sábado, 25 de maio de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 47: Nuances de um Poemas

 

José Gomes Ferreira (A Festa ficou-me barata)

Por mais que puxe pela cabeça, ainda não consegui compreender como coube tanto tempo em poucos segundos.

Com efeito, no intervalo que vai desde esta pergunta lacônica “Lápis?” à prontidão da resposta afirmativa, tive a acuidade surpreendente de descobrir que o meu interlocutor, dono da capelista (loja de quinquilharias), se chamava Jerônimo, ostentava aquela carranca de altivez solene e morrera-lhe há pouco um filho tuberculoso, pelo qual andava de luto na vestimenta e nos olhos.

Há momentos assim: em que o tempo se dilata e, bruscamente, não sei por qual misterioso toque de atmosfera, os atos mais banais da vida se tornam extraordinários. Comprar lápis, por exemplo. É extraordinário estar em cima de uma bola que anda à roda do sol, e comprar lápis ao sr. Jerônimo, ali, de pé, atrás do balcão — alto, vasto e fastiento.

— Que marca prefere V. Exa.?

Respondi qualquer coisa dúbia de propósito para me esconder no silêncio de não haver resposta.
Na lojinha entrara outra freguesa: uma senhora de meia idade, amargurada de profissão, boca sempre em molde de suspiro e olhos tíbios, onde até a inveja de viver soçobrara já.

Lacrimejava:

— A minha sobrinha está muito ruinzinha... E com 19 anos, calcule! Tão nova e já tuberculosa como o seu filho...

O sr. Jerônimo, a alinhar as caixas dos lápis, abanou a cabeça agastado da comparação que lhe ofendia não sei que estranho sentimento aristocrático de orgulho paterno:

— Como a de meu filho, não, minha senhora. Há tuberculoses e tuberculoses... E a do meu filho era galopante. E que galopante! O médico, pelo menos, disse-me que nunca tinha visto outra assim. Que galopante!

E a sua voz resmungava no tumulto cavo de quem nos queria sugerir o tropear aflito de um bicho sangrento de escamas negras a devorar espaço, a devorar vida, a devorar alma, a apagar olhos com as patas...

— Que galopante!

Depois, desenhou com as mãos o gesto redondo do voo dos corvos sobre um campo de matança:

— Tive tão pouca sorte com os filhos que nem calcula! Nasceram todos fraquinhos do peito e por mais bifes que lhes desse nunca conseguiriam arribar. Desde miúdos, bifes e mais bifes. E de lombo! Cada bifada de meter respeito. “Ó homem — dizia a minha mulher (coitadinha! uma autêntica mártir dos filhos!) — ó homem: olha que a gente se arruina com tanta carne! Já viste a conta do açougueiro?” “Deixá-lo! Paga e não bufes. Chega-lhes bifes! Não poupes na bifada!” Mas, qual! Todos uns fracotes, uns magricelas.

E numa conclusão em que a melancolia da voz acentuava mais de força vaidosa o volume do corpanzil espesso: – Nenhum saiu a mim!

Seguiu-se um, curto silêncio, perturbado apenas por aquele raio de sol que vinha da vitrine e atravessava a loja vestido de poeira.

A senhora de meia-idade gozou, então, a tristeza de exclamar:

— Coitadinho! Não faz ideia do desgosto que senti quando soube da morte do seu filho. Infelizmente não pude assistir ao enterro. Até lhe queria pedir desculpas...

Como ela se delícia a fingir ternura! Não lhe deve restar outro prazer no mundo senão este de sorver as desgraças alheias com a cara pintada de alma, aos beijinhos no pó-de-arroz lívido das senhoras viúvas pé ante pé nas veladas dos mortos, a cochichar nas visitas de pêsames em todos os serões lúgubres, onde pode ser ridícula à vontade sem que ninguém lhe estranhe a velhice, porque as rugas até ajudam a exprimir melhor a dor, sobretudo a que ninguém sente, mas todos gostam de ver estampada nas faces dos outros. E o lápis? Esperem! Eu estou a comprar lápis! Preciso de formular uma opinião qualquer a respeito dos lápis:

— Não tem outros mais moles?

O sr. Jerônimo, sem se dignar reparar em mim, tirou da prateleira uma nova caixa azul que pousou no balcão.

E, sempre voltado para a freguesa, a pôr uma impossibilidade física entre aquela pobre mulher insignificante e o seu orgulho em que resvalavam todas as desculpas:

- Não assistiu, nem podia ter assistido, minha senhora, porque o enterro não se realizou em Lisboa, mas nas Caldas, na terra dos avós do pequeno. Coitados! Faziam tanto gosto em que o neto se enterrasse ao pé deles! Não sei bem para quê... Para lhe cuidarem da cova, suponho eu. E regarem-lhe as flores... Mania de velhos!

A sua voz tornou-se de súbito singular: mistura sombria de indiferença e petulância com um toquezinho sinistro de alegria comercial de quem atira dinheiro imaginário à cara de dois imbecis:

— E ainda bem, porque dessa maneira poupei muito dinheiro! Se o sepultasse no Alto de S. João, sabe por quanto me sairia a brincadeira? Aí por uf! 5 a 9 contos!... Quanto a trasladação nem falar nisso é bom... Era coisa para 16 contos bem puxados... Assim a festa ficou-me barata!

— Como? — balbuciou a senhora de meia-idade, sem entender, perdida naquele labirinto de contos e de festas, de confusão com o cadáver de um filho.

— Oh! foi tudo muito bem calculado! — explicou o sr. Jerônimo com voz brilhante de comércio inútil. — Foi tudo muito bem calculado!...

Sim, estes lápis ainda me parecem duros. Quero outros, ouviste? Mostra-me outros. Mas, nada de pressas, hein? Tira devagar as caixas da prateleira. Mais devagar, ainda. Dá-me tempo de ouvir a história até o fim.

— Quando vi o meu filho muito mal, chamei o médico à parte e perguntei-lhe: “Então, doutor? Diga-me, de homem para homem: ainda tem esperanças de o salvar?” O doutor olhou-me contristado e confessou-me: “Está por pouco. Dura no máximo três dias.” Três dias? Meu Deus! Só três dias? Fiquei aflito como pode imaginar. Mas, depois de refletir maduramente no caso, tomei uma resolução. O melhor era pegar no pequeno e levá-lo o mais depressa possível para as Caldas enquanto estivesse vivo, para depois evitar a trasladação. E assim fiz. A mãe ainda choramingou. Que era uma barbaridade, que era isto, que era aquilo... Mas que percebem as mulheres de negócios?

“Psiu! Claudina! Quem manda cá em casa sou eu!” Metia-a na ordem com dois berros e lá partimos para as Caldas. Coitadinho! Mal podia sustentar-se nas pernas. Tão definhado! Só tinha pele e osso. Conseguimos vesti-lo à custa de injeções de cânfora, para aguentar o coração, e mesmo assim com mil cuidados, parando a cada momento, não fosse o diabo tecê-las... Por fim, de gravata à roda do pescoço e a dançar numa vestimenta larguíssima, lá o instalamos numa carruagem de primeira — coitadinho! — com uma barba tão grande, tão grande, que até metia medo!... Quando chegamos às Caldas, ia branco como um lençol e quase que não respirava. O avô, assim que o viu, teve um baque, fez-se muito pálido e perguntou-me em voz baixinha: “está morto?”

E o sr. Jerônimo repetia, numa voz ciciante, como filtrada através da fluidez dos cristais do sonho: “está morto?”

— E estava? interrogou, ansiosa, a senhora de meia-idade.

— Não, não estava. Mandei logo chamar um médico para me livrar de responsabilidades... Não estava... Só faleceu no dia seguinte, coitadinho!

Calou-se.

Entrementes tinham entrado na lojinha várias pessoas em compras de fitas de linho, fósforos, carrinhos de linhas, mais isto, mais aquilo, e todos pareciam ouvir aquela história com a naturalidade normal de haver vida todos os dias. Só eu continuava a achar tudo extraordinário.

— Quanto é?

— Tanto.

Enquanto procurava no bolso o dinheiro para pagar os lápis, passou-me repentinamente pela cabeça esta ideia estapafúrdia: e se eu desse um salto, a pés juntos, sobre o balcão, deitasse as mãos ao pescoço do sr. Jerônimo, e o censurasse numa voz fria de boca de cadáver: “quem julgas tu que eu sou, seu Malandro? Um freguês como os outros, não? Um palerma qualquer que quer lápis moles, bem? Pois enganas-te! Sou um espião, ouviste? Um espião disfarçado. E vou espalhar com a tua história relés nos jornais, com nomes e tudo, sob este título: Sensacional: um malandro macabro que trasladou o cadáver do filho em vida! Percebeste?”

Mas, em vez disto, sorri-lhe. E para completar a desorientação, quanto o ar, Jerônimo me entregou os lápis embrulhados (a festa ficou-me barata!) pareceu-me ver-lhe nos olhos uma ternura qualquer de lágrimas... uma névoa funda de dor.., um brilho de comoção secreta.., ou seria tudo ilusão dentro de mim?

Paguei e saí da capelista.

Cá fora, as ruas de sempre, o sol de sempre, as pedras de sempre, as casas de sempre, os homens de sempre, o espanto de sempre. Tudo normal, tudo sonolentamente normal.

Apenas na esquina do costume, uma velha, feia de miséria, carranca de cera com pelos, pedia esmola para o filho idiota, de olhos enormemente parados, aos guinchos dentro dum carro de madeira:

— Ó meu rico senhor: dê-me uma esmolinha para o meu filhinho que é toda a paixão da minha vida! Dê-me...

Fixei-a com o olhar cúmplice de quem sabe perfeitamente o que valem essas grandes paixões da vida. E dei-lhe dois tostões, (A festa ficou-me barata!)

Tudo normal, tudo absurdamente normal. Só o pobre monstro, no carrinho, continuava a soltar sons inarticulados, e a mirar e a remirar as mãos, no espanto de haver mãos.

Fonte: Diaulas Riedel. Maravilhas do Conto Português. Publicado em 1958.

Livros Recebidos

Últimos livros publicados enviados pelo correio ou entregues em mãos pelos autores,  cujo conteúdo estou publicando gradativamente no blog:

A. A. de Assis. Histórias da história de Maringá.
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: insondáveis.
Arthur Thomaz. Rimando Sonhos: trovas.
Carolina Ramos. Meus bichos, bichinhos e… bichanos
Daniel Maurício. Alma lírica: poesias.
Daniel Maurício. Amar é: poesias.
Daniel Maurício. Cacos e retalhos: poesias.
Daniel Maurício. Gotas poéticas.
Daniel Maurício. Leve-me: poesias.
Daniel Maurício. Miudezas do coração: poesias.
Daniel Maurício. Mosaico de sentimentos: poesias.
Daniel Maurício. Olhares: poesias.
Daniel Maurício. Origamis de palavras: poesias.
Daniel Maurício. Palavras de cheiro: poesias.
Daniel Maurício. Poesias da madrugada.
Edy Soares. Sonetos sonantes.
Lucília Alzira Trindade de Carli. Canteiros: trovas.
Luiz Poeta. Trov…ansi…arte.
Pedro Cardoso & Goulart Gomes. Poemas encolhidos: poetrix.
Renato Benvindo Frata. Contos infantis.
Renato Benvindo Frata. Fragmentos: 102 crônicas.
Vanice Zimerman Y Gustavo Henao Chica. Saudade… : poesias.

Meus agradecimentos aos autores.

Vereda da Poesia = 17 =

 

Trova humorística da Princesa da Trova

Carolina Ramos
Santos/SP

Deu a tantos seu carinho
que no enlace, em confusão,
deu o sim para o padrinho
e o beijo no sacristão!
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Soneto de Fortaleza/CE

José Albano
(José D’Abreu Albano)
1882 – 1923, Montauban/França

SONETO DA DOR

Mata-me, puro Amor, mas docemente,
Para que eu sinta as dores que sentiste
Naquele dia tenebroso e triste
De suplício implacável e inclemente.

Faze que a dura pena me atormente
E de todo me vença e me conquiste,
Que o peito saudoso não resiste
E o coração cansado já consente.

E como te amei e sempre te amo,
Deixa-me agora padecer contigo
E depois alcançar o eterno ramo.

E, abrindo as asas para o etéreo abrigo,
Divino Amor, escuta que eu te chamo,
Divino Amor, espera que eu te sigo.
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Aldravia de Porto Alegre/RS

Ilda Maria Costa Brasil

uma
palavra
inúmeras
faces
vários
escritos
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Poema de Natal/RN

Silvino Potêncio
(Silvino dos Santos Potêncio)

O TEMPO É BREVE!…
(Poema numero 8)

O tempo é breve... Já vou andando,
Descendo por escadas em poeira.
Vou caindo pra morada derradeira,
Que existe na terra guardando,
Pra sempre os restos de um corpo,
Do mundo,... já se vai porque está morto!

Sinto náuseas fedorentas,
Em contato ao pensamento.
Sinto passos de almas lentas!!!???...
- Ah!... mas já não me fazem tormento!.

Saudades não levo nem deixo.
Tristezas!?... morreram já há algum tempo.
Concordem que não fui contratempo,
E só porque já não me queixo,
Não pisem no meu mausoléu...
Se alguém o ergueu para o céu!
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Trova de Curitiba/PR

Nei Garcez

Há emoções que a gente sente
e, que encantam tanto, tanto,
que, se expressas, verbalmente,
perdem parte deste encanto.
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Soneto de Curitiba/PR

Emílio de Meneses
(Emílio Nunes Correia de Meneses)
1816 – 1918, Rio de Janeiro/RJ

A CHEGADA

Noite de chuva tétrica e pressaga*.
Da natureza ao íntimo recesso
Gritos de augúrio vão, praga por praga,
Cortando a treva e o matagal espesso.

Montes e vales, que a torrente alaga,
Venço e à alimária** o incerto passo apresso.
Da última estrela à réstia ínfima e vaga
Ínvios*** caminhos, trêmulo, atravesso.

Tudo me envolve em tenebroso cerco
D'alma a vida me foge, sonho a sonho,
E a esperança de vê-la quase perco.

Mas uma volta, súbito, da estrada
Surge, em auréola. o seu perfil risonho,
Ao clarão da varanda iluminada!
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*Pressaga = que pressagia, prevê ou pressente
**Alimária = animal de carga
***Ínvios = Em que não se pode passar, transitar em caminho, estrada etc.).
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Quadra Popular

Sonhei contigo esta noite,
mas oh! que sonho atrevido!
Sonhei que estava abraçado
à forma do teu vestido !
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Décima de Fortaleza/CE

Francisco José Pessoa 
(Francisco José Pessoa de Andrade Reis)
1949 - 2020

PALHAÇO

A vida se nos faz meros palhaços...
sorriso solto num choro prendido,
querer que é dado nunca agradecido
saltar ao vento sem pisar os passos.
Tragar o fumo dos prazeres baços
embebedar-se tanto pra esquecer,
sentir-se ser alguém, mesmo sem ser,
no picadeiro, o aplauso, a falsa glória,
imagem tão real quanto ilusória
pranto da morte rindo pra viver!
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Epigrama de Salvador/BA

Roberto Correia
(Roberto José Correia)
1876 – 1937

Carroceiro, desalmado,
– diz o burro – vê que tu és
meu irmão! mas, aleijado,
que nasceste com dois pés!
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Poema do Príncipe dos Poetas Paranaenses

Emiliano Perneta
(Emiliano David Perneta)
Curitiba/PR, 1866 – 1921

ORAÇÃO DA MANHÃ

Amanheceu. A luz de um claro e puro brilho
Tem a frescura ideal de uma roseira em flor :
Antes de tudo o mais, ajoelha-te, meu filho,
Ajoelha-te e bendize a obra do Criador.

Ajoelha-te aqui, e sorvendo esse aroma
De feno, e rosa, e musgo, e bálsamo sutil,
Que vem do seio azul dessa manhã, que assoma,
Na radiosa nitidez de uma manhã de Abril,

Bendize a força, a graça, a seiva, a juventude,
A hercúlea robustez daqueles pinheirais,
Que resistem, de pé, dentro da casca rude,
Aos mugidos do vento e aos rijos temporais.

Ama essa terra como um fauno que por entre
A silva agreste vive; ama tudo o que vês;
Todos somos irmãos, filhos do mesmo ventre,
Filhos do mesmo amor e da mesma embriaguez.

Abraça os troncos nus, beija esses ramos de ouro,
Ajoelha-te aos pés dos que te querem bem :
Que riqueza, Senhor, que límpido tesouro!
Que grande coração que o arvoredo tem!

Pede a Deus que conhece os bons e maus caminhos
Que conhece o passado e conhece o porvir,
Que te aponte de longe os cardos e os espinhos,
E que te estenda a mão, quando fores cair...
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Trova do Príncipe da Trova

Luiz Otávio
(Gilson de Castro)
Rio de Janeiro/RJ, 1916 -1977, Santos/SP

Ele cai... não retrocede!...
Continua... até sozinho...
que a fibra também se mede
pelas quedas no caminho...
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Martelo Agalopado de Pilõezinhos/Distrito de Guarabira/PB

José Camelo de Melo Rezende
1885 – 1964, Rio Tinto/PB

O orgulho nasceu em noite escura, 
E é filho da triste ignorância, 
Ao descer o seu corpo à sepultura, 
Cai-lhe verme por cima, em abundância, 
E seu todo se torna uma figura, 
Que nos causa a maior repugnância. 
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Haicai de Belo Horizonte/MG

Hana Haruko
(Clevane Pessoa de Araújo Lopes)

Pássaros canoros 
Energia em expansão 
Almas projetadas… 
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Poema de Vila Velha/ES

Aparecido Raimundo de Souza

CHUVA E SAUDADE

Cai a chuva… é triste o dia…
A manhã é cinzenta e baça…
E eu mudo vejo a chuva fria,
A correr de leve na vidraça…

E a chuva cai… cai e não passa…
Nem sequer a chuva estia…
Para que um pouco se desfaça,
A saudade de quem eu tanto queria!…

Qual essa vidraça, está meu rosto…
E meus olhos não querem desanuviar…
É por demais sofrido o meu desgosto…

Aumenta a chuva e com ela a minha dor…
Soluço qual criança perdida, sem cessar,
Na incerteza de ao menos rever-te amor!…
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Trova de Campinas/SP

Arthur Thomaz
(Arthur Thomaz da Silva Neto)

Não tem preço, a amizade,
é o ditado popular.
E os amigos de verdade
são difíceis de encontrar.
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Parcela* de Campo Grande/MS

Rubenio Marcelo
 
1.
   no azul do poema
   a luz da canção
   agora um clarão
   antes tão pequena
   não mais quarentena
   que se encastela
   agora eu e ela
   no leme do dia
   rumo à escadaria
   cantando parcela...

   2.
   assim, infinito
   nessa plenitude
   meus pés, amiúde,
   procuram o grito
   perpassam o mito
   ardente aquarela
   aurora e estrela
   que já predestinam
   sazões que sublimam
   à luz da parcela...

   3.
   oh tempo-verdade
   gravando o eterno
   já não mais hiberno
   a outra metade
   oh fertilidade
   que tudo revela
   com justa cautela
   quero ressurgir
   para refletir
   cantando parcela...

   4.
   no bico do corvo
   deixei o meu múnus (1)
   e os importunos
   punhais do estorvo
   agora não sorvo
   profana querela
   há porta, há cancela
   colunas, mansão
   adeus solidão
   no tom da parcela!

   5.
   permanentemente
   honrarei o rito
   quesito a quesito
   manhã, sol-poente
   se dente é por dente
   ardente é aquela
   retina que zela
   o perfeito instinto
   no áureo recinto
   do canto-parcela!
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 (1) Múnus = obrigações

* Parcela, conhecida também pela denominação de Décimas de versos curtos, a Parcela é gênero de cantoria constituída por estrofes com versos de quatro ou de cinco sílabas. Destacaram-se neste estilo os cantadores Pedra Azul, Manoel da Luz Ventania, José Félix e o cego Benjamim Mangabeira, este último falecido em Fortaleza.

Como é outra variante das Décimas, o esquema de distribuição rimática das Parcelas é abbaaccddc. (Fonte: Lilian Maial)

Luís da Câmara Cascudo (A Princesa Jia)

Um casal tinha três filhos já em idade de trabalhar, mas, sendo muito unidos, não se separavam. Um dia o velho chamou os três filhos e disse que eles precisavam procurar a vida pelo mundo de meu Deus. No fim de um ano todos deviam voltar para a casa dos velhos.

Partiram os rapazes e logo adiante viram que a estrada se abria em três veredas. Cada um tomou a sua. José pela esquerda, Pedro pela do meio e João pela direita.

José e Pedro chegaram a cidades muito grandes e bonitas e acharam trabalho em palácios onde duas moças viviam e se engraçaram deles.

João andou, andou, andou, dormindo no mato, e dias depois viu um palácio deteriorado, feio, sujo, no meio de umas pedras escuras. O lugar era esquisito que fazia medo. João estava tão cansado e faminto que parou na porta e bateu palmas sem que ninguém respondesse. Bateu, bateu, e uma voz grossa roncou lá de dentro:

– Vá entrando!

João encontrou uma sala enorme, onde estava uma rede armada e uma mesa comprida, coberta de teia de aranha, picumã e porcarias. A voz continuou:

– Descanse...

João tirou os sapatos, deitou-se e pegou numa madorna (sonolência) quando a voz acordou-o:

– Jante!...

Jantou muito bem, havendo do bom e do melhor. Depois a voz ensinou onde era o quarto, com todos os preparos. João dormiu como um anjo. De manhã chamaram para o café, o almoço, a janta e a ceia. Passava o dia andando os arredores e lendo uns livros, pretos de poeira, que encontrara.

Na hora da ceia, tempos passados, ouviu os baques pesados no corredor e apareceu uma Jia (rã) que não tinha fim, grandona, gorda, repelente. Veio pulando, toda mole, escorrendo baba, até perto de João e sentou-se juntinho. O moço ia se esgueirando.

– Está com nojo de mim, João?

– Não senhora, dona Jia!

Conversaram e a Jia disse:

– Amanhã é o dia que você deve comparecer na casa de seus pais. Encontrará um cavalo selado junto da porta.

Na manhã seguinte, João mudou a roupa, almoçou e viu um cavalo selado que não tinha lugar para mais enfeites ricos. Montou-se e ia dando de rédeas quando a Jia apareceu, capengando:

– Espere aí, João. Leve esta lembrança para sua mãe.

Deu um saquinho, muito sujo, encardido, amarrado por um cordão imundo. O rapaz guardou o troço no bolso e galopou para casa. Antes de o sol se pôr avistou a casa e apeou-se no alpendre, onde seus pais e irmãos conversavam.

Jantaram muito satisfeitos e depois José e Pedro entregaram os presentes que traziam, roupa, calçado, chapéus, dinheiro. Os velhos agradeceram.

– E você, João, que me trouxe da viagem?

João entregou o saquinho de nada. Os irmãos riram como uns perdidos, mangando do tamanho do presente. A velha, recebendo o saquinho, sacudiu-o para fazer cair o que estivesse dentro. Quase não acabava de sair moedas de ouro, brilhantes, pedras preciosas, tudo de muito. Os velhos ficaram assombrados. E disseram, dançando:

José vai casar bem,
E Pedro casa melhor,
Mas João...
Passa-lhe a mão!

Os irmãos ficaram zangados. Quando anoiteceu despediram-se e João montou o cavalão que corria como o vento. Num ruflo estava diante do palácio velho e escuro. João apeou-se e entrou. Encontrou o banho pronto e depois a janta. Jantou e dormiu e continuou a mesma vida, conversando com a Jia, cada vez mais nojenta e amorosa.

Um ano se passou e a Jia lembrou que no dia seguinte devia estar o moço na casa dos pais, levando uma lembrança feita pela noiva.

Sucedeu como no ano anterior. No momento em que João ia picando o cavalo nas esporas, apareceu a Jia e lhe deu um vidrinho, com a boca quebrada, cheio de uma água que parecia lodo. O rapaz recebeu para não fazer desfeita e voou para casa.

A festa foi a mesma. José e Pedro traziam finos presentes bordados pelas noivas, em seda e ouro, representando passarinhos e estrelas, tudo faiscando de beleza. Quando chegou a vez de João e este entregou o vidrinho, foi uma risadaria geral. A velha destapou o vidrinho e sacudiu a água em cima da cama porque se fosse cheiro havia de servir. Imediatamente a cama ficou lastrada das maiores belezas do mundo, camisas, toalhas, lençóis, fronhas, todos os arranjos de casa, nuns bordados tão delicados e de cores tão feiticeiras que mão de gente não podia ter feito aquele serviço. Os velhos, não se contendo, dançaram:

Pedro vai casar bem!
José vai casar melhor!
Mas João...
Passa-lhe a mão!

Os manos fizeram cara feia, não achando graça na cantiga dos pais. Assim que anoiteceu se despediram. Os velhos disseram que, na próxima vez, deviam trazer as esposas e ficar uma semana, porque já estavam ricos e queriam hospedar os três filhos e as três noras com gosto e agrado.

Foram todos embora e João seguiu na vida velha no palácio feio ao lado da Jia.

Um ano depois, a Jia avisou que na manhã seguinte seria o dia de João se apresentar com a noiva.

– Eu não tenho noiva!

– Tem, sim senhor! Sou eu!

João tinha vontade de fugir mas não teve coragem de pagar o bem com o mal e, com pena da Jia, ficou calado. Quem cala consente.

Mal amanheceu o dia, e, depois do café, João encontrou, em vez do cavalo bonito e bem arreado, uma égua lazarenta, coberta de perebas e de moscas varejeiras, com a sela, bridas, rédeas, rabicho, tudo consertado com pedaço de cordão, caída de sujeira. Mesmo assim montou e saiu. Mal a égua dera os primeiros passos, tropeçando com a própria sombra, João ouviu um barulho desesperado atrás de si e, voltando-se na sela, reparou que todos os animais e aves o acompanhavam como se fizessem uma procissão. Galinhas, galos, perus, patos, guinés, gansos, porcos, tudo vinha seguindo, misturado, numa algazarra de carnaval. E o pior é que a Jia apareceu montada na garupa da égua, muito de seu, como se estivesse num trono. O pobre João só imaginava a mangação dos irmãos e do povo da rua quando fosse atravessar a povoação em que residiam os pais. Mas ficou conformado com a vontade de Deus, que lhe dera um bicho tão feio para noiva.

Com o trote do cavalo, a Jia desequilibrava-se e vinha ao chão, num estalo. Tornava a subir para a garupa da égua e ficava, agarrada como um cipó, até que despencava e ia bater na areia. Na terceira queda, desistiu de viajar na égua e chamou o galo para servir-lhe de montada. O galo parou e a Jia começou a lutar para montar-se no pescoço dele. Luta que luta, sobe e desce e João, esperando, achou tanta graça naquela cena mas teve tanta piedade que saltou do animal e veio, rindo, ajudar a Jia a se acomodar em cima do galo. Assim que ele colocou a Jia onde ela queria ficar, ouviu-se um estrondo e passou um clarão azul, tão forte, que cegava. João fechou os olhos, deslumbrado, e quando os abriu, estava diante de uma princesa bonita como uma estrela, sentada numa carruagem dourada, com seis cavalos brancos e um mundo de gente vestida de seda, bordada de ouro e tremendo de brilhantes, esperando. Era um cortejo tão faiscante que João não podia acreditar que fosse verdadeiro.

A princesa sorrindo disse:

– Eu fui a Jia que não recusaste para noiva e nunca fizeste pouco de seus presentes e feiúra. Estou desencantada e serei uma esposa fiel e amante. Esses são meus criados e estavam todos encantados.

A égua perebenta virara um cavalo gordo e espelhante, coberto de arreios que valiam uma riqueza. João montou e veio com aquele povão, estrada a fora, até sua casa, onde seus pais e irmãos o receberam como um rei coroado.

Fez-se o casamento, com grandes festas, e João foi morar no palácio velho, agora novo e cheio de luzes e de criados, sendo muito feliz.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Romance de Uma Caveira)


Compositores: Alvarenga, Ranchinho e Chiquinho Sales
(Valsa Humorística – 1940)

Eram duas caveiras que se amavam 
e à meia-noite se encontravam 
pelo cemitério os dois passeavam 
e juras de amor então trocavam.

 Sentado os dois em riba da lousa fria 
a caveira apaixonada 
assim dizia que pelo caveiro de amor morria 
e ele de amores por ela vivia.

 Ao longe uma coruja cantava alegre 
de ver os dois caveiro assim feliz 
e quando se beijavam em tom fúnebre 
a coruja batendo as asa pedia bis.

 Mas um dia chegou de "pé junto" 
um cadáver, um defunto 
E a caveira por ele se apaixonou 
e o caveiro antigo abandonou.

 O caveiro tomou uma bebedeira 
e matou-se de modo romanesco 
por causa dessa ingrata caveira 
que trocou ele por um defunto fresco.
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Na versão de Alvarenga e Ranchinho alguns eixos norteadores da canção ficam bem claros. Primeiro, se trata de uma seresta em compasso ternário (o mesmo compasso utilizado em uma valsa) tocada em um ritmo lento que constitui um elemento estético muito forte estabelecendo uma primeira relação entre a melodia, harmonia e letra. Outra característica da música é por ser cantada em uníssono sendo que a segunda voz (Ranchinho) só entra em um segundo momento da letra, no entanto, sem harmonizar com o vocal principal apenas dobrando a mesma linha melódica. A harmonia da canção em tom menor é outro item indispensável para alcançar o tom “fúnebre” que é proposto pelos artistas. Aliás, quando essa se altera para um tom maior, ela se relaciona diretamente com a letra da canção tendo em vista que é nesse momento da narrativa em que acontece a novidade da chegada do terceiro personagem: o “defunto fresco”.

Nos primeiros segundos da gravação da dupla Alvarenga e Ranchinho, escutam-se gritos e uivos de certo modo fantasmagóricos acompanhados por sons dissonantes e intencionalmente sombrios vindos de um acordeon que além de preparar o ouvinte para o tema central da canção mostra um dos fatores fortes da dupla: a questão da performance. 

A letra da canção possui uma narrativa linear contando uma história simples com começo, meio e fim. Até a terceira estrofe a canção fala de um casal de caveiras que viviam apaixonados. O cenário sombrio pode ser observado na letra quando os autores, além de já indicar o romance entre dois seres humanos mortos, usam de elementos como o local do romance (cemitério), o horário em que os “dois se amavam” (meia noite) e ainda o bater das asas da coruja (ave que no imaginário popular ajuda a compor o tom fúnebre proposto). A história sofre uma brusca mudança na terceira estrofe quando um “cadáver novo” chega ao cemitério fazendo com que a caveira se apaixonasse por ele configurando assim um triângulo amoroso fúnebre. 

O interessante de observar nesse momento é que justamente na estrofe em que ocorre uma mudança brusca no enredo, o tom da música também muda. Antes, em tom menor a canção seguia linear contando o romance entre as duas caveiras. Todavia, com a chegada do defunto novo a canção alterna para um tom maior, chamando a atenção do ouvinte para a novidade que ocorre na letra e em sua narrativa, assim como na harmonia da música. De um modo geral a letra da canção apresenta um tom humorístico por se tratar de um romance existente entre dois indivíduos que normalmente não integrariam qualquer enredo amoroso.
(Fonte: Carlos Gregório dos Santos Gianelli, trecho do artigo A Resignificação da Canção “Romance de uma Caveira” de Alvarenga e Ranchinho, Universidade de São Paulo, 2012, no Encontro Internacional de Música e Mídia)

Como Escrever uma História Curta e Engraçada – 4, final


Revisando a história

1. Deixe o conto de lado por um tempo, antes de revisá-lo.

A pior coisa que um autor pode fazer é seguir imediatamente para a revisão após terminar de escrever um conto. Os escritores precisam de algum tempo longe do projeto para que a obra não esteja tão fresca em suas mentes e (idealmente) para que não estejam tão emocionalmente ligados a cada detalhe do enredo.

Após terminar de escrever, espere por pelo menos uma ou duas semanas antes de revisar a história. Se possível, tente esperar por um mês para poder criar uma distância significativa entre o enredo e você.

Considere pedir a um familiar ou amigo de confiança para ler o conto. Peça para que ele seja honesto e crítico, e enfatize que deseja saber tudo o que não está funcionando bem no enredo e por quê.

Ler a história com novos olhos vai ajudá-lo a encontrar erros que talvez tenha deixado passar.

Quando a trama está fresca na sua cabeça, é fácil preencher as lacunas com tudo o que você sabe sem perceber que certas informações foram omitidas no texto. Além disso, será mais fácil eliminar elementos da história se você esperar por algum tempo antes de revisar o conto. Talvez o autor esteja apaixonado por uma cena mas, depois de esperar por algumas semanas, perceba que ela não é tão relevante quanto ele acreditava.

2. Lembre-se do que desejava realizar no início do projeto.

Qual o ponto central do conto?
Você tentou destacar alguma situação social real? 
Tentou abordar algum aspecto da natureza humana? 
Tentou retirar humor de situações e experiências pessoais?

Independentemente das suas intenções, lembre-se delas antes de seguir com o processo de revisão.

Mantendo as intenções originais em mente, você saberá o que esperava fazer com a história e conseguirá avaliar se atingiu ou não esse objetivo.

Considere se o tom da trama corresponde às suas intenções e aos eventos gerais do conto.

3. Esclareça quaisquer elementos confusos.

Esse é um motivo importante para deixar a história de lado por um certo tempo antes de revisá-la. Quando acaba de escrever um conto, o autor tem uma probabilidade menor de encontrar qualquer elemento que possa confundir o leitor, no entanto, você poderá encontrar seus erros caso se dê tempo suficiente.

A confusão pode surgir do conteúdo da história (ou da falta dele), ou resultar de uma transição ausente ou mal executada. As transições devem conectar uma cena à cena seguinte, o capítulo anterior com o próximo e assim por diante.

Uma boa transição encerra a cena anterior e guia suavemente o leitor para a cena seguinte.

Um exemplo de uma transição entre duas cenas poderia ser algo nas linhas de: "Ele a observou em silêncio durante toda a noite, até que ela desapareceu na escuridão. Na manhã seguinte, ele continuou olhando para o horizonte, mas sabia que ela já estava a meio caminho de casa".

Peça para um amigo revisar o conto e tentar encontrar qualquer detalhe confuso ou que não faça sentido.

4. Edite a história para corrigir os erros.

A edição deve ser considerada um passo separado da revisão. Rever o conto envolve reescrever certas partes e eliminar elementos que não funcionem bem. A edição, por outro lado, envolve principalmente a correção dos erros de ortografia e gramática.

Tente encontrar erros de ortografia, gramática ou sintaxe, orações muito longas ou fragmentadas, erros de pontuação e linhas de diálogo muito fracas.

Use o corretor ortográfico do computador ou peça para um amigo com bastante talento para edição dar uma olhada no seu conto.

Tente ler a história em voz alta. Às vezes, pode ser mais fácil ouvir um erro quando o falamos em voz alta do que quando apenas o lemos em silêncio.

DICAS

Não desista! Caso esteja com dificuldade, faça uma pausa e comece novamente.

Não utilize palavras pouco comuns, para que não quebre a comicidade. Palavras difíceis ou não utilizadas cotidianamente podem fazer o leitor quebrar a cabeça para entende-las, tornando o conto cansativo, fazendo com que ele perca interesse no conto. Você tem que prender o leitor no conto para que ele leia até o fim. 

Lembre-se de que os contos nunca são perfeitos logo de cara. O trabalho de um escritor envolve a desconstrução e aperfeiçoamento de suas obras.

Peça para um amigo próximo, em quem você confie e cujas opiniões valorize, ler o conto. Pergunte quais partes ele acha que funcionam bem e quais partes precisam de revisão.

Nunca roube o trabalho de outra pessoa, incluindo piadas e trechos escritos.

Fonte> wikihow 

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Vanice Zimerman (Tela de versos) 36

 

Newton Sampaio (Trem de subúrbio)

Calixto interrompe a discussão, enterra o chapéu na cabeça, cai no mundo. 

Esbarra nos homens que passam.

O bonde apinhado também esbarra nele. Por um triz teria os pés esmagados.

Procura um cigarro. No bolso não há cigarros.

Procura o relógio. O relógio mostra o ponteiro pequeno bem em cima do número 3. Chega à estaçãozinha. Só o tempo de entrar e o trem sair.

O maquinário rodando lhe dá o gosto longínquo de desaparecimento, de evasão.

Evasão... Longo tempo lhe dança no cérebro, o termo. Evasão... Fugir da vida...

Mas a vida florescia em tudo, feito milagre permanente. Florescia na paisagem se mexendo sem parar. E no cheiro da máquina vomitando fumaça. E na promiscuidade do vagão, — do vagão cheio de gente se abanando, de cores se exibindo, de perfumes baratos se misturando como os donos.

Ao lado, volumosa ruiva tem os quadris maltratados pela cinta apertadíssima. Perto da ruiva, um velhote percorre as letras de um vago pasquim suburbano. O velhote lê. Mas não fala.

Quem fala toda a vida é aquele rapaz de bigode lustroso. Transmite, ao companheiro, imaginárias peripécias do último jogo de futebol.

O companheiro guarda um interesse imenso na história. Não é como a moça de boina azul que não dispensa atenção a nada.

Ela é bonita, está no segundo banco, e olha, e olha.

No mundo existem milhares de moças — de boininha azul ou sem boina — que fazem a mesma coisa. Que têm esse jeito triste, distante. Que espiam silenciosamente. Com vontade de segurar nas mãos aquilo que corre do lado de lá das janelas. Mas as janelas têm vidraças que separam o corpo das moças dos apelos que correm e se sucedem.

É cheia de vidraças, a vida das moças. Por isso há moças de boina espiando, tristinhas. Espiando com olhos parecidos com os de Calixto. 

Os olhos de Calixto estão vermelhos e molhados. Por causa de uma faísca impertinente. A faísca obriga-o a esfregar as pálpebras, muitas vezes.

Esfrega, esfrega. A ruiva pensa que o rapaz havia chorado. Será que as matronas gordas pensam coisas exatas? Gravíssimo é o problema, cidadãos!

Apesar do problema, o garoto louro do primeiro banco continua chupando o seu caramelo. E se sujando também. Até o fim. Depois, a mãe limpa o rostinho dele. Como agradecimento, o garoto começa a fazer travessuras. Salta no corredor. O trem dá uma sacudidela violenta, e o teria fatalmente derrubado se a moça de boina não o tivesse amparado em tempo.

Cresce um rebuliço. A mãe fica muito pálida, o rapaz de bigode lustroso acha graça, o velhote interrompe a leitura. E a senhorita guarda o menino. Passa-lhe a mão na cabecinha.

— Como se chama?

— Roaldo.

— Quantos anos tem?

A mãe intervém.

— Já fez três. Foi no último agosto.

— Crescidinho, não?

— E ladino! — completa o orgulho materno.

O cabelo do menino tem a cor do sol. Desse sol que atravessa a vidraça e a deixa intacta. Mas a senhorita do segundo banco não tem mais esses pensamentos. Porque uma criança loura quase sempre resolve o silêncio das moças de boina...

Calixto, infelizmente, não se lembra disso. Continua a meditar em torno da discussão com a noiva. Enquanto o trenzinho corre, corre. 

Vomitando fumaça como um demônio.

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.