drama moderno, conforme o aborda Szondi, são reformulados segundo a necessidade surgida após o Renascimento. Por isso que, a partir de então, a ação transcorre na esfera do “inter”. Esta é uma necessidade efetivamente moderna. Com o herói enfrentando suas vontades naturais, entrando em conflito consigo mesmo, toda a condução da trama parte da relação intersubjetiva do herói com a ação. Penso que o ponto culminante da esfera do “inter” relatada por Szondi aconteceu no expressionismo, quando toda a ação transcorria a partir da vontade interna da personagem e tudo o que se passava era fruto da sua imaginação – inclusive as outras personagens.

Quanto aos elementos trágicos, em se tratando de uma configuração moderna, Raymond Williams define-os muito bem em Tragédia moderna (2002). A diferença entre “tragédia” e tragédia – sentido acadêmico e senso comum – permeia toda a primeira parte do livro de Williams. Ele afirma que tragédia pode ser uma experiência imediata, pode ser um conjunto de obras, um conflito teórico, um problema acadêmico. O nome tragédia se tornou comum para alguns tipos de experiência, mas ao mesmo tempo é um nome específico de arte dramática.

Tragédia não é só sofrimento e morte, mas é um tipo específico de acontecimento e de reação trágicos que a tradição incorpora. O que parece que está em jogo é mais um tipo específico de morte, de sofrimento e uma interpretação dessas questões do que propriamente o termo “tragédia” para descrever algo diverso de uma obra da literatura dramática.  Ora, as “tragédias” de Nelson estão repletas de tragédias. Ainda que mescladas a situações grotescas e risíveis, elas são trágicas, fortalecendo e auxiliando na elaboração de um gênero trágico moderno. São momentos de agonia, morte, desespero das personagens que, enclausuradas em um modo de vida específico, cheias de vícios, misturam os sentimentos com as atitudes, criando situações farsescas, tragicômicas ou melodramáticas.

Hegel, explica Williams, definiu a tragédia como um tipo especial de ação espiritual, mais do que acontecimentos específicos. Essa ideia marca a necessidade de ideias trágicas modernas. Para Hegel, o importante na tragédia são as causas do sofrimento, e não apenas o mero sofrimento. Assim, a definição hegeliana de tragédia está centrada num conflito de substância ética. Como condição para que a tragédia ocorra, é preciso que a personagem esteja consciente da sua individualidade e os conflitos individuais e naquilo que acarretam são essenciais para a efetivação da ação trágica. Ou melhor, tanto os propósitos do indivíduo quanto o conflito resultante são essenciais e substanciais.

A diferença entre tragédia antiga e moderna é que a primeira trabalha a personagem representando fins éticos de uma sociedade, enquanto a última volta-se à necessidade individual. Na tragédia moderna, pelo fato de as personagens serem mais individualizadas, a questão toda da resolução é mais difícil. A justiça é mais abstrata, mais fria. Quando ocorre reconciliação, acontece no interior da personagem, é mais completa e menos satisfatória. Assim, o isolamento do herói trágico é uma característica da tragédia moderna. Visto isso, pode-se perceber que Williams e Szondi convergem suas ideias de moderno, que estão voltadas, principalmente, para a necessidade individual do herói.

Segundo Raymond Williams, a teoria trágica é interessante pois, por meio dela, compreendemos mais a fundo o contorno e a conformação de uma cultura específica. Mas a tragédia deve ser compreendida dentro de um determinado contexto, caso contrário ela se transformará apenas em um aglomerado de experiências, convenções. “Em situações nas quais o sofrimento se faz sentir, nas quais ele abrange o outro, estamos, claramente, no âmbito das possíveis dimensões da tragédia.” (WILLIAMS, 2002:71) E a tragédia acadêmica é uma ideologia. O que está em jogo é a característica e a qualidade do sentido geral, não o processo que vincula um evento a este sentido geral. Separar tragédia de “mero sofrimento”, além de moderna, é o ato de separar o controle ético e a ação humana da nossa compreensão da vida política e social.

A interpretação mais comum da tragédia a vê como uma ação que destrói o herói. Porém, essa é apenas uma interpretação parcial, pois nem todas as tragédias terminam com a destruição do herói. O herói pode até ser destruído, mas isso não implica o fim da ação trágica. Pensamos na tragédia como aquilo que acontece com o herói, mas a ação trágica usual é o que acontece por meio do herói. 

A falecida, encenada pela primeira vez em 1953, é a peça que abre o novo ciclo da dramaturgia de Nelson Rodrigues. Sob a classificação de farsa trágica[5], ela vem apresentar ao público uma nova perspectiva do autor, substituindo o clima tenso e complexo das peças míticas – repletas de incestos e assassinatos – por um clima mais ameno, menos tenso, em que o riso tem seu lugar certo.

Coerente com seu propósito, Nelson mescla elementos constitutivos da farsa e da tragédia, compondo, assim, a farsa trágica. Os elementos que irão constituir a parte farsesca da peça são justamente os elementos cômicos, presentes em grande parte das cenas, que por parte aliviam a tensão causada pelos elementos trágicos. Em geral, além de trazer à tona o riso, esses elementos também são utilizados como recurso para que o público possa sentir-se mais à vontade com algumas situações cotidianas, que denunciam fatores repressivos da sociedade. Ou seja, os elementos da farsa são formas de uma subversão, pois o espectador pode rir e liberar-se de alguma repressão provinda da sociedade. Exemplo disso são algumas cenas grotescas, que evidenciam um cotidiano grosseiro do subúrbio carioca, da peça em questão.

Logo no início da peça, já na primeira cena, em que Zulmira vai à cartomante, Madame Crisálida depõe contra si mesma: com um pano de enxugar pratos, aparência desgrenhada, de miséria, acompanhada de um menino de pés no chão que permanece durante toda a cena, “bravamente, com o dedo no nariz” (RODRIGUES, 1985:57). E assim compõe-se quase toda a peça, de elementos do grotesco do cotidiano. Mais adiante, há uma passagem na terceira cena do mesmo ato em que Tuninho fica com dor de barriga por causa de um pastel que comeu e precisa ir para casa. Ao tentar entrar no banheiro, Zulmira está lá dentro, numa posição de “O Pensador”, de Rodin. Saindo Zulmira, entra Tuninho e assume a mesma posição. Assim há várias cenas, principalmente as que retratam uma relação matrimonial enfadada e desgastada, completando uma aparente decadência financeira da família:

(Larga os sapatos. Deita-se, numa melancolia medonha. Ao lado, sentada, no meio da cama, Zulmira se torce, em acessos tremendos.)
TUNINHO – Às vezes, eu tenho inveja de ti. Tu não te interessa por futebol, não sabes quem é Ademir, não ficas de cabeça inchada, quer dizer, não tens esses aborrecimentos... Benza-te Deus!
(Tuninho vira-se para o lado. Acesso de Zulmira.)
ZULMIRA – Ai, meu Deus, ai meu Deus!
(Tuninho, ao lado, já ronca. Nova golfada de Zulmira. Encosta o lenço na ponta da língua. Olha e, patética, sacode o marido.) (Idem, ibidem:94)

O misto entre os elementos cômicos e trágicos evidencia um misto de gêneros, característicos do autor. A distinção de gêneros já não cabe a Nelson, ao seu teatro. Aqui, os próprios elementos cômicos são trágicos e vice-versa. Assim, é difícil distinguir quais são os elementos meramente cômicos ou meramente trágicos, visto que eles se fundem, se mesclam, tornando-os tragicômicos.
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Nota

[5] À farsa geralmente se associa um cômico grotesco e bufão, um riso grosseiro e um estilo pouco refinado: qualificativos condescendentes e que estabelecem de imediato e muitas vezes de maneira abusiva que a farsa é oposta ao espírito, que ela está em parte ligada ao corpo, à realidade social, ao cotidiano. A farsa sempre é definida como forma primitiva e grosseira que não poderia elevar-se ao nível de comédia. (PAVIS, 1999:164)

continua…

Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. ©Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e autores

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Irmãos Grimm (Frederico e Catarina)


Houve, uma vez, um moço que se chamava Frederico e uma moça que se chamava Catarina. Tinham-se casado e viviam a vidinha dos recém-casados. Um dia, disse Frederico:

- Vou ao campo, querida Catarina, e, quando eu voltar, quero encontrar qualquer coisa bem quentinha em cima da mesa, para matar a fome, e cerveja bem fresquinha para matar a sede.

- Está bem, querido Frederico! - respondeu a mulher - Podes ir sossegado, que arranjarei tudo direitinho.

Ao se aproximar a hora do almoço, ela tirou uma salsicha do fumeiro, colocou-a na frigideira, com manteiga, e levou ao fogo. Não demorou muito, a salsicha começou a fritar fazendo espirrar gordura por todos os lados. Enquanto isso, Catarina segurava o cabo da frigideira, muito pensativa. De repente, lembrou-se: "Enquanto a salsicha vai fritando, poderias ir buscar a cerveja na adega." Então arrumou direito a frigideira, pegou uma jarra e desceu à adega para tirar cerveja. Abriu a torneira, a cerveja começou a jorrar para a jarra e ela olhava pensativa, mas lembrou-se: "Oh, e se o cachorro na minha ausência entra na cozinha e rouba-me a salsicha da frigideira? Era só o que faltava!" Largou a jarra e disparou para a cozinha.

Mas chegou tarde demais, o velhaco já estava com a salsicha na boca e ia arrastando-a para fora. Catarina saiu correndo atrás dele pelo meio do campo, mas o animal era mais esperto e mais ligeiro das pernas do que ela, não largou a salsicha e meteu-se no meio do mato.

- Pois que vá! - exclamou Catarina voltando pelo caminho, cansada e afogueada de tanto correr. Assim, muito calmamente entrou em casa enxugando o suor do rosto.

Enquanto isso, a cerveja ficou escorrendo do barril, porque ela se tinha esquecido de fechar a torneira. Enchendo a jarra, a cerveja passou a escorrer pelo chão, espalhando-se pela adega inteira. Quando chegou no alto da escada que ia dar à adega, Catarina viu aquele desastre e exclamou:

- Meu Deus! Que hei de fazer agora para que Frederico não veja esse estrago?

Depois de refletir um pouco, lembrou-se de que ainda sobrara da última quermesse um saco de farinha de trigo. Foi buscá-lo no canto onde estava e espalhou-o por cima da cerveja esparramada.

- Muito bem! - disse ela - Quem sabe guardar sempre encontra no momento preciso. Mas, arrastando o saco com muita pressa, esbarrou desastradamente na jarra cheia, entornando-a, e a cerveja ajudou também a lavar a adega.

- Bem! - disse ela - Aonde vai um deve ir o outro também.

E espalhou bem a farinha por toda a adega. Depois disse, muito satisfeita com o trabalho:

- Agora sim! Vejam como está tudo limpo e bonito!

À hora do almoço, Frederico voltou para casa.

- Então, mulher, que me preparaste de bom?

- Ah, querido Fred! - respondeu ela - eu quis fritar uma salsicha para ti, mas, enquanto fui buscar a cerveja na adega, o cachorro roubou a salsicha. Enquanto fui correndo atrás do cachorro, a cerveja derramou-se, espalhando-se pela adega. Quando fui enxugar a cerveja com a farinha, entornei a jarra. Mas não te aborreças, a adega está toda limpinha e brilhante outra vez!

- Ah, Catarina, - disse Fred. - Não devias ter feito isso. Deixas roubar a salsicha, esvazias a cerveja e ainda por cima espalhas, perdendo toda a nossa melhor farinha!

- É, Fred, eu não sabia, devias ter-me dito.

O marido, então, se pôs a pensar: "Com uma mulher assim, é preciso precaver-se!" Ele tinha justamente economizado uma soma regular de moedas de prata, trocou- as em moedas de ouro e disse a Catarina:

- Olha aqui, mulher, são tremoços loirinhos. Vou guardar dentro deste pote e enterrar no estábulo, sob a manjedoura da vaca. Mas não te metas com ele, pois do contrário te arrependerás.

- Não, Fred! - disse ela - Não o farei, com toda a certeza.

Mas assim que Fred saiu, chegaram à aldeia alguns vendedores ambulantes, levando potes e vasilhas de barro para vender. Chegando à casa de Catarina, perguntaram se desejava comprar alguma coisa.

- Ah, boa gente! - disse ela - Não posso comprar nada. Dinheiro não tenho, só se quiserem tremoços bem loirinhos.

- Tremoços loirinhos? Por quê não? Deixa-nos ver.

- Ide procurar no estábulo por baixo da manjedoura da vaca, lá está enterrado um pote cheio deles. Eu não posso ir.

Os patifes não perderam tempo, puseram-se a cavar e logo desenterraram o pote cheio de moedas de ouro. Meteram tudo nos bolsos e, mais que depressa fugiram, deixando na casa a pobre mercadoria de barro.

Catarina então pensou: Já que ficara com todas essas vasilhas novas era preciso aproveitá-las. Como na cozinha não precisasse de nada, tirou os fundos dos potes e colocou-os como ornamento nas estacas da cerca em volta da casa. Quando Fred voltou e viu aquela decoração de um gênero diferente, perguntou:

- Que significa isso, Catarina?

- Comprei tudo com os tremoços enterrados debaixo da manjedoura. Não fui eu que os desenterrei. Os vendedores tiveram que se arranjar sozinhos.

- Ah, mulher, o que fizeste? Não eram tremoços, mas ouro puro. Era tudo o que possuíamos na vida! Não devias ter feito isso!

- Oh, Fred! - respondeu ela - eu não sabia. Devias ter-me dito.

E Catarina se pôs a refletir, e depois de certo tempo disse:

- Escuta, Fred, vamos reaver o nosso ouro. Vamos perseguir os ladrões.

Fred respondeu:

- Sim, vamos tentar. Mas leva um pouco de manteiga e queijo para termos o que comer durante o caminho.

- Sim, Fred, levarei tudo.

Puseram-se a caminho, mas como Fred andava mais depressa, Catarina foi ficando para trás. "Tanto melhor, - pensava ela, - pois quando voltarmos eu estarei na frente um bom pedaço."

Daí a pouco chegaram a uma colina bastante íngreme, cuja estrada tinha sulcos profundos dos dois lados.

- Oh! Veja só como esta pobre terra está toda machucada e ferida! - disse ela - nunca mais se curará!

Profundamente penalizada, pegou a manteiga e untou as rachaduras de um lado e de outro para que não ficassem tão maltratadas pelas rodas. Mas quando se curvou para fazer o seu ato de misericórdia, um dos queijos caiu-lhe do bolso e desceu rolando pelo morro abaixo.

- Já fiz a caminhada para cima uma vez - murmurou ela - não vou agora descer para tornar a subir. Que vá outro buscá-lo.

Assim dizendo, pegou o outro queijo e jogou-o atrás do primeiro. Mas os queijos não voltavam, e então ela pensou:

- Talvez estejam esperando um companheiro, por não gostar de voltar sozinhos!

E fez rolar para baixo um terceiro. E como os três não se resolviam a voltar, ela pensou:

- Realmente não sei o que quer dizer isto! É provável que o terceiro queijo tenha errado o caminho. Vou mandar um quarto buscá-los.

Mas o quarto não se comportou melhor que os outros. Então Catarina irritou-se e atirou o quinto e depois o sexto queijo, que eram os últimos.

Ficou um certo tempo esperando que voltassem, mas como nenhum voltasse, exclamou:

- Lerdos e poltrões como sois, poderia mandar-vos chamar a morte! Se imaginam que vou esperar mais tempo, enganam-se! Eu vou seguindo o caminho. Podeis correr e alcançar-me se quiserdes, pois tendes pernas mais fortes que as minhas.

Catarina prosseguiu o caminho e alcançou Fred, que tinha parado para a esperar, pois estava com muita fome e desejava comer alguma coisa.

- Bem, deixa-me ver o que trouxeste para comer.

Catarina deu-lhe pão seco.

- E a manteiga? E o queijo? Onde estão? - perguntou o marido.

- Oh, Fred! - respondeu ela. - Passei a manteiga nos sulcos da estrada. Quanto aos queijos logo estarão aqui, um escapou do meu bolso e eu então mandei os outros atrás para que fossem buscá-lo.

- Não devias ter feito isso, Catarina! - disse Fred - Untar a estrada com a manteiga e mandar os queijos rolando morro abaixo!

- Oh, Fred! Se me tivesses dito! - exclamou vexada.

Tiveram, então, de comer pão seco. Enquanto comiam, Fred perguntou:

- Fechaste bem a casa, Catarina?

- Não, Fred, devias ter-me dito antes.

- Então volta para casa e tranca bem a porta, antes de irmos mais adiante, assim aproveitas para trazer o que comermos. Eu te ficarei esperando aqui.

Catarina voltou para casa, resmungando consigo mesma:

- Fred quer alguma coisa para comer. Queijo e manteiga não lhe agradam. Levarei um saco de peras secas e uma garrafa de vinho.

Tendo reunido essas coisas, fechou a parte de cima da porta com cadeado, arrancou a parte de baixo e carregou no ombro, imaginando que a casa ficaria melhor guardada se ela pessoalmente guardasse a porta. Pelo caminho, não se apressou, pensando com isso proporcionar um descanso mais prolongado a Fred. Quando chegou ao ponto onde ele a esperava, deu-lhe a porta da casa dizendo:

- Aqui está a porta da casa, Fred. Assim podes guardar tu mesmo a casa.

- Oh, Deus meu! - disse Fred - Como é inteligente a minha mulher! Trancou a parte de cima da porta e arrancou a parte debaixo, por onde qualquer pessoa pode entrar mais facilmente! Agora é tarde demais para voltar, mas já que trouxeste a porta até aqui, tu a poderás continuar a carregar.

- Carrego a porta de boa vontade! - respondeu Catarina - Mas as peras e o vinho pesam muito. Vou pendurar o saco e a garrafa na porta para que ela os carregue.

Pouco depois, chegaram a uma floresta e se puseram a procurar os ladrões, mas não os encontraram. Sendo já muito escuro, treparam os dois numa árvore, a fim de passar aí a noite. Nem bem tinham chegado lá em cima, surgiram os malandros que lhes tinham roubado as moedas e, por coincidência, sentaram-se justamente debaixo da árvore na qual os dois tinham subido. Acenderam uma fogueira e se dispunham a repartir a presa.

Fred cautelosamente desceu pelo outro lado da árvore, apanhou uma porção de pedras e tornou a subir, com a firme intenção de liquidar os ladrões a pedradas. Mas as pedras não os atingiram e os ladrões exclamaram:

- Daqui a pouco vai clarear o dia, o vento já está sacudindo as pinhas.

Durante o tempo todo, Catarina tinha ficado com a porta no ombro e como o peso era grande ela pensou que a culpa era das peras secas. Então disse:

- Fred! Preciso atirar fora estas peras.

- Não, Catarina! - respondeu o marido - Não faças isso agora, poderia nos trair.

- Ah, Fred, preciso atirá-las, estão pesadas demais.

- Então atira e que o diabo te leve.

As peras secas rolaram de cima da árvore, por entre os galhos, e os malandros disseram:

- Veja só o que estão fazendo os passarinhos!

Pouco depois, como a porta continuasse a pesar, Catarina disse:

- Ah, Fred, preciso atirar fora o vinho.

- Não, não! - respondeu Fred - poderia nos trair.

- Mas preciso atirá-lo, Fred! Está muito pesado.

- Então atira e que o diabo te leve.

Ela despejou o vinho em cima dos malandros e estes disseram:

- Olha, já está caindo o orvalho.

Daí a pouco, porém, Catarina refletiu: "Será que é a porta que está pesando tanto?" e disse:

- Fred, tenho de jogar a porta.

- Não faças isso, Catarina! Ela nos trairá.

- Ah, Fred, preciso fazê-lo. Não aguento mais o peso.

- Não, Catarina! Aguenta mais um pouco.

- Não, Fred, não posso... Já está escorregando!

- Então jogue e que o diabo te leve, - respondeu irritado o marido.

E a porta desceu, fazendo um barulhão enorme, por entre os galhos. Os malandros, assustados, disseram:

- É o diabo que vem descendo da árvore!

Então trataram de fugir a toda pressa, largando no chão o fruto da pilhagem. Quando amanheceu, Fred e a mulher desceram da árvore, encontraram no chão todo o dinheiro e voltaram para casa. Assim que chegaram, Fred disse:

- Agora, porém, Catarina, tens de trabalhar duro e fazer tudo direito!

- Sim, Fred, naturalmente! - respondeu ela - Irei ao campo ceifar o trigo.

Quando chegou ao campo, ela se pôs a pensar:

- "Será melhor comer antes de ceifar, ou será melhor dormir primeiro? Bem, comerei primeiro."

Depois de comer, ficou caindo de sono, começou a ceifar sem enxergar direito o que fazia, de tanto sono, e assim cortou a roupa em dois pedaços, avental, saia e blusa. Despertando dessa longa sonolência, viu-se meio nua, então perguntou a si mesma:

- Será que sou mesmo eu? Não, não pode ser! Não sou eu que estou aqui!

Nisso a noite foi escurecendo. Catarina correu para casa e bateu na vidraça da sala onde eslava o marido e chamou:

- Fred!

- Que aconteceu? - perguntou o marido.

- Quero saber se a Catarina está aí dentro.

- Está, sim! Está lá dentro dormindo.

- Nesse caso eu estou em casa! - disse ela, e saiu correndo.

Lá fora, Catarina viu alguns ladrões que queriam furtar. Aproximou-se deles e disse:

- Quero ajudar-vos também.

Os ladrões concordaram, julgando que ela conhecesse bem o lugar. Mas Catarina, colocando-se diante das casas, perguntava:

- Minha boa gente, que tendes aí? Nós queremos roubar!

Pensando que ela queria vingar-se deles, os ladrões trataram de se ver livres dela e disseram-lhe:

- À entrada da aldeia, o pároco tem uma porção de nabos amontoados no campo, vai buscá-los para nós.

Catarina foi até o campo e começou a apanhar os nabos, mas era tão preguiçosa que tardava a mover-se. Nesse momento, ia passando um homem que a viu e parou, julgando que ela fosse o Diabo que estivesse ali colhendo os nabos. Correu à casa do pároco e disse:

- Reverendo, o diabo está no vosso campo, arrancando todos os nabos.

- Pobre de mim! - respondeu o padre - Estou com um pó machucado e não posso ir lá exorciza-lo!

O homem, então, disse:

- Isso não tem importância, eu vos carregarei nas costas!

Quando chegaram ao campo, Catarina pôs-se de pé, espichando-se toda.

- Ah, é o diabo, é o diabo! - exclamou apavorado o padre, e deitou a correr juntamente com o homem.

Tão grande era o medo, que o pároco, com o pé machucado, corria mais depressa do que o outro que o carregara nas costas e que tinha os pés sãos.

Fonte:
http://www.grimmstories.com/pt/grimm_contos/titles

Elen de Medeiros (Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: A Estética do Trágico Moderno) 1a. Parte

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RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo apresentar um estudo das Tragédias Cariocas, último ciclo do teatro de Nelson Rodrigues, sob a perspectiva do trágico moderno. Para isso, estudiosos do gênero, como Peter Szondi e Raymond Williams, foram tomados como base para compreender a modificação que tem ocorrido dentro do gênero no decorrer dos séculos. Aspectos como o funcionamento das três unidades aristotélicas, as personagens e a ação desenvolvida através da relação intersubjetiva, além, é claro, da própria ideia que a palavra trágico tem se apropriado, é fundamental para entender o mecanismo interno deste gênero literário.
                                                                           
1. Introdução

O que segue é uma análise voltada à tragédia como gênero literário e em seu sentido popular, ou seja, no seu sentido mais acadêmico e no uso comum do termo. A princípio, as peças em estudo são classificadas como tragédias, denominação que Nelson adotou antes de falecer quando na elaboração do seu teatro completo. Porém, verificarei se podem realmente ser definidas como tragédias, uma vez que a base do gênero mudou radicalmente. Isso porque desde o surgimento da tragédia grega, com os helênicos, passando por uma crise, com Eurípides, até uma tentativa de salvamento, com os alemães[1], tal formação teatral pouco manteve de sua ideia inicial, da sua ambivalência dionisíaca e apolínea. Da tragédia grega à tragédia moderna houve uma transformação gigantesca. E esse resultado é o que mais me interessa, visto que é com base na tragédia moderna que analisarei Nelson Rodrigues.

Quando falamos em tragédia, numa concepção atual e vulgar do termo, sempre nos vem à mente um acontecimento ruim, relacionado ou a acidentes, ou a problemas sérios. E quando falamos, então, em ler uma tragédia ou assistir a uma tragédia, pensamos logo numa peça de teatro que envolva acontecimentos tristes, mortes, desgraça para as personagens. É certo que isso vem de uma tradição e se mantém até hoje, extrapolando as fronteiras da dramaturgia e inserindo-se no cotidiano. E isso é ainda mais forte quando vinculado ao nome de Nelson Rodrigues, um dramaturgo tido por maldito, cujas peças são infestadas de mortes, assassinatos, suicídios, relações incestuosas. Mas também é certo que quando falamos em tragédia, principalmente no aspecto literário, abordamos o fator estético: o gênero trágico. E falar de estética literária implica saber como funcionam sua trama, sua estrutura. Para o meio acadêmico, trágico é antes de tudo o gênero. É claro que não devo desconsiderar uma natural ligação entre os dois sentidos de trágico: o sentimento trágico e o gênero trágico.

A tragédia é um gênero que percorreu milhares de anos. Existente desde os helênicos em Sófocles e Ésquilo, ultrapassou todo esse tempo e persiste até hoje entre nós. Obviamente, depois de tanto tempo, ela não permanece com as mesmas características. A tragédia helênica, conforme explica Nietzsche, tinha como base principal o coro, que com o tempo, mais precisamente com a influência de Sócrates sobre Eurípides, foi abolido, perdendo a tragédia seu elemento ambivalente fundamental[2]. Hoje se consegue distinguir a tragédia clássica, medieval, renascentista, elisabetana, neoclássica e a tragédia moderna[3]. A que mais me interessa neste momento é a última, a permanência da tragédia moderna, pois é a partir dela que pretendo analisar as tragédias rodrigueanas.

2. Trágico rodrigueano

A obra dramática rodrigueana tem suas peculiaridades estéticas e formais, principalmente se formos percebê-la sob a perspectiva da tradição da tragédia. Falo de peculiaridades tanto se olharmos Nelson com base nesta tradição quanto se o vermos dentro de seu próprio conjunto de peças, uma vez que ele sempre tentou experimentar novos formatos.

Nas Tragédias Cariocas, Nelson elaborou o próprio sentido do trágico, misturado ao riso e ao grotesco. Daí provêm as várias nomenclaturas para designar suas peças, variando de “tragédia carioca” à simples “peça”. A questão é se, com tais nomenclaturas, o dramaturgo manteve uma linha trágica, com elementos do trágico clássico e do trágico moderno, fundando o que eu prefiro chamar de trágico rodrigueano.

Se por um lado a tragédia clássica baseava-se na representação do mito a partir de uma perspectiva externa, a tragédia moderna se funda na esfera do intersubjetivo, numa perspectiva interna. Assim, o que interessa na tragédia helênica é o que está fora, tanto das personagens quanto da sua própria estética. Já na tragédia moderna, interessa o que está dentro.

Conforme Schiller explica em Teoria da tragédia (1991), a tragédia é a representação do real, apenas transparecendo imagens dos homens enfrentando situações-limite impulsionados pelas crenças espirituais. “O trágico apresenta o homem naquela situação-limite em que, ser natural que é, comprova contudo a sua destinação espiritual.” (1991:12) Assim, a tragédia mostra o homem sofrendo, mas resistindo a esse sofrimento graças à dignidade. Mostra, enfim, a luta que há entre a vontade e a natureza, a moral e o natural, não sem sofrimento, mas com resistência.

Sabe-se, entretanto, que Schiller desenvolveu suas ideias acerca da tragédia clássica. Apesar de ser um olhar voltado ao clássico, essa carga de tragicidade, de sofrimento, perdurou por muito tempo e ainda hoje resiste. Embora as bases da tragédia tenham mudado radicalmente, pode ser identificada, pelo menos em Nelson Rodrigues, a tendência em demonstrar a vontade do herói em luta contra a natureza. Ou seja, o herói [4] possui uma vontade interna iminente que entra em conflito com um fator externo, social, natural, desafiando as “forças do universo”.

Exemplos disso são os heróis das tragédias de Nelson Rodrigues. Há neles uma tentativa à adequação moral imposta pela sociedade vigente, em que eles se portam conforme são ditadas as regras, comportando-se como bons maridos, esposas, filhos e pais de família. Entretanto, a vontade interior de cada um deles clama por uma libertação. Daí surge o conflito que se passa no íntimo das personagens: a luta entre o que elas querem e o que elas devem. Porém, chega um momento em que os desejos são mais fortes, sobressaem-se às regras sociais, extrapolam protocolos e são, enfim, revelados. Então, surgem a agonia e o sofrimento, pois as personagens digladiam consigo mesmas e com outras personagens, até que elas deixam de resistir, resignam-se a aceitar a força maior do desejo evidente.

Assim é o caso de Zulmira, Tio Raul, “Seu” Noronha, Aprígio, Werneck e Herculano – cada qual com suas peculiaridades. São personagens que sofrem por um desejo reprimido e sucumbem a esse desejo depois de um estado de luta entre a vontade e o natural. Nesse aspecto, Nelson Rodrigues consegue atualizar o que o trágico clássico pretendia, como também consegue, ao mesmo tempo, refletir aquilo que há de mais incômodo na sociedade contemporânea: a relação conflitante entre desejo e repressão social. No entanto, há no herói e no sábio da arte trágica uma superioridade, pois eles não sofrem suas dores, comovem-se e comovem-nos. Tanto é assim que o sofrimento do homem virtuoso nos comove mais dolorosamente que o do depravado. Já a felicidade de um malfeitor nos faz sofrer muito mais que a infelicidade de um homem virtuoso. Nelson Rodrigues comentou atitude sua semelhante, ao comparar seu trabalho dramático com Brecht:

Brecht inventou a “distância crítica” entre o espectador e a peça. Era uma maneira de isolar a emoção. Não me parece que tenha sido bem-sucedido em tal experiência. O que se verifica, inversamente, é que ele faz toda sorte de concessões ao patético. Ao passo que eu, na minha infinita modéstia, queria anular qualquer distância. A plateia sofreria tanto quanto o personagem e como se fosse também personagem. A partir do momento em que a plateia deixa de existir como plateia – está realizado o mistério teatral.
 
O “teatro desagradável” ofende e humilha e com o sofrimento está criada a relação mágica. Não há distância. O espectador subiu ao palco e não tem a noção da própria identidade. Está ali como o homem. (RODRIGUES, 1995:286)

Com isso, o dramaturgo apresenta sua intenção que já fica clara em suas peças: levar o sofrimento humano, sem distanciamento, para o palco, para que o público possa refletir sobre suas dores. Além, é claro, que possa sofrer ao mesmo tempo em que a personagem sofre no palco. Em suma, a intenção de Schiller está transparecida na intenção de Nelson Rodrigues. Se o herói sofre, o espectador sofre junto.

Aquele estado de luta do qual Schiller fala, e transcrevo aqui, acontece justamente para que o homem mantenha a adequação moral. É por conta desse princípio que a tragédia é o gênero literário que mais proporciona prazer moral. Na tragédia os instintos naturais são suprimidos em prol da adequação moral. Assim é o processo de Nelson Rodrigues nas suas tragédias, pois as personagens não conseguem carregar em si a força da moral e sucumbem, depois de um estado de luta, à força natural, ou melhor, ao instinto.

Se formos utilizar o exemplo de Zulmira, de A falecida, identificamos um viés semelhante ao explanado por Schiller. Zulmira tem uma estranha doença não diagnosticada pelo médico, mas instintivamente descoberta pela própria heroína. Ao mesmo tempo, sabemos da implicância que ela tem com sua prima Glorinha, inclusive atribuindo a ela o motivo de sua doença. Inconscientemente, Zulmira sacrifica-se em prol de uma moral, uma vez que a sua traição foi descoberta e, moralmente, ela não aceita o fato de ter um amante. Daí, a busca de uma doença para compensar a traição.

(Zulmira num desespero maior.)
ZULMIRA – Mas ela tem razão! Eu é que não podia ter um amante!
PIMENTEL – Vem cá!
(Pimentel tenta segurar Zulmira, que se desprende com violência.)
ZULMIRA – Não me toque!
PIMENTEL – Dá um beijo!
ZULMIRA – Nunca!
PIMENTEL – Por quê?
ZULMIRA – Não adianta. Não acho mais graça em beijo, não acho mais graça em nada! (RODRIGUES, 1985:110-1)

Mas é aqui que acontece o caminho inverso da tragédia clássica: a adequação moral está no interior da própria personagem, não no externo, representado na ação trágica. Há a busca da realidade, mas da realidade interior. E a realidade interior de Zulmira é que não podia ter traído o marido, por isso agora não pode amar mais ninguém e abstém-se do amor.

Um outro exemplo é o do jovem Arandir, de O beijo no asfalto. Aparentemente um herói inexoravelmente virtuoso, mas cuja virtude vai sendo, pouco a pouco, destruída pelas matérias sensacionalistas do repórter Amado Ribeiro. Aos olhos do público, Amado faz Arandir aparecer como um homossexual, que empurrou o amante para debaixo do lotação e o beijou. Dentro do texto, sabe-se que Arandir não empurrou o rapaz, pois o próprio Amado confirma que é invenção sua. Por outro lado, sobre o beijo dado no atropelado, paira uma dúvida durante toda a peça, pois há o testemunho de Arandir, de Aprígio e de Amado, sempre contraditórios e ambíguos. Esse é um fator que faz desta peça uma das grandes obras-primas de Nelson: a questão do beijo não é resolvida, ninguém fica sabendo em que circunstâncias o beijo foi dado, visto que o próprio Arandir se contradiz sobre o beijo que ele mesmo deu.

SELMINHA (com surda irritação) – Primeiro, responde. Preciso saber. O jornal botou que você beijou.
ARANDIR – Pensa em nós.
SELMINHA – Com outra mulher. Eu sou tua mulher. Você beijou na...
ARANDIR (sôfrego) – Eu te contei. Propriamente, eu não. Escuta. Quando eu me abaixei. O rapaz me pediu um beijo. Um beijo. Quase sem voz. E passou a mão por trás da minha cabeça, assim. E puxou. E, na agonia, ele me beijou.
SELMINHA – Na boca?
ARANDIR – Já respondi.
SELMINHA (recuando) – E por que é que você, ontem!
ARANDIR – Selminha.
SELMINHA (chorando) – Não foi assim que você me contou. Discuti com meu pai. Jurei que você não me escondia nada!
ARANDIR – Era alguém! Escuta! Alguém que estava morrendo. Selminha. Querida, olha! (Arandir agarra a mulher. Procura beijá-la. Selminha foge com o rosto) Um beijo.
SELMINHA (debatendo-se) – Não! (Selminha desprende-se com violência. Instintivamente, sem consciência do próprio gesto, passa as costas da mão nos lábios, como se os limpasse.) (RODRIGUES, 1990:128)

Por ter beijado na boca outro homem, por ter sucumbido a uma vontade maior, a uma força natural, Arandir encontra-se em luta consigo mesmo, num sofrimento solitário, pois ninguém mais acredita nele, que, ainda assim, resiste contra as forças externas, as imposições e protocolos sociais.

Para Schiller, o teatro é uma forma artística capaz de elevar o sentimento humano a um sublime entretenimento. É no teatro que se evocam as coisas mais inteligíveis e autênticas, onde há homens de vício e virtude, onde há a felicidade e a desgraça. É no teatro que o homem confessa suas paixões, onde tira suas máscaras, onde a verdade se mantém incorruptível. Assim vejo o teatro de Nelson Rodrigues: nele, os homens não conseguem se manter nas formalidades que a sociedade impõe e revelam os seus maiores problemas, suas verdades, sejam elas quais forem.

As personagens trágicas, essas são seres reais, que obedecem à violência do momento e representam um indivíduo e revelam a profundeza da humanidade. Assim são as personagens de Nelson Rodrigues: parecem ser representantes da espécie, uma espécie repleta de segredos, os quais elas vêm revelar. Revelam não somente as suas verdades, mas a realidade de uma sociedade inteira.

Conforme explica Peter Szondi, em Teoria do drama moderno (2001), o conceito de drama possui vínculos históricos também com sua origem e não somente com seu conteúdo. Uma vez que a arte expressa algo inquestionável, seu entendimento só é total em uma época para a qual o evidente se tornou problema. Ou seja, do ponto de vista estético, uma obra de arte só é compreensível em uma certa época em que foi escrita e quando a sua problemática estava em voga.

A esfera do “inter”, no drama moderno, parecia o essencial da existência do homem, mas não é nada senão o seu interior que se manifesta e torna-se presença dramática. Tudo o que ficava aquém ou além dessa esfera, deveria permanecer estranho ao drama, principalmente o que era desprovido de emoção. Desse modo, toda a temática do drama se manifesta na esfera do “inter”.

Nesse meio intersubjetivo, o meio linguístico utilizado era o diálogo e, no Renascimento, se tornou o único componente da tessitura dramática. Isso é o que distingue o drama da tragédia antiga, da peça religiosa medieval, da peça histórica e do teatro barroco. Assim, o diálogo se compõe no segundo elemento constitutivo do drama, sendo o primeiro a própria ação intersubjetiva.

O diálogo reflete aquilo que se passa no decorrer da trama da peça, dentro do drama. Nada de fora interessa ou é transmitido com o domínio do diálogo. O diálogo é o principal instrumento para a realização das relações interhumanas, ou seja, a ação do “inter” encontra no diálogo sua melhor forma de expressão. O diálogo é o transmissor exclusivo da dinâmica interna do drama moderno.

Nesse caso específico do diálogo, Nelson o incorpora não só enquanto portador de toda ação dramática. O dramaturgo vai além, ele inova na simples forma dialógica teatral. Peças como Boca de Ouro, A falecida, O beijo no asfalto e Toda nudez será castigada, por exemplo, têm toda a peculiaridade nos diálogos. Coerentes com seus propósitos, as personagens mantêm o uso vocabular específico, distintivo. Mas, mais do que isso, é a estruturação dos diálogos, curtos, entrecortados, facilitando a dinâmica interna do texto.
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Notas:
Este texto é parte integrante da dissertação de mestrado denominada Nelson Rodrigues e as Tragédias Cariocas: um estudo crítico social das personagens rodrigueanas, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

[1] A respeito disso, Friedrich Nietzsche desenvolve todo o livro O nascimento da tragédia (2001).

[2] Irã Salomão, em Nelson, feminino e masculino (2000), observa que nas tragédias de Nelson Rodrigues acontece algo semelhante a essa ambivalência, mas entre o feminino e o masculino, que entram em conflito dentro da estrutura dramática, mas não se anulam. “Masculino e feminino realizam um jogo, no qual as regras e seus participantes são muito diferentes de cada lado. (...) Uma fricção e uma fluidez acontecem intermitentemente dentro de cada um destes universos. Da mesma maneira tais contatos e trocas ocorrem entre eles. Neste movimento, nenhuma parte se anula mas, ao contrário disto, elas possuem e reafirmam sua identidade concomitantemente ao seu digladiar.” p. 71.

[3] Quem dá uma abordagem mais detalhada da tragédia de cada época é Raymond Williams em Tragédia Moderna (2002).

[4] Faço observar que, embora seja evidente essa relação entre a vontade e a natureza no teatro rodrigueano, em geral a perspectiva é interna da personagem. Daí Nelson figura-se como dramaturgo moderno. Esse assunto será retomado adiante, quando tratado o trágico moderno.

continua…

Fonte:
Literatura : caminhos e descaminhos em perspectiva / organizadores Enivalda Nunes Freitas e Souza, Eduardo José Tollendal, Luiz Carlos Travaglia. - Uberlândia, EDUFU, 2006. ©Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia e autores