sábado, 13 de fevereiro de 2010

Monteiro Lobato (O Engraçado Arrependido)


Nota: algumas palavras de sentido desconhecido coloquei entre parenteses em tamanho menor após a palavra, de modo a que o leitor não tenha que recorrer constantemente ao final do texto para procura-las
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Conto publicado na Revista do Brasil, n.° 16, de abril de 1917, com o título de “A Gargalhada do Colector”.


Francisco Teixeira de Souza Pontes, galho bastardo duns Souza Pontes de trinta mil arrobas afazendados no Barreiro, só aos trinta a dois anos de idade entrou a pensar seriamente na vida.

Como fosse de natural engraçado, vivera até ali à custa da veia cômica, e com ela amanhara (conseguira) casa, mesa, vestuário e o mais. Sua moeda corrente era micagens, pilhérias, anedotas de inglês e tudo quanto bole com os músculos faciais do animal que ri, vulgo homem, repuxando risos ou matracolejando gargalhadas.

Sabia de cor a Enciclopédia do Riso e da Galhofa, de Fuão Pechincha, o autor mais dessaborido (insípido) que Deus botou no mundo; mas era tal a arte do Pontes, que as sensaborias (conversa enfadonha) mais relambórias (sem graça) ganhavam em sua boca um chiste raro, de fazer os ouvintes babarem de puro gozo.

Para arremedar gente ou bicho, era um gênio. A gama inteira das vozes do cachorro, da acuação aos caititus ao uivo à lua, e o mais, rosnado ou latido, assumia em sua boca perfectibilidade capaz de iludir aos próprios cães - e à lua.

Também grunhia de porco, cacarejava de galinha, coaxava de untanha (anfíbios, tipo o sapo), ralhava de mulher velha, choramingava de fedelho, silenciava de deputado governista ou perorava (discurso com emoção) de patriota em sacada. Que vozeiro de bípede ou quadrúpede não copiava ele às maravilhas, quando tinha pela frente um auditório predisposto?

Descia outras vezes à pré-história. Como fosse d’algumas luzes, quando os ouvintes não eram pecos (néscios) ele reconstituía os vozeirões paleontológicos dos bichos extintos - roncos de mastodontes ou berros de mamutes ao avistarem-se com peludos homos repimpados a fetos arbóreos - coisa muito de rir e divulgar a ciência do sr. Barros Barreto.

Na rua, se pilhava um magote (reunião) de amigos parados à esquina, aproximava-se de mansinho e - nhoc! - arremessava um bote de munheca à barriga da perna mais a jeito.

Era de ver o pinote assustado e o - passa! nervoso do incauto, e logo em seguida as risadas sem fim dos outros, e a do Pontes, o qual gargalhava dum modo todo seu, estrepitoso e musical - música d’Offenbach.

Pontes ria parodiando o riso normal e espontâneo da criatura humana, única que ri além da raposa bêbada; e estacava de golpe, sem transição, caindo num sério de irresistível cômico.

Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferenciava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se (riam sem controle) uns, outros afrouxavam os coses , terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora!, eram cascalhadas, eram rinchavelhos (risos estridentes), eram guinchos, engasgos, fungações a asfixias tremendas.

– E da pele, este Pontes!
– Basta, homem, você me afoga!

E se o pândego se inocentava, com cara palerma:

– Mas que estou fazendo? Se nem abri a boca...

Quá, quá, quá - a companhia inteira, desmandibulada, chorava no espasmo supremo dos risos incoercíveis.

Com o correr do tempo, não foi preciso mais que seu nome para deflagrar a hilaridade. Pronunciando alguém a palavra “Pontes”, acendia-se logo o estopim das fungadelas pelas quais o homem se alteia acima da animalidade que não ri.

Assim viveu Pontes até a idade do Cristo, numa parábola risonha, a rir e fazer rir, sem pensar em nada sério vida de filante que dá momos em troca de jantares e paga continhas miúdas com pilhérias de truz (golpe, pancada).

Um negociante caloteado disse-lhe um dia entre frouxos de riso babado:

– Você ao menos diverte, não é como o major Carapuça que caloteia de carranca.

Aquele recibo sem selo mortificou seu tanto ao nosso pândego; mas a conta subia a quinze mil réis - valia bem a pelotada. Entretanto, lá ficou a lembrança dela espetada como alfinete na almofadinha do amor-próprio. Depois vieram outros e outros, estes fincados de leve, aqueles até a cabeça.

Tudo cansa. Farto de tal vida, entrou o hilarião a sonhar as delícias de ser tomado a sério, falar e ser ouvido sem repuxo de músculos faciais, gesticular sem promover a quebra da compostura humana, atravessar uma rua sem pressentir na peugada (pegada) um coro de “Lá vem o Pontes!” em tom de quem se espreme na contenção do riso ou se ajeita para uma barrigada das boas.

Reagindo, tentou Pontes a seriedade.

Desastre.

Pontes sério mudava de tecla, caía no humorismo inglês. Se antes divertia como o Clown, passava agora a divertir como o Tony.

O estrondoso êxito do que a toda a gente se afigurou uma faceta nova da sua veia cômica verteu mais sombra na alma do engraçado arrependido. Era certo que não poderia traçar outro caminho na vida além daquele, ora odioso?

Palhaço, então, eternamente palhaço à força?

Mas a vida de um homem feito tem exigências sisudas; impõe gravidade e até casmurrice dispensáveis nos anos verdes. O cargo mais modesto da administração, uma simples vereança, requer na cara a imobilidade da idiotia que não ri. Não se concebe vereador risonho. Falta ao dito de Rabelais uma exclusão: o riso é próprio à espécie humana, fora o vereador.

Com o dobrar dos anos a reflexão amadureceu, o brio cristalizou-se, e os jantares cavados deram a saber-lhe a azedo. A moeda pilhéria tornou-se-lhe dura ao cunho; já a não fundia com a frescura antiga; já usava dela como expediente de vida, não por fogança despreocupada, como outrora. Comparava-se mentalmente a um palhaço de circo, velho e achacoso, a quem a miséria obriga a transformar reumatismo em caretas hílares como as quer o público pagante.

Entrou a fugir dos homens e despendeu bons meses no estudo da transição necessária ao conseguimento de um emprego honesto. Pensou no balcão, na indústria, na feitoria duma fazenda, na montagem dum botequim - que tudo era preferível à paspalhice cômica de até ali.

Um dia, bem maturados os planos, resolveu mudar de vida. Foi a um negociante amigo e sinceramente lhe expôs os propósitos regeneradores, pedindo por fim um lugar na casa, de varredor que fosse. Mal acabou a exposição, o galego e os que espiavam de longe à espera do desfecho torceram-se em estrondoso gargalhar, como sob cócegas.

Esta é boa! É de primeiríssima! Quá! quá! quá! Com que então... Quá! quá! quá! Você me arruína os fígados, homem! Se é pela continha dos cigarros, vá embora que me dou por bem pago! Este Pontes tem cada uma...

E a caixeirada (balconistas), os fregueses, os sapos de balcão e até passantes que pararam na calçada para “aproveitar o espírito”, desbocaram-se em quás de matraca até lhe doerem os diafragmas.

Atarantado a seríssimo, Pontes tentou desfazer o engano.

Falo sério, e o senhor não tem o direito de rir-se. Pelo amor de Deus, não zombe de um pobre homem que pede trabalho e não gargalhadas.

O negociante desabotoou o cós da calça.

Fala sério, pff! Quá! quá! quá! Olha Pontes, você...

Pontes largou-o em meio da frase, e se foi com a alma atenazada (atazanada) entre o desespero e a cólera. Era demais. A sociedade o repelia, então? Impunha-lhe uma comicidade eterna?

Correu outros balcões, explicou-se como melhor pôde, implorou. Mas por voz unânime, o caso foi julgado como uma das melhores pilhérias do “incorrigível” - e muita gente o comentou com a observação de costume:

Não se emenda o raio do rapaz! E olhem que já não é criança...

Barrado no comércio, voltou-se para a lavoura. Procurou um velho fazendeiro que despedira o feitor e expôs-lhe o seu caso.

Depois de ouvir-lhe atentamente as alegações, conclusas com o pedido do lugar de capataz, o coronel explodiu num ataque de hilaridade.

– O Pontes capataz! Ih! Ih! Ih!
– Mas...
– Deixe-me rir, homem, que cá na roça isto é raro. Ih!
– Ih! Ih! É muito boa! Eu sempre digo: graça como o Pontes, ninguém!

E berrando para dentro:

– Maricota, venha ouvir esta do Pontes. Ih! Ih! Ih!

Nesse dia, o infeliz engraçado chorou. Compreendeu que não se desfaz do pé p’r’a mão o que levou anos a cristalizar-se. A sua reputação de pândego, de impagável, de monumental, de homem do chifre furado ou da pele, estava construída com muito boa cal e rijo cimentado para que assim esboroasse de chofre.

Urgia, entretanto, mudar de tecla, e Pontes volveu as vistas para o Estado, patrão cômodo e único possível nas circunstâncias, porque abstrato, porque não sabe rir nem conhece de perto as células que o compõem. Esse patrão, só ele, o tomaria a sério - o caminho da salvação, pois, embicava por ali.

Estudou a possibilidade da agência do correio, dos tabelionatos, das coletorias e do resto. Bem ponderados o prós a contras, os trunfos a naipes, fixou a escolha na coletoria federal, cujo ocupante, major Bentes, por avelhantado (envelhecido) e cardíaco, era de crer não durasse muito. Seu aneurisma andava na berra pública, com rebentamento esperado par qualquer hora.

O ás de Pontes era um parente do Rio, sujeito de posses em via de influenciar a política no caso da realização de certa reviravolta no governo. Lá correu atrás dele e tanta fez para movê-lo à sua pretensão que o parente o despediu com promessa formal.

– Vai sossegado que, em a coisa arrebentando por cá o teu coletor rebentando por’lá, ninguém mais há de rir-se de ti. Vai, e avisa-me da morte do homem sem esperar que esfrie o corpo.

Pontes voltou radioso de esperança e pacientemente aguardou a sucessão dos fatos, com um olho na política e outro no aneurisma salvador.

A crise afinal veio; caíram ministros, subiram outros e, entre estes um politicão negocista, sócio do tal parente. Meio caminho já era andado. Restava apenas a segunda parte. Infelizmente, a saúde do major encruara, sem mais patentes de declínio rápido. Seu aneurisma, na opinião dos médicos que matavam pela alopatia, era coisa grave, de estourar ao menor esforço; mas o precavido velho não tinha pressa de ir-se para melhor, deixando uma vida onde os fados lhe conchegavam tão fofo ninho, e lá engambelava à doença com um regime ultrametódico. Se o mataria um esforço violento, sossegassem, ele não faria tal esforço.

Ora, Pontes, mentalmente dono daquela sinecura (emprego rendoso que exige pouco trabalho), impacientava-se com o equilíbrio desequilibrador dos seus cálculos. Como desembaraçar o caminho daquela travancá (obstáculo). Leu no Chernoviz o capítulo dos aneurismas, decorou-o, andou em indagações de tudo quanto se dizia ou se escreveu a respeito; chegou a entender da matéria mais que doutor Iodureto, médico da terra, o qual, seja dito aqui puridade, não entendia de coisa nenhuma desta vida.

O pomo da ciência, assim comido, induziu-o à tentação de matar o homem, forçando-o a estourar. Um esforço o mataria? Pois bem, Souza Pontes o levaria a esse esforço!

A gargalhada é um esforço, filosofava satanicamente de si para si. A gargalhada, portanto, mata. Ora, eu sei fazer rir...

Longos dias passou Pontes alheio ao mundo, em diálogo mental com a serpente.

Crime? Não! Em que código fazer rir é crime? Se disso morresse o homem, culpa era da sua má aorta.

A cabeça do maroto virou picadeiro de luta onde o “plano” se batia em duelo contra todas as objeções mandadas ao encontro pela consciência. Servia de juiz a sua ambição amarga a Deus sabe quantas vezes tal juiz prevaricou, levado de escandalosa parcialidade por um dos contendores.

Como era de prever, a serpente venceu, e Pontes ressurgiu para o mundo um tanto mais magro, de olheiras cavadas, porém com um estranho brilho de resolução vitoriosa nos olhos. Também notaria nele o nervoso dos modos quem o observasse com argúcia - mas a argúcia não era virtude sobeja entre os seus conterrâneos, além de que estados d’alma do Pontes eram coisa de somenos, porque o Pontes...

Ora o Pontes...

O futuro funcionário forjou, então, meticulosos planos de campanha. Em primeiro era mister aproximar-se do major, homem recolhido consigo e pouco amigo de lérias (lábias); insinuar-se-lhe na intimidade; estudar suas venetas e cachacinhas até descobrir em que zona do corpo tinha ele o calcanhar-de-aquiles.

Começou frequentando com assiduidade a coletoria, sob pretextos vários, ora para selos, ora para informações sobre impostos, que tudo era ensejo de um parolar manhoso, habilíssimo, calculado para combalir a rispidez do velho.

Também ia a negócios alheios, pagar cisas, extrair guias, coisinhas; fizera-se muito serviçal para os amigos que traziam negócios com a fazenda.

O major estranhou tanta assiduidade e disse-lho, mas Pontes escamoteou-se à interpelação montado numa pilhéria de truz, e perseverou num bem calculado dar tempo ao tempo que fosse desbastando as arestas agressivas do cardíaco.

Dentro de dois meses já se habituara Bentes àquele serelepe, como lhe chamava, o qual, em fim de contas, lhe parecia um bom moço, sincero, amigo de servir e sobretudo inofensivo... Daí a lá em dia d’acúmulo de serviço pedir-lhe um obséquio, e depois outro, e terceiro, a tê-lo afinal coma espécie de adido à repartição, foi um passo. Para certas comissões não havia outro. Que diligência! Que finura! Que tato! Advertindo certa vez o escrevente, o major puxou aquela diplomacia como lembrete.

Grande pasmado! Aprenda com o Pontes, que tem jeito para tudo e ainda por cima tem graça.

Nesse dia, convidou-o para jantar. Grande exultação na alma do Pontes! A fortaleza abria-lhe as portas.

Aquele jantar foi o início duma série em que o serelepe, agora factótum (pessoa imprescindível) indispensável, teve campo de primeira ordem para evoluções táticas.

O major Bentes, entretanto, possuía uma invulnerabilidade: não ria, limitava suas expansões hílares a sorrisos irônicos. Pilhéria que levava outros comensais (pessoas que comem juntas na mesa) a erguerem-se da mesa atabafando (encobrindo) a boca nos guardanapos, encrespava apenas os seus lábios. E se a graça não era de superfina agudeza, ele desmontava sem piedade o contador.

Isso é velho, Pontes, já num almanaque Laemmert de 1850 me lembro de o ter lido.

Pontes sorria com ar vencido; mas lá por dentro consolava-se, dizendo, dos fígados para o rim, que se não pegara daquela, doutra pegaria.

Toda a sua sagacidade enfocava no fito de descobrir o fraco do major. Cada homem tem predileção por um certo gênero de humorismo ou chalaça (gracejo). Este morre por pilhérias fesceninas (gênero de poesia satírica latina, nascida, ao que parece, entre os camponeses de Fescênia [Etrúria], e muito popular até o fim do Império Romano do Ocidente) de frades bojudos. Aquele péla-se pelo chiste bonacheirão da chacota germânica. Aquel’outro dá a vida pela pimenta gaulesa. O brasileiro adora a chalaça onde se põe a nu’a burrice tamancuda de galegos a ilhéus.

Mas o major? Por que não ria à inglesa, nem à alemã, nem à francesa, nem à brasileira? Qual o seu gênero?

Um trabalho sistemático de observação, com a metódica exclusão dos gêneros já provados ineficientes, levou Pontes a descobrir a fraqueza do rijo adversário: o major lambia as unhas por casos de ingleses a frades. Era preciso, porém, que viessem juntos. Separados, negavam fogo. Esquisitices do velho. Em surgindo bifes vermelhos, de capacete de cortiça, roupa enxadrezada, sapatões formidolosos (enormes, pavorosos) e cachimbo, juntamente com frades redondos, namorados da pipa e da polpa feminina, lá abria o major a boca e interrompia o serviço da mastigação, como criança a quem acenam com cocada. E quando o lance cômico chegava, ele ria com gosto, abertamente, embora sem exagero capaz de lhe destruir o equilibrio sangüíneo.

Com infinita paciência, Pontes bancou nesse gênero e não mais saiu dali. Aumentou o repertório, a gradação do sal, a dose de malícia, e sistematicamente bombardeou a aorta do major com os produtos dessa hábil manipulação.

Quando o caso era longo, porque o narrador o floria no intento de esconder o desfecho a realçar o efeito, o velho interessava-se vivamente, e nas pausas manhosas pedia esclarecimento ou continuação.

“E o raio do bife?” “E daí?” “Mister John apitou?”

Embora tardasse a gargalhada fatal, o futuro coletor não desesperava, confiando no apólogo da bilha que de tanto ir à fonte lá ficou. Não era mau o cálculo. Tinha a psicologia por si - e teve também por si a quaresma.

Certa vez, findo o carnaval, reuniu o major os amigos em torno a uma enorme piabanha (peixe caraciforme da fam. dos caracídeos (Brycon piabanha), que ocorre no rio Paraíba, de até 65 cm de comprimento, dorso cinzento com manchas rosadas ao longo da linha lateral) recheada, presente dum colega. O entrudo desmazorrara a alma dos comensais e a do anfitrião, que estava naquele dia contente de si e do mundo, como se houvera enxergado o passarinho verde. O cheiro vindo da cozinha, valendo por todos os aperitivos de garrafaria, punha nas caras um enternecimento estomacal.

Quando o peixe entrou, cintilaram os olhos do major. Pescado fino era com ele, inda mais cozido pela Gertrudes. E naquele bródio (refeição farta e alegre), primara a Gertrudes num tempero que excedia as raias da culinária e se guindava ao mais puro lirismo. Que peixe! Vatel o assinaria com a pena da impotência molhada na tinta da inveja, disse o escrevente, sujeito lido em Brillat-Savarin e outros praxistas do paladar.

Entre goles de rica vinhaça, eis a piabanha sendo introduzida nos estômagos com religiosa unção. Ninguém atrevia a quebrar o silêncio da bromatológica beatitude.

Pontes pressentiu oportuno o momento do golpe. Trazia engatilhado o caso dum inglês, sua mulher e dois frades barbadinhos, anedota que elaborara à custa da melhor matéria cinzenta de seu cérebro, aperfeiçoando-a em longas noites de insônia. Já de dias a tinha de tocaia, só aguardando o momento em que tudo concorresse para levá-la produzir o efeito máximo.

Era a derradeira esperança do facínora, seu último cartucho. Negasse fogo e, estava resolvido, metia duas balas nos miolos. Reconhecia impossível manipular-se torpe, mais engenhoso. Se o aneurisma lhe resiste ao embate, então é que o aneurisma era uma potoca (mentira), a aorta uma ficção e o Chernoviz um palavrório, a medicina uma miséria, doutor Iodureto uma cavalgadura e ele, Pontes, o mais chapado sensaborão ainda aquecido pelo sol – indigno, portanto, de viver.

Matutava assim o Pontes, negaceando com os olhos psicologia a pobre vítima, quando o major veio ao encontro: piscou o olho esquerdo - sinal de predisposição para ouvir.

– É agora! - pensou o bandido. E com infinita naturalidade, pegando como por acaso uma garrafinha de moll pôs-se a ler o rótulo.

Perrins; Lea and Perrins. Será parente daquele Lord Perrins que bigodeou os dois frades barbadinhos?

Inebriado pelos amavios (encantos) do peixe, o major alumiou um olho concupiscente (cobiçoso), guloso de chulice.

Dois barbadinhos e um lorde! A patifaria deve ser marca X. P. T. O. Conta lá, serelepe.

E, mastigando maquinalmente, absorveu-se no caso fatal.

A anedota correu capciosa pelos fios naturais até as proximidades do desfecho, narrada com arte de mestre, segura e firme, num andamento estratégico em que havia gênio. Do meio para o fim, a maranha (trama complicada) empolgou de tal forma o pobre velho que o pôs suspenso, de boca entreaberta, uma azeitona no garfo detida a meio caminho. Um ar de riso - riso parado, riso estopim, que não era senão o armar bote da gargalhada, iluminou-lhe o rosto.

Pontes vacilou. Pressentiu o estouro da artéria. Por uns instantes a consciência brecou-lhe a língua, mas Pontes deu-lhe um pontapé e com voz firme puxou o gatilho.

O major Antonio Pereira da Silva Bentes desferiu a primeira gargalhada da sua vida, franca, estrondosa, de ouvir-se no fim da rua, gargalhada igual à de Teufelsdrock diante de João Paulo Richter. Primeira e última, entretanto, porque no meio dela os convivas, atônitos, viram-no cair de borco sobre o prato, ao tempo que uma onda de sangue avermelhava a toalha.

O assassino ergueu-se alucinado; aproveitando a confusão, esgueirou-se para a rua, qual outro Caim. Escondeu-se em casa, trancou-se no quarto, bateu dentes a noite inteira, suou gelado. Os menores rumores retransiam-no de pavor.

Polícia?

Semanas depois é que entrou a declinar aquele transtorno que toda a gente levara à conta de mágoa pela morte do amigo. Não obstante, trazia sempre nos olhos a mesma visão: o coletor de bruços no prato, golfando sangue, enquanto no ar vibravam os ecos da sua derradeira gargalhada.

E foi nesse deplorável estado que recebeu a carta do parente do Rio. Entre outras coisas, dizia o ás: “Como não me avisaste a tempo, conforme o combinado, só pelas folhas vim a saber da morte do Bentes. Fui ao ministro mas era tarde, já estava lavrada a nomeação do sucessor. A tua leviandade fez-to perder a melhor ocasião da vida. Guarda para teu governo este latim: tarde venientibus ossa, quem chega tarde só encontra os ossos - e sê mais esperto para o futuro.”

Um mês depois, descobriram-no pendente duma travessa com a língua de fora, rígido.

Enforcara-se numa perna de ceroula.

Quando a nótícia deu volta pela cidade, toda a gente achou graça no caso. O galego do armazém comentou para os caixeiros:

Vejam que criatura! Até morrendo fez chalaça. Enforcar-se na ceroula! Esta só mesmo do Pontes...

E reeditaram em coro meia duzia de “quás” - único epitáfio que lhe deu a sociedade.

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Urupês. SP: Brasiliense, 1994.

Carlos Drummond de Andrade (Antologia Poética)


A falta de Érico

Falta alguma coisa no Brasil
depois da noite de Sexta-feira
Falta aquele homem no escritório
a tirar da máquina elétrica
o destino dos seres,
a explicação antiga da terra.

Falta uma tristeza de menino bom
caminhando entre adultos
na esperança da justiça
que tarda - como tarda!
a clarear o mundo.

Falta um boné, aquele jeito manso,
aquela ternura contida, óleo
a derramar-se lentamente,
falta o casal passeando no trigal.
Falta um solo de clarineta.
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A palavra mágica

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.
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A poesia (não tires poesia das coisas)


elide sujeito e objecto.


Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Trovando pelo Paraná


Almirante Tamandaré – Harley Stocchero
Meu amor sempre me espera
à tarde com um lanchinho,
mas eu fico na quimera
de tomarmos nosso vinho.

Apucarana – Fahed Daher
Cada um tem seu destino!
A pedra faz o castelo,
o bronze, a máquina e o sino,
o ferro faz o martelo.

Arapongas – Maria Granzoto
Cidade dos passarinhos,
Arapongas, Paraná.
Aqui se constroem ninhos,
que a todos acolhem cá!

Bandeirantes – Neide Rocha Portugal
Perdido na escuridão,
sem saber se é noite ou dia,
pede o cego na oração:
- Senhor, protege o meu guia!

Campo Largo – Áureo Baika
Eu curto todo momento
e não perco um só segundo.
Num minuto em pensamento
posso estar em outro mundo!

Campo Mourão – Sinclair Pozza Casemiro
Busca-se ainda o Caminho,
vive-se a doce ilusão
de um mundo feito carinho,
que ao fraco não negue o pão!

Castro – Hilda Koller
Saibamos as leis de cor,
Façamos do lar um templo,
mas nada educa melhor
do que o nosso bom exemplo.

Contenda – Hildemar Cardoso Moreira
Ao professor muito devo,
devo ao médico também.
Mas o livro é meu enlevo,
tudo que sei dele vem.

Curitiba – Vânia Maria de Souza Ennes
Descontraia sua testa,
sorrir é grande investida!
Quem transforma a vida em festa
vence tensão reprimida!

Ibiporã – Mauricio Fernandes Leonardo
Semblante santificado
cabeleira cinza escuro,
mamãe viveu seu passado
planejando meu futuro.

Irati – Mafalda de Sotti Lopes
Toda semente que eu planto
nos sulcos da minha dor,
germina regada em pranto,
mas, desabrocha em amor!

Ivatuba – Elidir D’ Oliveira
Volta, amor! – é o teu retorno
felicidade e prazer.
Teu corpo é um caminho morno
que eu adoro percorrer!

Joaquim Távora – Adilson de Paula
Pôr-do-sol, campos desertos,
e o pinheiro então parece
estar de braços abertos
a sussurrar uma prece.

Lajes – Maria Amélia Macedo Bertolini
Espanha, Ucrânia e Japão,
culturas de muitas graças!
Proporcionam diversão
em Curitiba, são praças.

Lapa – José Westphalen Corrêa
Nas águas mansas do lago,
nas verdes ondas do mar,
nas delícias de um afago,
vejo a mão de Deus pairar.

Londrina – Cidinha Frigeri
“Não há bem que sempre dure,
nem mal que nunca se acabe...”
- Por mais que um ser nos perfure,
que nossa alma não desabe!

Maringá – Antonio Augusto de Assis
Neste planeta sofrido,
com tanto lixo fedendo,
há muito louco varrido,
pouca vassoura varrendo.

Morretes – Lúcio da Costa Borges
A primavera cantemos
anos juvenis, risonhos...
Além nós todos sabemos,
restarão só nossos sonhos!

Palmeira – Heitor Stockler de França
Confesso é no teu perfume
e no sabor do teu beijo,
que para mim se resume
a volúpia do desejo.

Paranaguá – Leôncio Correia
Se o beijo guarda o perfume
de estranha, esquisita flor
é porque o beijo resume
a vida e a glória do amor.
.
Paranavaí - Dinair Leite
A trova quando é sentida
viaja em nossa emoção
Nos faz fiéis toda a vida,
une os povos, faz irmãos

Pinhais – Ligia Christina de Menezes
Meu girassol pobrezinho
saudoso, não resistiu.
Morreu olhando o caminho
por onde meu bem partiu...

Pinhalão – Lairton Trovão de Andrade
Todo filho vem dos pais,
vem o mel da flor silvestre;
não há dor sem dor nos ais
nem discípulo sem mestre.

Piraí do Sul – Vera Vargas
Contra mágoas, dissabores,
um santo remédio há.
Receita: Rua das Flores –
Curitiba – Paraná.

Piraquara – Horácio F. Portella
A saudade rasga o véu
do tempo e traz do passado
minha mãe, que lá do céu
sempre tem me abençoado.

Ponta Grossa – Amália Max
A esperança em nossa vida,
pelo valor que ela ostenta,
pode até ser resumida,
como o pão que nos sustenta.

Quatro Barras – Airo Zamoner
Nas noites da minha vida,
vida errada, vida certa,
cada estrela me convida
a uma nova descoberta.

Rio Branco do Sul – Sara Furquim
A vida é um mar de rosas
legando beleza e olor,
às criaturas bondosas,
que sabem semear o amor.

São Jerônimo da Serra – Déspita Perusso
Belo e vetusto pinheiro!
Tão alto... é grande a distância...
foi meu leal companheiro
nos doces anos da infância...

São Jorge do Ivaí – Hulda Ramos Gabriel
Tão suave é o teu carinho:
Há nele a calma de um lago...
- Tem a ternura de um ninho
e a paz de um materno afago!

São José dos Pinhais – Patrícia Cristiane de Siqueira
Esta estação é tão linda...
Cobrindo os campos de flores.
Que seja sempre benvinda!
Com alegria e muitas cores.

São Mateus – Gerson Cesar Souza
A frase dura que escapa
da boca de muitos pais
é tão cruel como um tapa
e, às vezes, machuca mais!

Tomazina – Cecim Calixto
Curitiba tem seus bares
com requinte de Paris,
Aos boêmios, seus altares,
e aos poetas, lar feliz.

Ubiratã – José Feldman
Paraná...terra de encantos...
Luz de um povo varonil!
A flora e a fauna são mantos
que engrandecem o Brasil.

União da Vitória – Hely Marés de Souza
Quero rever os meus pagos,
ouvir toda a velha história.
Quero sentir os afagos...
da minha União da Vitória!

Cecília Meireles (O Livro da Solidão)


Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: "Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta...?"

Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: "Uma história de Napoleão." Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo...

Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo... E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.

Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.

Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.

Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência ás noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...

O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.

O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, — mas obedecendo á lei das letras, cabalística como a dos números...

O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.

E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...

Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores...

A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.

E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.

Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.

Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.

Fonte:
Cecília Meireles. Obra em Prosa . vol 1. RJ: Nova Fronteira, 1998.

Cecília Meireles (Escolha o Seu Sonho)


Cecília Meireles é notória por sua poesia de caráter neo-simbolista, pois tematiza, numa linguagem levemente musical, a efemeridade dos bens da vida. Diante disso, o que é terreno perderá valor em frente a uma realidade mais eterna e misteriosa e, portanto, transcendente, metafísica.

al tempero estará também presente nas 46 crônicas de Escolha o Seu Sonho. Esse gênero transformou-se no século XX, do relato histórico dos tempos do humanista Fernão Lopes, na busca de um olhar inusitado, lírico e literário sobre as coisas de nosso cotidiano.

E com a poetisa, agora prosadora, assumirá uma identidade única em nossa literatura.

Cecília Meireles enfocará em seus pequenos textos, de no máximo três páginas cada, sempre aspectos fora do terreno, decolados a partir do nosso chão comum, rotineiro.

Em “Programa de Circo” verá que os artistas, em pequenas proezas, conseguem ser transcendentes, principalmente o trapezista, longe do solo. Eis aqui o símbolo do que a cronista realiza na obra.

É um elemento que estará presente em outros pontos, como na homenagem que faz em “O ‘Divino Bachô’”, poeta japonês que tirava, em seus pequenos poemas, imagens profundas e ousadas baseado apenas em simples elementos que via em sua realidade. Enxergamos e admiramos nos outros o que queremos para nós – eis uma pista para a compreensão de Cecília Meireles.

A autora de fato tem esse dom de ir além do cotidiano banal, muitas vezes por meio da proeza de usar essa rotina como sua base. Ou então, no que ela se mostra surpreendente, não precisa viajar para longe da realidade terrena: consegue enxergar nesse plano pobre uma riqueza surpreendente.

É o que ocorre em vários instantes do livro, como em “Arte de Ser Feliz”. Nele, a cronista consegue ver, num chalé em frente à sua janela, beleza e fonte de felicidade num humilde pássaro de porcelana pousado sobre um ovo azul. Quando o céu ficava dessa mesma cor, parecia que a ave flutuava no nada.

Cecília Meireles nos parece provar que somos cegos, insensíveis à riqueza de elementos ao nosso redor. Cobra-nos uma reeducação dos sentidos e do intelecto para captar o que sempre esteve grudado à gente.

É a tese encampada implicitamente em vários momentos, mas escancaradamente em “Da Solidão”, em que prega que não devemos ter medo de ficar sós, pois de fato nunca o estamos: tudo lembra tudo, tudo tem sentido, tudo ao nosso redor carrega significados e existências que nos impedem de nos sentirmos solitários.

Uma observação que poderia ser levantada é a de que essas crônicas poderiam sofrer de um complexo de Polyanna, na medida em que demonstram uma visão saltitante, encantada e, portanto, alienada da realidade. Tudo é sonho, fantasia, alegria. No entanto, não é verdade.

Em vários momentos (“Casas Amáveis”, “Tempo Incerto”, ”História de Bem-Te-Vi”, “Vovô Hugo”, “Chuva com Lembranças”, “O Fim do Mundo”, “Semana Santa em Ouro Preto”, “Ovos de Páscoa”, “Saudades dos Trovões”, “Aberrações do Número”, “Que é do Sorriso?”) há uma crítica aos novos tempos, de industrialização, urbanização, em que, na correria, não se consegue fôlego ou disposição para realizar o olhar atento sobre os pequenos e belos aspectos de nossa existência. Sua crítica, nesses momentos, parece algo de retrógrado, ingênuo ou saudosista.

Há momentos, entretanto, em que sua visão crítica não se derrama apenas para o presente. Em “Do Diário do Imperador”, ao falar sobre os relatos de D. Pedro II, entristece-se e até derrama um certo fel ao notar que os problemas relatados no século XIX ainda se mostram atuais, principalmente no que se refere à falta de zelo em relação à pátria e à coletividade.

Consegue, pois, vislumbrar um elemento eterno em meio à efemeridade, exercício que já havia feito em “Visita a Carlos Drummond”, em que, em homenagem ao aniversário do poeta mineiro, constrói uma fantasia em que a sua família e a dele sempre se encontraram em 500 anos de História Ibero-Americana, as encarnações podendo até serem vistas como atualizações.

Todos esses elementos, como já se disse, Cecília vaza em pequenos textos em que se notam leve musicalidade e a preferência pelo vago e misterioso, como em “O Estranho Encontro”.

Lida com aspectos sofisticados em um veículo tão simples, o que se mostra mais surpreendente quando se tem em mente que essas crônicas foram primeiramente lidas no rádio, nos programas “Quadrante”, da Rádio Ministério da Educação e Cultura, e “Vozes da Cidade”, da Rádio Roquette Pinto.

Trata-se de uma proeza que faz lembrar “O Grupo Fernando Pessoa”, em que Cecília Meireles tece comentários sobre as limitações da literatura quando se utiliza do meio oral, como foi no Trovadorismo.

Não possibilitando tempo para a reflexão silenciosa, comum na leitura, o texto oral acaba-se tornando diluído, avesso a questões mais profundas. Prende-se ao momento, ao passageiro.

Porém, quando vê como os jovens lidam com a poesia de Fernando Pessoa, tão rica, entende que muitas vezes o mistério literário rompe essa barreira. É o que se aplica, sem hesitação, a Escolha o Seu Sonho.

Fonte:
Vestibular

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Castelo de Trovas (Bandeirantes/PR)


No meu jardim encantado,
belas flores cultivei:
filhos meus que, com cuidado.
fé e amor, eu lapidei!
(Alice Bonfim Metring)

No alto daquele gramado,
que linda flor amarela!
Mas, que destino malvado...
Hoje, enfeita uma lapela!!!
(Dâmila Fernanda Figueiredo)

Meu medo não é morrer
por quem amo tanto assim.
Meu dilema é não saber
se esse alguém morre por mim.
(Élson Souto +)

Velhos sonhos, na lembrança,
vou mantendo em meu viver...
Não abandono a esperança
de que irão acontecer!
(Istela Marina Gotelipe Lima)

Amor, carinho e esperança
marcaram as nossas vidas...
Hoje, somente a lembrança
nas fotos envelhecidas!
(Janete de Azevedo Guerra)

Comecei seguir viagem,
e em meu destino, pensando,
eu voltei... faltou coragem
de deixar “alguém” chorando!
(Jéssica Fernanda Costa)

Todos devemos cuidar
da água que nós bebemos
para quando precisar
saber que sempre a teremos
(Lucas Paulo Alves de Souza)

Nunca se dê por perdido
nos labirintos da vida;
a entrada perde o sentido,
se não se busca a saída!...
(Lucília A. T. De Carli)

Neste amor desencontrado,
busquei sempre ser feliz.
Eu quis ficar ao seu lado,
mas o destino não quis.
(Maria Angélica Mathias)

Relembrando bons momentos
de paz efelicidade,
viajam meus pensamentos
nos momentos de saudade!
(Maria Aparecida Roxo Santos)

O grande herói nesta vida
é aquele que para e pensa
em dar perdão, sem medida,
por maior que seja a ofensa!
(Maria Helena Cristovo)

De ilusões eu fui vivendo
e a esperança, disfarçada,
via os meus sonhos morrendo
e nunca me disse nada!
(Maria Lucia Daloce Castanho)

O dilúvio sem igual
que dizimou os ateus
não era chuva, afinal...
eram lágrimas de Deus!
(Nathan Osipe)

Desconhece a própria vida
quem julga a roupa ou a cara,
pois é na fenda escondida
que brota a orquídea mais rara!
(Neide Rocha Portugal)

Velha casa de madeira
presente em minha lembrança...
- Oh, saudade verdadeira
dos meus tempos de criança!
(Neila Martelli Toledo Campos)

Com água a vida é mais doce,
e com tanta luz divina,
a vida é como se fosse
uma fonte cristalina!!!
(Saulo Patrick Pereira Maia de Ávila)

Quantas vezes uma vida,
que tão mansa nos parece,
tem no mistério escondida
a dor que nunca se aquece.
(Wanda Rossi de Carvalho)
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Fontes:
XXV Jogos Florais de Bandeirantes,PR – 2008
Boletim Nacional da UBT – junho de 2009

Pepetela (A Gloriosa Família)


Análise da obra

A Gloriosa Família, do angolano Pepetela, romance publicado em 1997, descreve a vida cotidiana de Baltazar Van Dum, holandês católico residente em Luanda desde 1616. Van Dum é uma figura saliente do enredo, encarnando o tipo ladino dos que conseguem agradar a Deus e ao Diabo, pois é um flamengo do sul, mas ligado à religião católica, por ter sido súdito do rei de Espanha.

O romance é um relato longo – 406 páginas – através das quais Pepetela relê um episódio da história angolana, mais precisamente os sete anos (de 1642 a 1648) em que os holandeses, estabelecidos com a Companhia das Índias Ocidentais, realizaram um enorme tráfico de escravos, de Luanda para o Brasil, principalmente. Exatamente por isso, o romance traz como subtítulo "O tempo dos flamengos", numa alusão ao período em que os "mafulos" – nome com que os holandeses eram conhecidos em Angola – dominaram boa parte da região.

Ao longo de doze capítulos, são mostradas as transformações que, durante sete anos, vai sofrendo o protagonista e todos os que o rodeiam, a começar pelos membros da sua extensa família mestiça. O romance se conclui com a chamada Restauração de Angola, a reconquista de Luanda por Salvador Correia de Sá e Benevides e a conseqüente expulsão dos holandeses, que não inclui Van Dum, o qual permanece na cidade dedicando-se ao seu negócio de sempre, o tráfico de escravos para o Brasil.

Pepetela faz uma significativa releitura da história angolana, revelando o que há por detrás de episódios que a história tradicional mostrou apenas superficialmente, através de um discurso crítico e irônico.

A ação, como vimos, acontece entre 1642 e 1648, durante os sete anos de dominação holandesa. Van Dum vivera vinte e cinco anos em Luanda entre os portugueses da sua religião e manteve-se na cidade quando ela foi dominada pelos seus compatriotas calvinistas, tendo o grosso da comunidade portuguesa fugido para Massangano, no interior, na confluência dos rios Kuanza e Lucala.

Para situar o contexto do livro, observamos que a gloriosa família que aparece na narrativa é constituída por Baltazar Van Dum e seus onze filhos (três dos quais são resultado de sua união com escravas). Mas A gloriosa família do título não é apenas a de Baltazar, mas a sociedade angolana como um todo, da qual a família retratada é apenas um embrião.

O cenário angolano em que se desenvolve a narrativa é envolvido por um exuberante componente mítico, de vez que, além dos mitos africanos, que sustentam a história na sua base, a mitologia clássica, a mitologia germânica e histórias extraídas do imaginário popular compõem um grande quadro que intensifica a narrativa ficcional, colaborando para a releitura da história oficial e para validar a visão crítica que perpassa todo o texto.

O mundo de mitos, de prodígios, de acontecimentos inusitados que constitui a mitologia africana tem presença marcante na estrutura de A gloriosa família. Um do exemplos pode ser encontrado no narrador do romance. Tal narrador – uma das instâncias mais surpreendentes da obra – é um escravo mudo e analfabeto e sua função era a de seguir o patrão, Baltazar Van Dum, a todos os lugares, o que lhe dá a condição de ver e de ouvir tudo aquilo que será matéria de sua narração. Mas uma pergunta poderia ser formulada: como alguém que não fala e que é analfabeto pode ser o sujeito da enunciação de um texto narrativo? É aí que entra o mundo mágico que se estende pelo continente africano. E são os poderes desse mundo que vão dar ao narrador as condições e a confiança para poder contar a história de Baltazar Van Dum e de sua família.

E isso se deve ao fato de que ele usará poderes desconhecidos dos que se ocultam no pó branco da pemba ou nos riscos traçados nos ares das encruzilhadas pelos espíritos inquietos.

Foco narrativo

A narrativa é marcada pelo descentramento, uma vez que o autor concede a voz a um escravo. É através dele, um escravo, mudo e analfabeto, que serão entretecidas as polaridades visão histórica tradicional (centrada no poder) versus visão histórica nova (centrada na voz das margens). O narrador- escravo exerce uma espécie de contraponto em relação à figura de Cadornega, um cronista português à época da ocupação holandesa, em Angola. Ao emitir um discurso às avessas, contesta, em vários aspectos o do cronista português.

A subjetivação do narrador confunde-se aqui com a sua própria descrição (escravo mestiço, filho de mulher lunda e de missionário napolitano, outrora vendido pela rainha Jinga a Baltazar Van Dum, de quem este se serve como guarda-costas). O narrador acompanha, portanto, o protagonista por todo o lado e, levado pela curiosidade ou kuribotice, como ele próprio diz, presencia todos ou quase todos os fatos que narra. Quando não assiste, reproduz com fidelidade ou imaginação, como confessa ("a única liberdade que um escravo tem é imaginar"), o que ouve. Não tem nada, portanto, de um narrador onisciente, e aparece bem "subjetivado" nos seus defeitos e qualidades: no seu gosto pelo maluvo (capítulo III), na sua paixão platônica por Catarina (repetida ao longo de toda a narrativa, mas bem forte no capítulo IX e no início do capítulo X), na devoção a D. Bárbara Mocambo (capítulo VIII), no seu onanismo, sempre bem presente mas evidente em particular no capítulo VII quando assiste aos amores de Rosário e do escravo Thor, ou na sua generosidade ao ajudar a escrava Dolores a fugir com o filho Gustavo (capítulo XI no final). A maior parte das informações de ordem histórica, que seria fastidioso enumerar aqui, são dadas por ele, quer diretamente quer através de uma ligação por ele estabelecida ao discurso das outras personagens.

Pela datação de cada um dos capítulos, apresentados com epígrafes em ordem linear, temos uma narrativa cronológica, apresentada numa relação de causa e conseqüência.

Observações

A subjetivação das personagens ou narração dos fatos históricos através das personagens é permanente e acontece em geral nos encontros de Baltazar Van Dum com os amigos na bodega - inicialmente na de D. Maria, depois na de Samuel Pinheiro nos Coqueiros, mais tarde nos jogos de cartas no antigo Colégio dos Jesuítas agora ocupado pelos Directores da Companhia das Índias Ocidentais -, nas refeições em sua casa com a família, onde se incluem os almoços ao sábado com convidados, ou mesmo em encontros casuais na rua. Retenhamos, por exemplo, todas as informações relativas à captura e fuga do governador português Pedro César de Menezes nos primeiros capítulos, o almoço com Barlaeus e Georg Marcgraft, onde se relata a saída de Maurício de Nassau do Brasil (capítulo V, p. 150), a informação, pela boca de Benvindo, da curiosa situação de coexistência pacífica de portugueses e holandeses na cidade de Benguela durante este período (capítulo VI), a chegada do governador Francisco de Sottomayor a Massangano, relatada, quer através de uma conversa entre o Mani Luanda e o Major Gerritt, quer pela boca de Nicolau (capítulo IX), a criação do exército de coligação entre holandeses, Rei do Kongo e Rainha Jinga contra os portugueses, informação que nos chega pela boca de Rodrigo (capítulo IX), ou todo o capítulo XII, relatando o fato histórico da Restauração de Angola, da perspectiva do alto das barrocas onde habita Van Dum (lugar perto do Kinaxixi, correspondendo aproximadamente ao atual Miramar), sempre através da fala do narrador ou dos mujimbos (notícias) trazidos pelas personagens.

Em quase todos os capítulos são postos em evidência um dos filhos de Baltazar Van Dum (curiosamente sempre os filhos do matrimônio, mantendo-se os "de quintal", como Nicolau, Catarina ou Diogo, personagens secundárias em relação aos primeiros). A cada um destes filhos corresponde quase sempre um epíteto, por vezes uma adjetivação e, de par com a sua vida, desenrola-se, enquanto linha de ação paralela, um acontecimento histórico. Note:

O capítulo III é dedicado a "Rodrigo dos olhos verdes", o qual se apaixona pela filha do governador kikongo da Ilha de Luanda, vindo a casar com ela; o leitor fica bem informado do estatuto da Ilha de Luanda enquanto pertença do Rei do Kongo durante este período.

No capítulo IV sobressai "a bela Matilde" nos seus amores com Jean du Plessis, culminando no casamento forçado de ambos; ficamos informados da existência de oficiais franceses huguenotes no exército flamengo e das relações entre protestantes e católicos em Luanda.

O capítulo V é novamente dedicado à "bela Matilde", desta vez na sua relação adúltera com Van Koin, desencadeando-se uma tragédia; somos informados, entre outras coisas, do estado de abandono da Igreja da Conceição, primeira Sé de Luanda, onde os amantes se encontram.

O capítulo VI é dedicado a "Benvindo da voz esganiçada", que decide partir para Benguela e nos informa, desse modo, da situação dessa cidade, e a "Hermenegildo de ar efeminado", que é assediado por um padre português vindo de Massangano, que nos fornece importantes informações sobre o chamado sertão angolano.

No Capítulo VII predomina Rosário, aquela que mais tarde quererá ser freira, e são descritos os seus amores com Thor, escravo vindo do sul.

O Capítulo IX é, neste aspecto, importantíssimo, porque mostra Ambrósio, "o intelectual da família", trabalhando com o engenheiro Boreel no projeto de canal de ligação do rio Kuanza a Luanda a fim de resolver o problema ainda atual do abastecimento de água à capital; é histórico o projeto holandês de canal a partir do Kuanza, que não chegou a ser levado a cabo, tendo sido construída, já no século XX, a conduta que traz água, não do Kuanza, cinqüenta quilômetros a sul, mas do Bengo, vinte quilômetros a norte.

Os "filhos de quintal" de Baltazar Van Dum também têm alguma importância neste processo de trazer as circunstâncias objetivas ao de cima através das personagens (o reverso do que se verificava no romance histórico clássico), na medida em que contactamos com a realidade das caravanas de escravos através de Nicolau, com os arimos (palavra derivada do verbo kimbundu ku dima, cultivar, hoje em desuso) do Bengo através de Diogo, e com a introdução de condimentos africanos, como o jindungo e o funji, em pratos europeus, por intermédio de Catarina.

Fonte:
Passeiweb

Pepetela (1941)



Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, conhecido pelo pseudónimo de Pepetela, (Benguela, 29 de Outubro de 1941) é um escritor angolano.

A sua obra reflete sobre a história contemporânea de Angola, e os problemas que a sociedade angolana enfrenta. Durante a longa guerra, Pepetela, angolano de descendência portuguesa, lutou juntamente com MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) para libertação da sua terra natal.

O seu romance, Mayombe, retrata as vidas e os pensamentos de um grupo de guerrilheiros durante aquela guerra. Yaka segue a vida de uma família colonial na cidade de Benguela ao longo de um século, e A Geração da Utopia mostra a desilusão existente em Angola depois da independência.

A história angolana antes do colonialismo também faz parte das obras de Pepetela, e pode ser lida em A Gloriosa Família e Lueji. A sua obra nos anos 2000 critica a situação angolana, textos que contam com um estilo satírico incluem a série de romances policiais denominada Jaime Bunda. As suas obras recentes também incluem: Predadores, uma crítica áspera das classes dominantes de Angola, O Quase Fim do Mundo, uma alegoria pós-apocalíptico, e O Planalto e a Estepe, que examina as ligações entre Angola e outros países ex-comunistas. Licenciado em Sociologia, Pepetela é docente da Faculdade de Arquitectura da Universidade Agostinho Neto em Luanda.
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Pepetela é descendente de uma família colonial portuguesa, os seus pais eram, no entanto, já nascidos em Angola. Concluiu o ensino primário em sua cidade natal e depois partiu para o Lubango, onde foi possível prosseguir com os estudos. Foi no Liceu Diogo Cão que completou o ensino secundário.

O escritor cresceu num ambiente da classe média, mas frequentou uma escola primária com crianças de várias raças e classes. Ele diz que a cidade de Benguela lhe deu mais oportunidades para conhecer angolanos de todas as raças porque era a cidade angolana mais multiracial daquela época. Durante a sua adolescência, um tio seu que era jornalista, introduziu-lhe a uma variedade de pensadores da esquerda. Durante os seus anos do liceu em Lubango, Pepetela também foi influenciado por um padre esquerdista chamado Noronha, que lhe informou sobre a revolução e outros eventos contemporâneos.

Lisboa, em 1958, foi o destino acadêmico que se seguiu, no Instituto Superior Técnico que o autor frequentou até 1960 quando ingressa no curso de engenharia. Uma vez mais a mudança, desta vez para frequentar o curso de Letras apenas durante um ano, pois, ainda em 1961, faz a opção política que viria a mudar o rumo da sua vida e a marcar toda a sua obra, tornando-o um narrador de uma história de Angola que conhece, porque a viveu. Tornou-se militante do MPLA em 1963.

Quando Pepetela se tornou militante, fugiu de Portugal para Paris, e posteriormente, se estabeleceu em Argel. Foi ali que ele conheceu Henrique Abranches, com quem trabalhou no Centro de Estudos Angolanos. Este Centro virou o ponto focal do trabalho do jovem Pepetela ao longo da próxima década. Ele, Abranches, e outros trabalharam na documentação da cultura e sociedade angolanas, e na propaganda das mensagens do MPLA ao exterior. Durante a sua época em Argel, escreveu o seu primeiro romance, Muana Puó, uma obra que examinou a situação angolana através da metáfora das máscaras dos Tchokwe, uma etnia de Angola. Não pretendia publicar o romance, mas acabou por fazê-lo em 1978, durante o seu serviço no governo angolano.

Em 1969, o Centro de Estudos Angolanos mudou de Argel para Brazzaville, na República do Congo. Depois desta mudança Pepetela começou a participar na luta armada contra os portugueses. A experiência na luta serviu como a inspiração para uma das suas obras mais reconhecidas, uma narrativa da guerra intitulada, Mayombe.

O primeiro romance foi publicado em 1972, com o título As Aventuras de Ngunga. Foi uma obra literária que ele escreveu para um público pequeno de universitários. Na obra, ele analisa o crescimento revolucionário de Ngunga, um jovem guerrilheiro do MPLA, usando um tom épico e didático. O romance introduz o leitor aos costumes, à geografia e à psicologia de Angola. Cria um diálogo entre a tradição angolana e ideologia revolucionária, debatendo quais tradições devem ser alimentadas, e quais devem ser alteradas. As Aventuras de Ngunga é um romance que exemplifica a carreira iniciante de Pepetela, manifestando um amor profundo por Angola, um desejo de examinar a história e a cultura do país, um espírito revolucionário, e um tom didático. O romance também é interessante porque foi escrito e publicado enquanto o autor lutou contra os portugueses na Frente Leste. Embora escrevesse Muana Puó e Mayombe durante o seu serviço de guerrilheiro, só depois da independência foram publicados.

Com a independência da Angola em 1975, se tornou o Vice Ministro da Educação no governo do presidente Agostinho Neto. O autor exerceu o mandato por sete anos e se aposentou em 1982 para se dedicar a sua escrita. Durante esta época, teve o apoio do presidente Neto para publicar dois de seus romances, incluindo Mayombe. A sua escrita se diversificou com a publicação de duas peças de teatro que tratavam da história angolana e das políticas revolucionárias. Nos anos 70, foi membro da diretoria da União de Escritores Angolanos.

As peças de Pepetela refletem os temas presentes nas Aventuras de Ngunga. A primeira, A Corda foi a primeira peça de longa duração publicada em Angola pós-independência. É uma peça que a crítica Ana Mafalda Leite descreve como didática, ideológica, e de pouco interesse literário. A peça tem um ato, e apresenta dois grupos de pessoas jogando tug of war com Angola como o prêmio. Um grupo representa os americanos e os seus clientes angolanos, e o outro representa os guerrilheiros do MPLA. A outra peça, A Revolta na Casa dos Ídolos, explora o passado de Angola, criando um paralelo entre o reino dos Kongos nos 1500, e a luta pela independência de Angola.

Como já mencionado, Pepetela publicou vários romances durante o seu serviço no governo de Agostinho Neto. Destes romances, Mayombe é o mais conhecido. O romance retrata a vida guerrilheira do autor nos anos 70, e funciona em dois níveis; um em que se exploram os pensamentos e as dúvidas dos personagens, e um outro que se ilustram as ações dos guerrilheiros. Ana Mafalda Leite considera o romance uma obra simultaneamente crítica e heróica, ambos tentando destacar a diversidade étnica supostamente celebrada pelo MPLA e ilustrar as divisões tribais presentes na sociedade angolana que eventualmente levariam à guerra civil. Leite também escreve que o romance exibe um conflito que define a fundação da pátria.

Depois da sua saída do governo ao fim de 1982, dedicou-se exclusivamente à escrita, começando a sua obra mais ambiciosa, Yaka. Yaka, publicada em 1984, é um romance histórico que examina as vidas de uma família de colonistas portuguesas que vieram a Benguela no século XIX. Um desejo para pesquisar as suas origens pode ser visto na escolha de sua temática, que é descendente de portugueses de Benguela. Como Muana Puó, Yaka incorpora objetos espirituais tradicionais de Angola na sua narrativa. Onde o primeiro romance enfoca nas máscaras, Yaka emprega a metáfora de uma escultura de madeira utilizada pelos yakas, organizações sociais dedicadas à prosecução da guerra. Ana Mafalda Leite escreve que a Yaka simboliza a consciência de valores tradicionais e o espírito da nacionalidade. Em 1986, o livro ganhou o prêmio nacional de literatura.

Ele continou escrevendo ao longo da década, publicando em 1985 O Cão e os Caluandas, um romance que analisa os habitantes de Luanda e as mudanças que eles viveram desde a independência. O romance é notável pelo seu uso de os vagamentos por Luanda de um pastor-alemão para estruturar a sua narrativa, e o seu emprego de várias vozes narrativas.

Em 1989, publicou Lueji, uma obra que contem paralelos com A Revolta na Casa dos Ídolos, ambas as obras comparando a história angolana e a situação contemporânea. O romance justapõe a princesa Lueji, uma figura importante na história angolana, com uma bailarina que dança o papel de Lueji num balé contemporâneo. As vidas das duas mulheres eventualmente se encaixam. No romance, recria a história de Angola no séc. XVIII, um projeto que ele fazia de novo com o séc. XVII no seu romance de 1997, A Gloriosa Família.

Nos anos 90, a escrita de Pepetela continuava a exibir interesse na história de Angola, mas também começou a examinar a situação política do país com um maior sentido de ironia e criticismo. O seu primeiro romance da década, A Geração da Utopia de 1992, confronta muitos problemas já explorados em Mayombe, mas da perspectiva da realidade de Angola pós-independência. A guerra civil angolana e corrupção intensa no governo levou a um questionamento dos valores revolucionários promulgados no romance mais velho. Ana Mafalda Leite descreve o romance como uma obra que é muito distante dos valores heroicos de Mayombe. O enredo do livro, que se passa em três décadas, é dividido em quatro partes, cada uma analisando um aspecto importante do séc XX em Angola, incluindo a opressão colonial, a guerra de libertação, a guerra civil, e a pausa curta na guerra que ocorreu no início dos anos 90. O interesse em história continua evidente no livro, mas o criticismo do estabelecimento angolano foi algo novo que surgiria no futuro.

O seu próximo romance da década, O Desejo de Kianda, publicado em 1995, seguiu manifestando a desilusão exibido nA Geração de Utopia. O romance utiliza o realismo-mágico, um estilo que ainda não utilizava muito, apresentando uma situação onde vários prédios em Luanda caem na praça Kinaxixi, com todos os habitantes sobrevivendo. A heroína, uma personagem chamada Carmina Cara de Cu, sai da sua carreira no governo e se torna um traficante de armas. Num ensaio comparando a caída dos prédios no romance aos atentados de 11 de setembro, 2001, Philip Rothwell escreve que o livro continua "o retrato profundo e condenador de uma utopia traída."

No ano seguinte o autor publicou um romance de um gênero diferente, A Gloriosa Família. Esta obra examina a história da família Van Dúnem, uma família proeminente de descendência holandesa. Pepetela passou anos pesquisando a história dos flamengos em Angola para escrever o romance. Esta obra não manifesta o tom cínico e desiludido dos seus outros livros na década. É um romance histórico com um tom épico que também emprega realismo mágico. Embora o romance não caiba dentro da maioria da obra do autor, a fascinação com história angolana se cristaliza melhor neste livro.

A situação política piorou em Angola ao longo dos anos 90, Pepetela passou mais e mais tempo em Lisboa e no Brasil. Porém, ele virou muito mais reconhecido no mundo lusófono. Em 1997, foi galardoado com o Prêmio Camões pelo conjunto da sua obra. Foi o primeiro autor angolano e segundo autor africano que ganhou este prêmio prestigioso. Foi o autor mais jovem a receber este prêmio. Quando abandonou a vida política, optou pela carreira de docente na Faculdade de Arquitetura, em Luanda, dando aulas de sociologia. Nunca abandona o ensino, embora se mantenha como escritor a tempo inteiro.

Pepetela continua como um escritor prolífico na décadas dos 2000. A sua obra tem apropriada uma voz satírica na série de romances denominada Jaime Bunda, livros policiais que satirizam a vida em Luanda na década nova. Stephen Henighan escreve que o personagem de Jaime Bunda, um detetive vacilante com raízes em duas das famílias angolanas mais proeminentes, representa as mudanças que aconteceram na população dos crioulos em Luanda. Em vez de representar a vanguarda revolucionária que criará uma nova identidade angolana, agora os crioulos de Luanda representam uma oligarquia kleptocrata na serie Jaime Bunda, cujo nome provém das suas nádegas enormes, é uma paródia de James Bond. O personagem é obcecado com os filmes James Bond e romances policiais norte-americanos, um aspecto que Henighan descreve como ilustrativo de elementos do subdesenvolvimento de Angola.

No primeiro dos dois romances, Jaime Bunda, Agente Secreto, publicado em 2001, o protagonista investiga um assassinato e estupro que eventualmente segue a um falsificador sul-africano chamado Karl Botha, uma referência a ex-primeiro ministro sul-africano P.W. Botha, quem autorizou a intervenção sul-africana em Angola em 1975. O segundo romance, Jaime Bunda e a Morte do Americano, publicado em 2003, tem lugar em Benguela em vez de Luanda, e se trata da influência norte-americana em Angola, em que Jaime Bunda investiga o assassinato de um norte-americano e tenta seduzir uma agente do FBI. O romance apresenta a crítica de Pepetela da política exterior dos Estados Unidos, com o comportamento pesado da polícia angolana refletindo a maneira como os norte americanos trataram os suspeitos de terrorismo durante o mesmo período. Os romances foram publicados pela companhia Dom Quixote, e eram extremamente populares em Portugal, também tendo êxito em outros países europeus como Alemanha, onde Pepetela era desconhecido antes.

Também publicou outros tipos de livro durante a década. O seu primeiro livro em 2000 foi A Montanha de Água Lilás, um livro para crianças que comenta sobre as raízes de injustiça social.

Em 2005, depois do sucesso dos livros Jaime Bunda, publicou Predadores, a sua crítica mais mordaz sobre as classes poderosas de Angola. O romance acontece em Angola pós-independência, e segue a vida de Valdimiro Caposso, um funcionário público que se torna homem de negócios. Igor Cusack descreve o protagonista como um mafioso assassino que "mora num mar de tubarões semelhantes." Portanto que começou a sua crítica dos novos ricos em Angola com A Geração da Utopia, é evidente na série Jaime Bunda e no Predadores que a temática tem virado dominante na obra do autor.

Os últimos anos da década dos 2000 exibem uma continuação da carreira prolífica do autor, com romances estreando em 2007, 2008, e 2009. O romance de 2007, O Terrorista de Berkeley, Califórnia, tem lugar nos Estados Unidos, e tem pouca ligação com Angola. O livro se trata das atitudes atuais sobre terrorismo e também de aspectos da tecnologia presente na sociedade moderna. Como vários outros romances dele, Pepetela disse numa entrevista recente que ele nunca pretendeu publicar o romance.

O seu próximo romance, O Quase Fim do Mundo, também foi escrito como um exercício pessoal. É uma obra que atinge o gênero de science fiction, retratando os desafios que os sobreviventes de um desastre confrontam. Os personagens sobrevivem num pequeno pedaço da África que Pepetela enfatize que é perto do suposto berço da humanidade. Eles precisam de criar um novo tipo de mundo. O livro segue a tendência iniciada no O Terrorista...porque não tem lugar em Angola, nem lida explicitamente com a realidade angolana. O seu último romance da década, O Planalto e a Estepe, embora lide com Angola, continua refletir a internacionalização da temática do autor na última década. O livro conta o namoro entre um angolano branco e uma mongol que se conheceram enquanto estudavam em Moscou. O romance volta à temática presente nas obras antigas de Pepetela, em particular, o descobrimento de Angola através da sua natureza. Este descobrimento é mostrado na narração da infância do Júlio, um dos protagonistas, na província de Huíla.

Obras

1973 - As Aventuras de Ngunga
1978 - Muana Puó
1980 - Mayombe
1985 - O Cão e os Caluandas
1985 - Yaka
1989 - Lueji
1992 - Geração da Utopia
1995 - O Desejo de Kianda
1997 - Parábola do Cágado Velho
1997 - A Gloriosa Família
2000 - A Montanha da Água Lilás
2001 - Jaime Bunda, Agente Secreto
2003 - Jaime Bunda e a Morte do Americano
2005 - Predadores
2007 - O Terrorista de Berkeley, Califórnia
2008 - O Quase Fim do Mundo
2008 - Contos de Morte
2009 - O Planalto e a Estepe

Peças
1978 - A Corda
1980 - A Revolta da Casa dos Ídolos

Fontes:
Wikipedia
Vidas Lusófonas

Adalgimar Gomes Gonçalves (1974)


SER (?)

Ser princesa e morrer na torre
Porque nenhum guerreiro ousou lutar por ti.

Escrever mil e um livros, de temas vários,
E não ser lido por ninguém.

Ter duas asas e o pensamento
E ser impedido de sair do lugar comum.

Lutar pela liberdade de seu povo
E ser condenado por ele.

Saber que tem a força do maior exército
E ser abatido por uma folha seca.

Pensar que poderíamos ser um pouco de tudo
E somos, verdadeiramente, um muito de nada.

(In: Mar de Minas, 2006)
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Sobre o Autor

Adalgimar nasceu em Bocaiúva, Minas Gerais, em 19 de janeiro de 1974. Concluiu, na sua cidade, o curso de Magistério na Escola Estadual Professor Gastão Valle.

A sua primeira obra, Uma Noite De Recordações, escrita aos seus quinze anos, após muito empenho, foi publicada em 1996, pela editora Questão De Opinião, de Curitiba e, em 1999, pela Imprensa da UFV.

Na primavera de 1997, em homenagem a Castro Alves e Antônio Conselheiro, publicou a coletânea poética Sonhos E Outras Poesias pela editora Por Ora de Belo Horizonte.

O Refúgio da Liberdade, publicado em 2001 pela editora UFV, é um romance que rememora a luta dos guerreiros negros no Quilombo de Palmares, a partir de uma paixão proibida entre um escravo e uma filha de senhor de engenho.

Mar de Minas, sua quarta obra, reúne poesias de temática múltipla escritas desde 1998.

Adalgimar é Graduado em Letras e Especialista em Lingüística e Literatura Comparada pela UFV; Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG. Ocupa o cargo de Técnico em Assuntos Educacionais – UFOP; Ex-Diretor da E.E. Benjamim Guimarães, em Passagem de Mariana e Professor de Literatura Brasileira e de Língua Portuguesa.

Fonte:
Academia de Letras do Brasil – Mariana – MG

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Dylan Thomas (Em Meu Ofício ou Arte Taciturna)

Em meu ofício ou arte taciturna
Exercido na noite silenciosa
Quando somente a lua se enfurece
E os amantes jazem no leito
Com todas as suas mágoas nos braços,
Trabalho junto à luz que canta
Não por glória ou pão
Nem por pompa ou tráfico de encantos
Nos palcos de marfim
Mas pelo mínimo salário
De seu mais secreto coração.

Escrevo estas páginas de espuma
Não para o homem orgulhoso
Que se afasta da lua enfurecida
Nem para os mortos de alta estirpe
Com seus salmos e rouxinóis,
Mas para os amantes, seus braços
Que enlaçam as dores dos séculos,
Que não me pagam nem me elogiam
E ignoram meu ofício ou minha arte.


(tradução: Ivan Junqueira)
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Dylan Thomas (1914 – 1953)

Em 09/11/1953, Dylan Thomas, autor e poeta morre aos 39 anos de idade. Suas influências seriam ainda mais conhecidas na década de sessenta, através do compositor de canções de protestos Robert Zimmerman, natural de Minnesota, mais conhecido por Bob Dylan, a quem tomou o nome emprestado do falecido poeta. Dylan Marlais Thomas nasceu em Swansea, no País de Gales, a 27 de outubro de 1914. Considerado um dos maiores poetas do século XX em língua inglesa, juntamente com W.Carlos Williams, Wallace Stevens, T.S. Eliot e W.B. Yeats e outros mais. Dylan Thomas teve uma vida muito curta, devido a exagerada boemia que o levou ao fim assim tão jovem. Ainda assim influenciaria toda uma geração de grandes escritores.
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Fonte:
http://literaturareal.blogspot.com/

Machado de Assis (Cantiga de Esponsais)


Cantiga de Esponsais”, narrado em 3a. pessoa, conta-nos a história de mestre Romão, músico conhecido no Rio de janeiro, nos idos de 1813.

Cantiga de Esponsais

Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos.

Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristãos, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada.

Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra com alma e devoção.

Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele. Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo.

"Quem rege a missa é mestre Romão" — equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: "Entra em cena o ator João Caetano"; — ou então: "0 ator Martinho cantará uma de suas melhores árias".

Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular. Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado?

Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro.

Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua.

Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar.

Tudo isso indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a Rua da Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho, pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha.

— Mestre Romão lá vem, pai José — disse a vizinha.
- Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.

Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jucundas.

Casa sombria e nua. 0 mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele...

Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas.

Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única de tristeza de mestre Romão.

Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: - a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia.

Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada.

E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela.

Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pôde sair.

Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais.

Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar no papel a sensação de felicidade extinta.

— Pai José — disse ele ao entrar —, sinto-me hoje adoentado.
— Sinhô comeu alguma coisa que fez mal...
— Não; já de manhã não estava bom. Vai à botica...

0 boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no dia seguinte mestre Romão não se sentia melhor. E preciso dizer que ele padecia do coração: — moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado, quando viu que o incômodo não cedera ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o médico.

— Para quê? - disse o mestre. — Isto passa.

0 dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal pôde dormir duas horas. A vizinhança, apenas soube do incômodo, não quis outro motivo de palestra; os que entretinham relações com o mestre foram visitá-lo.

E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo; um acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe dava no gamão — outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final.

"Está acabado", pensava ele.

Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras:

— Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas...

Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado.

Releu essas notas arrancadas a custo, e não concluídas. E então teve uma idéia singular: — rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra.

— Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão...

0 princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar.

Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.

— Aqueles chegam — disse ele —, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...
Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao lá...
— Lá, lá, lá...

Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente.
Lá, dó... lá, mi... lá, si, dó, ré... ré... ré...

Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original , mas enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos.

Para completar a ilusão, deitava os olhos pela janela para o lados casadinhos. Estes continuavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo: Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo; mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não soavam.

— Lá... lá... lá...

Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca.

0 mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.

Fontes:
http://www.vertibular1.com.br/
Conto foi extraído de ASSIS, Machado de. O alienista e outros contos, São Paulo, Ed. Moderna, 1997.

Wilson Martins (Folhetim e Telenovela)



A história da editora Ática não tem nenhuma relação necessária com a de Marcos Rey enquanto escritor, de forma que a sua reunião num estudo de conjunto só se justificaria se esclarecessem mutuamente em aspectos fundamentais. Não é o que acontece na realidade e, por conseqüência, não é o que acontece no livro de Sílvia Helena Simões Borelli (Ação, suspense, emoção. Literatura e cultura de massa no Brasil. São Paulo: EDUC/Estação Liberdade, 1996). A autora os tomou como "focos privilegiados" para análise do "mercado de bens simbólicos", escreve Edgard de Assis Carvalho na introdução: "a Ática, porque edita, principalmente, livros didáticos, paradidáticos e ensaísticos; Marcos Rey, porque escritor que consegue combinar literatura adulta e infanto-juvenil com áudio-visual, crônicas, teleplays, minisséries, telenovelas, numa espécie de escritor hologramático []" - versatilidade que, em si mesma, não caracterizaria a cultura de massa, assim como a não caracteriza a multiplicidade editorial da Ática.

De fato, a expressão "cultura de massa" tem sentido específico no vocabulário intelectual e, por surpreendente que pareça, não depende do volume do público a que se destina. É, antes de mais nada, uma noção de qualidade, é a cultura popular implicitamente contrastada com o que se tem por alta cultura, identificando-se com os produtos destinados especificamente ao entretenimento mais do que por seu valor intrínseco, e com artefatos destinados à venda no mercado em resposta ao gosto das massas mais do que ao dos entendidos, e com coisas criadas pela reprodução mecânica, como a imprensa, os discos e as ilustrações.

Não se trata de distinções "direitistas" e reacionárias: um esquerdista como Dwight Macdonald declarou que a cultura de massa corrompeu a alta cultura, se é certo que outros, como Edward Shils, sem dar pela incoerência, defendem a idéia de que as gravações de música séria e outras de arte elevam o gosto popular, incluindo um público maior na sociedade (v. The Harper dictionary of modern thought. Eds. Alan Bullock/Oliver Stallybrass). É também o que pensa Sílvia Borelli: há um "preconceito" da crítica contra a literatura popular, tratando-se agora de "remover mecanismos de exclusão e transformar estes objetos em legítimas manifestações culturais e literatura." O que corresponde a reconhecer a validade do "preconceito".

Assim, a literatura didática e paradidática não pode ser vista como literatura de massas, da mesma forma por que, apesar dos seus milhões de exemplares anuais, não se enquadram na categoria convencional dos "mais vendidos". A poesia popular autêntica, que é de natureza folclórica, não se confunde com a literatura de massas, fabricada segundo estereótipos invariáveis. No campo literário, escreve Sílvia Borelli, "as contraposições parecem localizar-se mais nos limites entre a produção de uma textualidade erudita e a elaboração de narrativas construídas de acordo com padrões de fabricação industrializados inerentes à indústria cultural."

A telenovela, por exemplo, pertence ao universo da literatura de massas e, claro está, à subliteratura: é o folhetim melodramático do nosso tempo, com penetração, aliás, incomparavelmente maior que a dos seus pobres antepassados tipográficos. A tal ponto que, "adaptando" para a TV o romance Helena, de Machado de Assis, o roteirista não hesitou em "melhorá-lo" nem em acrescentar-lhe numerosas seqüências para conformá-lo ao gosto do público e, claro, estender-lhe a duração. O folhetim, de seu lado, não se confunde com a crônica, apesar do que sugere a autora. Suas regras são específicas e invioláveis, a mais importante sendo o suspense obrigatório ao fim de cada episódio. Os antigos filmes em série eram a realização perfeita do folhetim jornalístico, assim como a telenovela é a forma contemporânea do filme em série. Não é pela serialização que se definem, mas pelas interrupções dramáticas dos episódios.

Inclinada às digressões, a autora recapitula em pormenor as teorias e autores de perto ou de longe relacionados com o seu tema. Ela sabe, por exemplo, que a concepção arcaica de romance "não deve ser confundida com outras formas posteriores do romance moderno", mas nem por isso quer perder a oportunidade de resumir as idéias do medievalista Paul Zumthor. Seria de esperar que também reexpusesse a doutrina da Escola de Frankfurt, referência canônica até há pouco nos trabalhos universitários. Da Escola de Frankfurt passamos a Umberto Eco e deste para Antônio Gramsci sobre o conceito de popular nas sociedades modernas. Os franceses mais recentes não são tampouco esquecidos, além de tudo o que já se congeminou sobre a natureza e singularidades da novela policial.

Em tudo isso, faltou o essencial e é o fato de Marcos Rey, escritor talentoso e versátil, jamais ter alcançado a estatura de escritor nacional. O que acima de tudo o distingue, observa Sílvia Borelli, "é a pluralidade de atividades": produtor cultural de múltiplas faces, "escreve romances e literatura infanto-juvenil; faz novelas e minisséries para TV; trabalha em agências de publicidade; colabora na confecção de inúmeros roteiros cinematográficos", além das crônicas e trabalhos menores. Ele é "universalmente conhecido" em São Paulo, como diria aquele personagem de Lubitsch, mas ainda não foi incluído no elenco das referências indispensáveis.

A verdade é que, levado pela versatilidade do seu talento, ele se dispersou em atividades apressadas e "fáceis". Encontram-se nos seus livros e em todos eles numerosos trechos de boa literatura, logo diluídos no ácido das letras de carregação. É autor que devia desconfiar da facilidade e seguir as suas inclinações - no sentido da subida, como recomendava o malicioso André Gide.

Fonte:
Jornal A Gazeta do Povo. 3 de fevereiro de 1997.
Imagem = montagem de imagens capturadas da Internet, por Yussef Khalifman